SOBRE "O DESCONTENTAMENTO DA DEMOCRACIA", DE MICHAEL SANDEL

 

O descontentamento da democracia, de Michael Sandel

A erosão da comunidade e da democracia são, desde os anos 60, as grandes ansiedades do nosso tempo (político). O ideal republicano, cívico, de empenho na cidadania regrediu, claramente, de então para cá e relativamente ao que sucedera até aquela época (nomeadamente, nos EUA), na argumentação, na retórica, na justificação e práticas políticas e pessoais. Não tendo desaparecido por completo do espectro da polis, desvaneceu-se numa república procedimental, que abdicou do projecto formativo que implicava o forjar de virtudes (independência, ponderação, interesse público, iniciativa, responsabilidade…), nos cidadãos, em especial através de instituições intermédias (municípios, escolas, religiões…), que promoviam o auto-governo. Ser patriota tornou-se uma escolha (entre outras). É necessário, face a este panorama, que as motivações mais fundas dos cidadãos, com exigência de obrigações mútuas entre todos (não apenas sujeitas a uma simples vontade/capricho pessoal para que assim seja), entrem em jogo para que se revigore o sistema democrático. Um olhar para o passado, no caso norte-americano, mostra-nos a prevalência de uma economia política da cidadania durante todo o século XIX e até aos alvores da nova centúria, ali onde se instalaria, ao invés, doravante, o primado do empregado sobre o cidadão (na mesma pessoa) e, sobretudo, o de consumidor (que passou a definir cada um). Nunca o poder político, e de modo paradigmático num tempo em que, literalmente, se naturalizou a globalização, confrontou o cidadão – que acordos comerciais e externalização de empregos? - com a possibilidade de se manter mais produtor (e com trabalho/emprego, ainda que consumindo a mais alto preço) do que consumidor a baixo custo (mas desempregado). A globalização descrita como uma inevitabilidade da mesma natureza do que a chuva é manto diáfano de fantasia que esconde a verdade de um conjunto de políticas impostas, uniformemente, a milhões de pessoas – e política implica sempre opção, escolha e não o mantra de que não há alternativa -, as finanças dominam um capitalismo que fora industrial (a especulação prima, agora, sobre a produção) e a meritocracia credencialista esquece o quão valor possuem os sem título académico e inculca, ademais, a ideia de uma agência omnipotente (presente no indivíduo) em resultados (de performance na escala social) que tudo dividem em sucesso e fracasso. O amor acrisolado pela humanidade não se faz sem concretizações pessoais, daí que os mais próximos sejam mediadores das/pelas preocupações – que é crucial existirem, em leitura fraterna, não excludente, isolacionista, ou xenófoba - pelo que se passa no mundo inteiro. O Estado-nação conta, tanto quanto - já sendo extraordinariamente difícil convocar o interesse do público pelo que é público - a distância – e o concomitante desinteresse do homem comum – por organizações, de resto, absolutamente necessárias, à escala global – de novo, sem mediações, sem proximidade, como que condenadas – poderia fazer esvaziar de interesse e preocupação.
Os democratas (liberais no sentido norte-americano desta qualificação política) no poder subscreveram toda a agenda de desregulação financeira, acordos de comércio livre (que de comércio foram tendo cada vez menos) e não reconheceram a dignidade/valor do trabalho manual, talvez porque de há muito se foram afastando dos trabalhadores que nele se inserem – e que são muitos (2/3 dos norte-americanos não possuem habilitações académicas que incluam o ensino superior). A raiva acumulada desaguou num Trump que, em grande medida, com uma reforma fiscal que, em 2/3 da mesma, beneficiou os mais ricos (dando origem, aliás, a um défice orçamental extremamente robusto) contribuiu para o aumento da desagregação social, aumentando uma desigualdade económica preexistente, já de si brutal, prejudicando uma classe média com os rendimentos estagnados há muitas décadas (“a maior parte dos ganhos de rendimento da nação desde finais da década de 1970 foi para os 10% do topo da pirâmide; a metade inferior não recebeu praticamente nada. Em termos reais, o rendimento mediano dos homens em idade ativa era menor em 2016 do que quatro décadas antes. Desde 1980, o 1% mais ricos dos norte-americanos tinha duplicado a sua quota do rendimento nacional; agora, ganhavam mais do que a metade de baixo da pirâmide”, p.275), continuando o incremento da diferenciação de cidadãos que ao não se encontrarem, ao não se verem nem (re)conhecerem nos respectivos dia-a-dia (com vidas que nada têm a ver umas com as outras), contribuem para o desenraizamento, maior se possível, da ideia de comunidade e auto-governo.
Assim, o diagnóstico de Michael Sandel, e algumas soluções que são preocupações que vão permeando o conjunto da sua obra e que, em não contadas ocasiões, se declinam não apenas em propostas que abrangem o domínio político mas incluem, sem cisões, o das mentalidades  ética comunitária, revigoramento do republicanismo, economia política de cidadania, reindustrialização, valorização e apoio das instituições intermédias da sociedade, revitalização do estado-nação como plataforma de afecto político e de procura de recuperação do controlo e domínio de variegadas forças que geraram nos indivíduos a noção de perda total de agência sobre as suas vidas, reforma do sistema capitalista visando torná-lo menos dependente da finança (que tende a capturar o poder político), redignificação do trabalho, nomeadamente o manual (atenção à formação profissional e não exclusivo investimento na dimensão académica), promoção de uma menor desigualdade económica (nomeadamente, através do sistema fiscal), debate democrático irrigado pelas principais preocupações morais, na economia ou nos costumes, das pessoas-cidadãos e não redução e esvaziamento do mesmo em chave tecnocrática, promoção de uma ética de gratidão em vez da arrogância meritocrática (sorteio, a partir de determinado patamar de performance escolar uma dada média, de entrada no ensino superior em cursos mais procurados, evidenciando-se a sorte, o arbitrário que há, também, ao longo de um percurso que culmina nessa entrada universitária e na valorização dos que por décimas até aqui não entravam)  –, em “O descontentamento da democracia” (Presença, 2023), livro inédito em português e que acrescenta ao original, publicado em língua inglesa em 1996, uma revisão do escrito que inclui não apenas um novo Prefácio e uma nova Introdução , mas, sobretudo, uma extensa e muito (denunciadora/contundente do status quo) Conclusão, em uma elaboração que, em boa medida, faz a ponte e a síntese entre o Alexis Tocqueville da vizinhança ou da importância das Igrejas na formação do indivíduo (o abolicionismo da escravatura, nos EUA, começa nas igrejas cristãs baptistas), com o Dani Rodrick que combate o mercado ilimitado que corrói e destrói a democracia. Estando este ensaio de M.Sandel muito situado e balizado na história (política) dos EUA, ele sugere-nos pistas acerca de múltiplas causas do actual descontentamento democrático noutras latitudes e, em âmbito laboral, traça indagações que estão bem longe de se encerrar no óbvio ou no mais intuitivo e que, por isso mesmo, constituem uma possibilidade de deslocamento de ângulo de interpretação, tributo, pois, ao trabalho filosófico e de investigação elaborados.
 
1.Estamos muito habituados a que os debates económicos se centrem nas questões do – caminhos para e prioridade a - crescimento económico e (ou) da (re)distribuição. No entanto, tais acentuações, na discussão económica no seio da conversação democrática, poderiam e, no entender de Michael Sandel (O descontentamento da democracia, Presença, 2023), deveriam assentar em um enfoque diverso: que estrutura económica será mais favorável ao auto-governo? Quando se pensa na organização e regulação das relações laborais, da forma (desejável) que as empresas adquirem (adquirirão), do tipo de Estado – e respetivo – peso na economia, sem prejuízo dos posicionamentos políticos em torno de (primazia e formas de alcançar) crescimento [e sem negligenciar a existência de quem o entende impossível de prosseguir ad aeternum, nomeadamente pelas consequências nefastas que geraria sobre a Terra, ou, ainda, dos que consideram fundamental advir um decrescimento] e (re)distribuição, impor-se-ia assumir, diversamente, um (re) direcionamento do diálogo económico, tendo neste primazia, sem perder nenhuma das dimensões vindas de mencionar mas sem que estas sejam independentes da prioridade a adoptar - se entendermos, como entendemos, que a democracia se encontra, atualmente, sob forte erosão - pensar e argumentar em termos da (e porque uma dada) configuração económica melhor corresponde a – ou à criação de condições para - uma (urgente) maior vitalidade democrática. Trata-se de fazer (re) emergir uma economia política da cidadania.

2.Os pais fundadores norte-americanos travaram estes mesmos debates, podendo uma minuciosa leitura dos seus escritos comprovar como se assumia como elemento primordial (neles presente), independentemente das divergências dos pontos de vista e de partida (isto é, dos meios/políticas que, respectivamente, concebiam para se prosseguir aquela finalidade), a existência de uma estrutura económica favorável/idónea à emergência de cidadãos devotados e participativos na coisa pública.
Para este desiderato, e situando-nos, agora, já, na época da presidência de Andrew Jackson (mandato 1829-1837), caso queiramos sublinhar as diferenças de posicionamento dos democratas (dos liberais, no sentido norte-americano do termo) ao longo das eras (e, em especial, face aos nossos dias) verificaremos que estes, por tal altura do século XIX, sustentavam o laissez-faire. Uma não intervenção estatal, um Estado reduzido a mínimos (“os democratas jacksonianos favoreceram uma filosofia de governo laissez-faire que encontra a sua expressão actual em políticos «antigovernamentais» como Ronald Reagan e economistas libertários como Milton Friedman”, p.55). Em nos parecendo, em outro prisma, mais relevante sublinhar continuidades, de imediato notaremos que essa postura se realizava ao serviço de uma perspectiva que identificava o Estado como susceptível (ou, inclusive, a noção de que necessariamente assim ocorreria) de captura pelos mais poderosos e, desta forma, uma forte intervenção daquele resultar em prejuízo dos mais frágeis e pobres, ou dos que viviam dos rendimentos do seu trabalho – e isto por contraponto aqueles cuja existência consistia na administração de propriedades (fundiárias) ou em ganhos especulativos com capital (para a República prosperar, não devia haver, em suma, nem corrupção nem dependência, o que uma ulterior tomada do poder político pelos interesses económicos poderia vir a promover, na pauperização de agricultores, artesãos, pequenos lojistas ou titulares de farmácia de proximidade e no concomitante benefício de homens de negócios ou banqueiros, de acordo com esta perspectiva, que recusava a possibilidade de ganhos extensíveis a todos os segmentos populacionais, em medida minimamente equitativa e com equilíbrio democrático). Seja como for, os democratas jacksonianos não elaboravam propriamente, pois, em torno de um Estado intervencionista, corrector de desigualdades económicas e promotor de mais e melhores oportunidades de vida (em particular, a quem vinha de baixo), antes se erguendo contra uma reformulação/robustecimento do mesmo e da vida social que, em colocando cidadãos em tais desigualdades (pela dita captura do Estado pelos mais favorecidos, reitera-se), faria com que estes, no limite, (mutuamente) não se encontrassem e não se conhecessem, tal a distância e modus vivendi que os separaria, e isso viesse a colocar em causa a democracia, ali onde a concentração de riqueza e poder em alguns minaria, em definitivo, o auto-governo.
Em se elaborando igual exercício, o de identificar dissemelhanças e similitudes relativamente aos actuais republicanos (os conservadores), para os whigs da quarta década do século XIX tendo em atenção o contraponto com o tempo presente – whigs: nome que radica num partido de oposição inglês, homónimo, que recorria a temas republicanos para resistir ao poder arbitrário da Coroa -, destacar-se-á, como divergente (face a épocas seguintes), a sua elaboração de um Estado com múltiplas funções, entre as quais a criação da escola pública (essencial, argumentava-se, com o devido plano curricular, à formação do cidadão interessado nos assuntos que diziam respeito a todos; isto é, arreigado à polis). Em continuidade com uma linha discursiva que ainda hoje podemos escutar em tal hemisfério político-partidário, de outra sorte, a ideia de que o aumento do bolo nacional, do crescimento global da riqueza do país, beneficiará todos (economia trickle-down), trabalhadores e banqueiros, agricultores, artesãos, lojistas e empresários.
 
A luta pode ser por uma América rural, com gente que produz artefactos, artesãos com o seu próprio espaço de trabalho (detentores, assim, dos meios de produção e, por consequência, sem patrão, sem sujeição e dependência) e sem a expectativa (ou ambição desmesurada) de enriquecer do dia para a noite, e que percorrem (percorreriam) o território nacional, conhecendo uma série de concidadãos de condições diversas, consultando, pelo meio, nas bibliotecas, os cartapácios da história pátria (que lhes daria as chaves de compreensão do – chão/cimento - que os uniria), evitando a grande fábrica (devia a nação norte-americana ser manufactureira?), os seus vícios e corrupções, à maneira de Birmingham, Manchester ou Lyon (e os democratas jacksonianos assumiram-se como a força político-partidária que representava agricultores, mecânicos e trabalhadores, enquanto os whigs seriam o partido da indústria, dos negócios e da banca, p.55), ou, em leitura diversa, uma América resoluta em aproveitar o auto-interesse e ambição individual para prosperar como nunca [há sempre, no limite, uma visão antropológica a permear os postulados], com Banco central e moeda em papel, emissão de dívida, pauta proteccionista, o apoio federal ao comércio e á indústria, escolas, reformatórios e asilos. Em qualquer dos casos – do medo aos monopólios, da concentração do poder económico e, a prazo, político (na mão de poucos), ao receio da colocação de demasiado poder no Executivo, crítica neste último caso formulada pelos whigs -, independentemente de tomarmos narrativas que hoje poderíamos, em parte, mas só em parte, dizer repescadas e não necessariamente, em todos os casos, pelos (exatos) herdeiros de uma mesma tradição político-partidária, enquanto, em simultâneo, podemos sopesar dos encaixes, dois séculos volvidos, ou suas limitações, do modelo de clivagens sociais alocado a este caso concreto norte-americano [quem representa, no nosso tempo, por exemplo, os trabalhadores sem colarinho branco, na América?], o que se sublinha é a existência (comum, às diferentes reivindicações políticas, no século XIX) de uma economia política da cidadania que importaria agora resgatar  - e que, em diferentes pontos, a excessiva concentração de poder num Executivo e num Presidente; os monopólios e oligopólios; a desigualdade económica ilimitada que concorre para que cidadãos não conheçam, nem irriguem a sua imaginação moral-política-social, a circunstância dos seus concidadãos são preocupações que ocupam, em nossos dias também, uma centralidade que é difícil exagerar.
 
3.O trabalho assalariado é livre? Até ao início do século XX, nos EUA, o entendimento prevalecente foi o de uma visão cívica do trabalho livre e não uma perspectiva voluntarista do mesmo. Para que o trabalho fosse livre era entendimento maioritário de que não bastava o consentimento do trabalhador; era, antes, exigível que o trabalho fosse observado em uma lógica de, a breve prazo (digamos, um/dois anos), o trabalhador conseguir ter os seus próprios meios de produção, a sua pequena quinta ou a sua loja. Esta compreensão das coisas relevava, ademais, de pressupostos que integravam a iniciativa, o sentido de responsabilidade e empreendedor como virtudes – que a organização económica contribuiria para ajudar a forjar no cidadão – fundamentais à existência de uma democracia. Se se lobrigasse que alguém viveria, em permanência (trabalho assalariado para toda a vida), debaixo do mando de outrem, o trabalho não era percebido como livre. De resto, pior: habituado a um servilismo e obediência a um patrão de quem depende para se alimentar, bem como à respectiva família, este homem não se transmutaria em um cidadão (com as virtudes que a este se requer, de não dependência, ausência de sujeição, espírito crítico). O republicano Abraham Lincoln (1809-1865), para recordar uma personalidade emblemática (no caso, oriunda do campo conservador, 16º presidente dos EUA [1861-1865]), subscrevia, em absoluto, esta concepção acerca do trabalho livre. Note-se a divergência não apenas entre o movimento abolicionista da escravatura, nos EUA, e o movimento pelos direitos laborais (se no interior deste se propendia a assimilar o trabalho assalariado à escravatura, com a diferença de o escravo ter direito a ser assistido na doença e na velhice, com habitação e comida e o dono em o manter para ser a máquina de trabalho que o favorece, no que os abolicionistas descortinavam um exagero retórico incompreensível; abolicionistas formados pelo protestantismo evangélico, pertencentes à classe média, nem sempre demasiado compreensivos com os trabalhadores mais pobres do Norte), mas ainda face aos Free Soilers e ao Partido Republicano que procuravam conter a escravatura não já face ao pecado que esta constituía e ao enorme sofrimento que infligia, mas, antes, centrando-se nos efeitos da escravatura nas instituições livres, em especial no que ao trabalho livre diz respeito – a expansão da escravatura, para lá de onde aquela estava geograficamente concentrada (nos EUA), a todo o território, levaria a colocar-se em causa o trabalho livre em sentido cívico (a iniciativa, responsabilidade, empreendedorismo…)  e, com ele, o auto-governo. Nem todos os que sustentavam esta visão, em artigos e discursos públicos, registe-se, se mostravam compassivos com o povo negro, de tal modo que alguns abolicionistas ou promotores da limitação geográfica do recurso à escravatura foram, inclusivamente, acusados de terem, aliás, na rejeição do negro a motivação última que os levava à recusa da escravatura (isto é, à repulsa pela extensão da escravatura ao demais território norte-americano, para lá das fronteiras sulistas, e com ela a repugnância pela extensão do povo negro a todo o território). Lincoln insistira que a escravatura era um erro moral, ainda que se tenha oposto, por razões práticas e constitucionais, a interferir com a escravatura nos estados em que esta existia, na esperança de que a contenção daquela levasse à sua extinção definitiva. Opôs-se “à igualdade social e política para o povo negro, incluindo o sufrágio”, mas ergueu a sua voz notando que “não há razão no mundo para que o negro não tenha direito a todos os direitos naturais enumerados na Declaração da Independência, o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Considero que ele tem tanto direito a estes como o homem branco” (p.81).
 
4.Se a democracia reclama e exige determinadas virtudes, vindas de identificar, aos seus cidadãos – e, neste contexto norte-americano, e no conspecto pelo século XIX promovido por Sandel, observamos autores propugnarem que, de resto, a democracia não é fim em si mesmo mas visa a elevação do cidadão, não preocupado e imerso apenas na sua dimensão privada, nos seus interesses e negócios, na sua vida familiar, mas procurando que aquele se supere no interesse e dedicação ao bem comum (assim se recuperando o ideal republicano antigo, contendo influências, também, do Renascimento); pode dizer-se que assim se completa, em rigor, um círculo aspiracional: para que haja auto-governo, os cidadãos devem ser virtuosos (possuir determinadas virtudes vocacionadas para a promoção de uma sólida vida pública) e, por sua vez, este, o auto-governo, a democracia promoverá, igualmente, a elevação dos cidadãos.
Isto significa, radicalmente, que há uma dada perspectiva de bem (e não apenas de justo) coletivo, de desejo de (formação de) um determinado cidadão com certas qualidades/virtudes; na visão dos democratas e dos whigs, por aquela época, ainda não há, por conseguinte, uma neutralidade de consideração pelas opções, vinculações, filiações dos seus cidadãos; numa palavra, a República procedimental ainda não tinha tido o seu advento. Noutros termos ainda: ser patriota ainda não era, como se tornou adiante, uma escolha (mas uma obrigação).
 
5.Consoante o avanço dos diferentes estádios do capitalismo, e ainda com a noção presente do negativo para a democracia que seria o trabalho assalariado permanente, foi-se considerando, sucessivamente, a reforma agrária, as cooperativas e a participação dos trabalhadores como sócios, accionistas, membros efectivos nas/das decisões das empresas, bem como a existência de empresas de desenvolvimento comunitário soluções que promoveriam, ainda, a recusa da sujeição, da dependência e alavancariam a iniciativa e responsabilidade como virtudes de carácter nas pessoas que teriam o seu transfer cívico na manutenção e prosperidade da democracia.
 
6.Mesmo com trabalhadores a solicitarem, em sua defesa, que os tribunais impusessem determinadas condições para que contratos fair pudessem realizar-se com os seus empregadores, entendendo que, enquanto trabalhadores, não eram, pela necessidade económica em que se encontravam, livres ou, pelo menos, tão livres, como aqueles que visavam contratá-los, para aceitar as condições propostas – do horário à remuneração; dos dias de trabalho semanais, à idade com que se começava a trabalhar –, em múltiplos momentos, no início do século XX, e em casos paradigmáticos (vide Lochner vs. Nova Iorque, em 1905; aqui, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou uma lei de Nova Iorque que fixava o horário máximo de trabalho dos trabalhadores da panificação, considerando que limitar acordos de homens adultos e inteligentes era uma «interferência nos direitos do indivíduo» e uma violação inconstitucional da liberdade) que vieram a conformar, neste contexto, um entendimento de tipo libertário – num continuum com os publicistas mais conservadores – recusaram múltipla legislação do trabalho (adoptada por diferentes estados norte-americanos), afirmando a liberdade das partes como não podendo (tal sendo inconstitucional, sustentavam) ter entraves (incluindo o caso de empregadores que excluíam, ab initio, da sua empresa quem fosse sindicalizado; sim, essa era uma limitação às opções do trabalhador, sim, este não se encontrava em igualdade de posição com o empregador visando a possibilidade de estabelecerem, e nos concretos termos que aquela viria a enquadrar-se, uma relação laboral, mas, ainda assim, o trabalhador podia escolher entre ir para aquela empresa ou não ir, ou, no limite, entre ali prestar trabalho, ou ir para o desemprego - sendo soberano quanto a concluir no que mais lhe conviria – vide Coppage vs Kansas (1914)). A argumentação em chave voluntarista (em vez de cívica) das relações de trabalho (a tradição que prevalecera até ao início do século XIX dizia que não se podem transformar cidadãos em exclusivos trabalhadores; isto é, a dimensão de cidadão primava, na pessoa, sobre a de empregado e isso, como se tem aqui sublinhado, implicava uma dada organização económica e de empresa para o realizar), bem como a neutralidade face às escolhas de cada um – ainda que, no caso vertente, em realidade, ausência de opção, não raramente - impulsionaria a ascensão do Estado liberal enquanto estado neutro numa sociedade pluralista (isto é, um Estado que não adere a nenhuma concepção de bem, a uma doutrina compreensiva, a uma filosofia ou religião: em 1947, o Supremo Tribunal dos EUA “declarou, pela primeira vez, que o governo deve ser neutro em relação à religião”, p.183). Até os reformistas liberais – advogando a intervenção do poder público na regulação do mundo do trabalho - argumentaram a partir de uma concepção voluntarista (e não cívica) de liberdade e do trabalho (assalariado): para a escolha ser verdadeiramente livre (dos trabalhadores), com uma posição justa entre as partes contratantes, assinalavam, requer-se regulamentação governamental.
 
7.Um dos maiores debates que passaram do século XIX para o século XX norte-americano prendeu-se com a questão da (não) concentração de capital, das leis anti-trust e da justificação para as mesmas. Ora, neste domínio, a passagem do advogar da necessidade de permanência do pequeno comércio, das lojas e mercearia de proximidade como forma de manter uma dimensão comunitária, de independência dos pequenos comerciantes e empresários, com o intuito de o auto-governo ser alimentado, para uma outra argumentação e exposição de motivos, na qual a recusa de monopólios assentava na urgência de o consumidor poder usufruir do melhor preço final dos produtos (a declinação do cidadão em consumidor), recusando-se a fixação de preços decorrente da ausência de concorrência, ilustrou como a concepção voluntarista do trabalho e da liberdade, o fim do ideal da formação cívica próprio da tradição republicana, tal como o Estado procedimental, ganhou asas.
Neste novo contexto (em que os norte-americanos se identificam, fundamentalmente, como consumidores), não deixa de ser curioso atentar como as perspectivas de republicanos e democratas (sendo certo que no interior de cada espaço ideológico não existirá uma única visão e um absoluto monolitismo de concepções), no último terço do século XX, virão a inverter os termos em que se tinham ancorado no século XIX: “para os progressistas de outrora, as cadeias [de lojas] eram os vilões, competidores implacáveis cujos descontos destruiriam os pequenos farmacêuticos e merceeiros independentes e os pequenos empresários dos quais a democracia dependia. Para os liberais [esquerda] contemporâneos, as lojas de desconto são os heróis, cujos preços baixos permitiriam aos consumidores evitar pagar o preço da Bloomingdale (…) Se os protagonistas tivessem parado para refletir sobre as origens das políticas que defendiam, poderiam ter ficado intrigados com a empresa que levavam a cabo. A mudança nos termos do discurso político ao longo do século tinha feito com que os companheiros ideológicos se tornassem estranhos. Em nome da eficiência económica e do respeito pelo mercado, os conservadores e Reagan defenderam uma política outrora subscrita por Brandeis e Hubert Humphrey, defensores progressistas dos pequenos produtores e do argumento cívico a favor do anti-trust. Em nome de preços de consumo mais baixos, os liberais e as associações de consumidores defenderam as lojas das cadeias de desconto, outrora desprezadas pelos progressistas como destrutivas de uma economia descentralizada de produtores independentes. Que este paradoxo quase não tenha sido notado pode ser uma medida da morte da filosofia pública que deu vida ao antitrust” (p.151).
Se Roosevelt vem a aplicar o New Deal como resposta à Grande Depressão de 1929, a verdade é que tanto experimenta, em momentos distintos dos seus mandatos, a ideia descentralizadora da economia (para restaurar a concorrência e impulsionar o anti-trust), como o planeamento mais centralizador – perspectiva, esta última, que julgava que sendo a concentração de poder económico-empresarial característica inevitável de uma economia moderna, o planeamento sistemático e o controlo racional do sistema industrial eram necessários (descentralização e planeamento que, em oposição, diferentes forças políticas, respectivamente, sustentavam, então); e, com uma nova e enorme recessão em 1937 (“o mais acentuado declínio da produção industrial de que há registo, seguido de uma queda abrupta na bolsa de valores”, p.159), as políticas de despesa em massa propugnadas por Keynes – utilizadas como “penso rápido”, no início do “New Deal”, por parte de Roosevelt, que fazia a defesa do corte de despesas, de orçamento sem défice, na mais ortodoxa linhagem da abordagem orçamental, recusando qualquer adesão política estrutural àquele estímulo à procura [“Longe de ser um apóstolo precoce da economia keynesiana, Roosevelt aderiu à sabedoria convencional que sublinhava a importância de orçamentos equilibrados. Durante a campanha de 1932, denunciou Herbert Hoover por criar um défice e condenou os gastos excessivos do governo com palavras que, décadas mais tarde, poderiam facilmente ter sido confundidas com as de republicanos conservadores como Barry Golwater ou Ronald Reagan”, pp.161-162] – tiveram, finalmente, uma ratificação por parte da liderança política e, muito curiosa e interessantemente, na leitura de Sandel, tal permitiu que se superasse a dicotomia descentralização vs planeamento até aí prevalecente e, bem assim, sugerir neutralidade na regulação da procura agregada (ou melhor, dado que se esta tinha tal regulação, depois, no entanto, no que alocariam as pessoas os recursos, era com estas; o Estado seria neutro relativamente às escolhas individuais).
Neste olhar sobre o keynesianismo, este é, radicalmente, interpretado como entroncando, e apesar das manifestas diferenças para com os libertários na economia, na tradição do laissez-faire: “[tal] como os liberais do laissez-faire que abominavam as suas opiniões, Keynes justificou a sua teoria económica em nome da concepção voluntarista da liberdade. Embora, por vezes, fosse visto como estando «em conflito com a tradição anterior do liberalismo económico, o programa keynesiano pode, em vez disso, ser considerado como o seu culminar». Como o economista Fred Hirsch apropriadamente observou, «Keynes fez as correcções ao laissez-faire que eram necessárias para validar o que o laissez-faire foi concebido para fazer», nomeadamente, respeitar a liberdade das pessoas de escolherem os seus fins para si próprias” (p.174).
Assim, e atentando ao conjunto da governação Roosevelt e olhando-se, na globalidade, ao New Deal, ainda que “a intervenção do Estado social na economia de mercado possa parecer contrária à tentativa de ser neutro (…) os [seus] defensores (…) apelaram à concepção voluntarista da liberdade. Os seus argumentos a favor da expansão dos direitos sociais e económicos não dependiam do cultivo de um sentido mais profundo de cidadania partilhada, mas do respeito pela capacidade de cada pessoa escolher os seus próprios valores e fins (…) [Prevalece a ideia, na defesa do Estado-Providência no interior dos seus defensores nos EUA] de que «os homens necessitados não são homens livres» (pp.183-185).
Ao não assentar a edificação do Estado social em uma ética de obrigação mútua e cidadania (e, portanto, a um sentido mais profundo de cidadania partilhada), mas numa mera concepção voluntarista de liberdade, e se teve “a mais completa declaração filosófica na década de 70, mais notoriamente em Uma teoria da Justiça, de John Rawls” (p.189) – “para que o governo fosse neutro em relação aos fins, isso significava permitir apenas as desigualdades sociais e económicas que funcionam em benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. A distribuição de talentos e dotes que leva uns a florescer e outros a falhar na economia de mercado é «arbitrária do ponto de vista moral». Respeitar as pessoas livres e independentes requer, por isso, uma estrutura de direitos e dotes que compense a arbitrariedade da sorte” (p.191) -, expôs-se, este (diferentemente do que sucederia caso demandasse a mencionada ética de obrigação recíproca de cidadania), igualmente e por outra banda, a uma crítica forte (que visou colocar em causa aquele mesmo edifício): “Robert Nozick, em Anarquia, Estado e Utopia, argumentou contra o Estado-Providência. Nozick, um laissez-faire liberal na tradição de Barry Goldwater e Milton Friedman, sustentou que respeitar os direitos significa negar ao Estado qualquer papel na redistribuição do rendimento e da riqueza. A justa distribuição é o que quer que resulte das trocas voluntárias que acontecem numa sociedade de mercado. «De cada um segundo a sua escolha, a cada um como forem escolhidos” (p.191). Ainda assim, não deixaram de existir autores que sublinharam, celebremente, que o Estado Liberal (neutro) consome pressupostos axiológicos que não pode produzir (Bockenforde) ou que, nomeadamente, a teoria de Rawls não surge num vácuo, há uma história, uma tradição, uma razão cultural, um mundo da vida a permeá-la e, em especial, o princípio da diferença pode, mesmo, ler-se como uma tradução secular do princípio da Doutrina Social da Igreja da opção preferencial pelos pobres (Van Parijs).
Mas, no caso da elaboração de Sandel acerca da justificação para a (in) existência do Estado Social, insiste-se, prima a circunstância da explícita referência exclusiva – de que os autores em causa se fazem porta-vozes - a uma dimensão voluntarista e não cívica de liberdade.
 
8.A propósito dos instrumentos keynesianos e do modo como foram tomados, e situando-nos, agora, por volta de 1964, com Michael Barone podemos perceber que se chegou a entender, no seio da conversação democrática norte-americana, que o crescimento económico era praticamente inevitável e “a noção de ciclo económico, ao que parece tinha sido abolida” (p.179). John Kennedy descreverá os debates económicos, agora que a economia seguia em velocidade de cruzeiro, em matriz tecnocrática (“questões sofisticadas, técnicas, que estão para lá da compreensão da maioria dos homens”, p.181). Por esta altura, a afirmação de agência preponderava e os norte-americanos sentiam-se a nação liderante (entre 1948 e 1968, crescimento económico, em média, de 4% ao ano, nos EUA, era algo sem precedentes entre as nações, p.179).
E veio, então, 1968. Com ele, a vulnerabilidade experimentada no Vietname, com a brutalidade da guerra; a desconfiança da condução bélica por Lyndon Johnson; o assassinato de Martin Luther King, em Memphis; o homicídio de Robert Kennedy, em Los Angeles; motins nos centros das cidades; protestos nas universidades; confrontos violentos com a polícia…Era apenas o dealbar da desilusão, do sentimento de perda de controlo e domínio, da emergência de forças que o Estado não conseguia administrar (e depois viria o Watergate, a demissão de Nixon, o choque petrolífero, a estagnação da classe média…).
Primeiro, um governador do Alabama, George C.Wallacce, “ardente populista do Sul”, correndo nas primárias democratas de 1972, daria expressão vocal ao sentimento de impotência de muitos norte-americanos, afirmando-se como a voz da rua contra o paternalismo dos intelectuais (que alegava pretenderem dizer ao povo quando se levantar ou deitar; atira-se, neste contexto, a “alguns professores e alguns pregadores e alguns juízes e alguns editores”, ou seja, uma parte daqueles que décadas volvidas seriam rotulados desdenhosamente, pelos populistas, como “a elite” contra a qual haveria que lutar), rudemente abominando o não cumprimento da lei e ordem, e combinando exposições de teor racista (fora determinado na luta a favor da segregação, em 1963), com afirmação, simultânea, de apoio ao aumento do salário mínimo, tal como do subsídio de desemprego e da Segurança Social (de um modo geral), bem como vituperava o poder dos mais ricos. Algumas das suas afirmações – tal como o sentimento de vendeta, por parte de Pat Buchanan, nos inícios de 90 – fazem-nos evocar Trump: “se algum manifestante se deitar á frente do meu carro quando eu for presidente, esse será o último carro de que ele se deitará à frente” (p.198). Mesmo sem grande coisa a oferecer no “campo das soluções plausíveis, foi um dos primeiros a sentir o descontentamento de um número crescente de norte-americanos que acreditavam que os habituais debates entre democratas e republicanos (…) não abordavam as questões que mais importavam” (p.199). Depois, Ronald Reagan, num caminho para as presidenciais que juntou duas correntes adversárias do/no conservadorismo: “a primeira, o conservadorismo libertário ou laissez-faire de Barry Goldwater e Milton Friedman, defende que as pessoas devem ser livres de fazerem o que quiserem, desde que não prejudiquem os outros. Este é o conservadorismo que celebra o mercado livre e fala em tirar o Estado da vida das pessoas. Rejeita a noção de que o governo deve formar o carácter dos seus cidadãos, e, por isso, enquadra-se confortavelmente com os pressupostos da república procedimental (…) A segunda vertente do conservadorismo (…) vai para lá dos termos da república procedimental. Esta parte da sua política evocava uma ética cívica ou comunitária favorecida pelos conservadores culturais e a direita religiosa. Enquanto os conservadores libertários rejeitam o projecto formativo, os conservadores comunitários acreditam que o governo deve atender ao carácter dos seus cidadãos” (p.209).
A atração da recuperação do domínio das suas vidas – individuais/coletivas - pelos norte-americanos, o orgulho e determinação nestes injectado por uma campanha que prometia um novo “despertar da América”, os ideais de auto-governo e comunidade captaram anseios e expectativas tanto quanto os viriam a defraudar e, desde logo, pela contradição que o libertarismo implicava quanto à possibilidade de comunidade: “como Christopher Lasch observou, «a defesa retórica de Reagan de ‘família e vizinhança’ não pôde ser conciliada com o seu favorecimento do empreendedorismo comercial não regulamentado, que substituiu bairros por centros comerciais e superauto-estradas». Apesar de invocar a tradição, «o seu programa visava promover o crescimento económico e o empreendedorismo não regulado, as próprias forças que minaram a tradição»” (p.213 – aqui podemos observar a crítica às limitações de um simultâneo liberal-conservadorismo (se por “liberal” tomarmos agora o sentido “europeu”, e associado à economia, do mesmo).
 
9.Criticando a República procedimental, o estado liberal, neutro, Michael Sandel sabe que há-de confrontar-se com duas objecções essenciais a uma ética comunitarista que sustenta: esta, implicaria a) a exclusividade; b) a coercibilidade.
Se, na antiguidade clássica e num trajecto até ao presente, houve quem arguísse e tal foi, inclusive, codificado em lei, que certas a categorias, grupos de pessoasmulheres, imigrantes, não proprietários, afro-americanos, etc. etc. – não possuíam as capacidades de carácter para o auto-governo, assentando-se, em estes postulados, em um pressuposto de identidades fixadas (para o afirmar),  porém, o a priori de que a capacidade de virtude é incorrigível, por estar ligada a papéis ou identidades antecipadamente fixadas, não é intrínseca à teoria política republicana e nem todos os republicanos a abraçaram. Alguns argumentaram que os bons cidadãos são feitos, não nascem [em paráfrase a Tertuliano], e depositaram as suas esperanças no projecto formativo da política republicana. Isto é especialmente verdade nas versões democráticas do pensamento republicano que surgiram com o Iluminismo” (p.219).
Entre seis mil cidadãos atenienses o projecto formativo (de cidadania) era facilmente concebível, mas a integração, nele, de milhões de pessoas, como nas democracias contemporâneas, “aumenta a parada” quanto ao “fabrico da alma” (para a República). Rousseau e a vontade geral pesam quando é de coerção que falamos e evocamos as suas frases sobre “mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo (…) [O legislador] deve negar ao homem as suas próprias forças [a fim de o tornar dependente da comunidade como um todo] (…) Quanto mais a vontade individual de cada pessoa estiver «morta e obliterada» [tanto mais provável é que abrace a vontade geral]”.
Todavia, é o pressuposto de que “o bem comum é unitário e incontestável” e não a ambição formativa como tal, que inclina a política de Rousseau para a coerção. Ora, “como a experiência norte-americana com a economia política de cidadania sugere, a concepção cívica da liberdade não torna desnecessária a discordância – oferece uma forma de conduzir discussões políticas, sem as transcender”. Neste domínio, Tocqueville aparece como alternativa a Rousseau: “a política republicana que Tocqueville descreve é mais clamorosa do que consensual. Não despreza a diferenciação. Em vez de eliminar o espaço entre as pessoas, preenche-o com instituições públicas que reúnem as pessoas em várias capacidades, que tanto as distinguem como as relacionam. Estas instituições incluem municípios, escolas, religiões e todas as ocupações sustentáveis das virtudes que formam o «carácter da mente» e os «hábitos do coração» que uma república democrática exige. Quaisquer que sejam os seus objectivos mais particulares, estas agências de educação cívica inculcam o hábito de atender às coisas públicas. E, no entanto, dada a sua multiplicidade, impedem que a vida pública se dissolva num todo indiferenciado”.
 
10.Nesta obra de Sandel, podemos observar como alguns destacados publicistas democratas (ou liberals, cidadãos de esquerda, mesmo manifestando-se a favor de meios para os mais desfavorecidos) norte-americanos, ao longo dos anos, se manifestaram contra programas como o rendimento mínimo garantido com base no argumento cívico (as virtudes necessárias à democracia, já aqui explicitadas, ficarem em causa, garantiam). Todavia, vale a pena sublinhá-lo, plataformas como a defesa hodierna, entre nós, de mecanismos como o Rendimento Básico Universal ou Incondicional têm feito da bandeira cívica ou de cidadania um elemento/factor muito relevante na defesa desta política: em existindo um RBU (ou RBI), cada cidadão estaria em melhores condições – do que aquelas que hoje possui, sem poder recorrer a este programa social – para se dedicar à vida pública (vide Rendimento Básico Incondicionaluma defesa da liberdade, Merrill et all., 2019).
Neste breve diálogo, que poderemos promover entre este livro de Sandel e o ensaio político que se tem publicado em Portugal nos últimos anos, registaremos, na mesma linha do que vimos de dizer, como do campo não de direita Manuel Maria Carrilho assaca a um estado paternalista a desresponsabilização do indivíduo (e, portanto, dir-se-ia virtudes como as da responsabilidade e da iniciativa vitais para o auto-governo, no interior da reflexão republicana pela qual Sandel, poderiam ficar em causa) e regressa, precisamente, a Tocqueville, em quem vê a “genialidade” de antecipar os males que de que a democracia atualmente padece. Na compreensão de Carrilho, o Estado criou o individualismo moderno, tal como criou o mercado – “não há, aqui, oposições, mas apenas nuances”. O sujeito acomodado de hoje é o que não se importa com o que se passa, lá fora, no mundo, concentrado, em exclusivo, no seu cubículo privado (vide Sem retorno, Grácio, 2021) e a ilustração da preponderância da vida enquanto zoe, relativamente à interpretação desta como bios reside, em âmbito pandémico, em não se considerar como essenciais bens – tal como sucedeu no nosso país - como universidades, livrarias, etc. (que aliás contribuem para o irrigar da vida coletiva).
Michael Sandel, à semelhança do que considera Miguel Morgado (vide O conservadorismo do futuro e outros ensaios, Edições 70, 2017), entende que não faz sentido uma (absoluta) cisão entre a nossa dimensão pessoal e a de cidadãos - “porquê insistir em separar a nossa identidade como cidadãos da nossa identidade como pessoas mais amplamente concebidas? Porque é que a deliberação política não deveria refletir a nossa melhor compreensão dos fins humanos mais elevados? Os argumentos sobre justiça e direitos não se baseiam inevitavelmente em concepções particulares de vida boa, quer admitamos ou não?” (p.222).
Faça-se aqui realçar que a quando da publicação de A justiça como equidade, enquanto correcção a O liberalismo político, John Rawls atribuiu às partes, na deliberação no fórum público, não apenas a possibilidade, mas, até, num certo sentido, como que numa obrigação de honestidade intelectual, a indicação de (que) concepções particulares partiam na adesão a uma dada proposta – essa expressa sem recurso a nenhuma autoridade que não pudesse ser partilhada universalmente – política (para a cidade).
Para Sandel, a desvitalização e falta de irrigação das motivações mais fundas para a vida comum e a solidariedade entre todos – em última instância, para alguns liberals, de facto o problema motivacional e substantivo de bem coloca-se quanto à adesão, ou falta dela por falta dessa motivação substancial, de muitos cidadãos, a um Estado-Social – é que levam, paradoxalmente, a política hodierna a ficar saturada de referências de tipo fundamentalista (religioso), manipulações desta natureza por parte de políticos (quase com reivindicações de teor teocrático), ou, ainda, a perspectiva de que só com um espaço público esvaziado de debates de natureza moral e assente numa tecnocracia asséptica (que esvazia esse mesmo debate) preponderem ou quase tudo se reduza a questões de corrupção, talk show confessionais, escândalos de celebridades... Não podemos ser uma “nação de estranhos” (uns aos outros), com cada um enclausurado (em si), sem bases éticas em comum (sem estas, não somos, não formamos uma sociedade). Enquanto a liberdade para os antigos supunha, para estes, participar nos assuntos da cidade, ter uma palavra a dizer nela (deliberar em conjunto), para os modernos liberdade significa “não me incomodem”. Enquanto assim for, não há vida pública que se sustente.
O movimento laboral, no século XIX, nos EUA, reivindicava o horário de oito horas de trabalho, tendo como um dos argumentos fortes assim o cidadão poder ler o jornal do dia e se informar sobre a vida em comum; hoje, por sua vez, e sem prejuízo do que é disponibilizado no digital gratuito, mas sabendo-se das limitações de acesso, neste, a grande parte dos textos (informativos, de investigação, reportagem, entrevista, opinião…) nos principais jornais mundiais, “os jornais impressos são uma espécie de anacronismo e os seus leitores uma espécie de elite, destinada, creio, à extinção a curto prazo” (Alfonso Berardinelli, Electra, nº20, p.18).
 
11.Bill Clinton desregulou o mercado de derivados e revogou a lei Glass-Steagall – que separava a banca comercial da especulativa (permitindo a fusão de grandes grupos e abrindo, com o entusiasmo de Alan Greenspan, a porta a megabancos – que em 2008 se tornariam demasiado grandes para falir e, consequentemente, ditos impossíveis de deixar de resgatar face ao risco sistémico). Um dos altos membros da Administração Clinton, o secretário do Tesouro, Robert Rubin, antigo executivo da Goldman Sachs, liderava a equipa económica do Governo antes, curiosamente, de saltar para um cargo de topo no Citigroup (fusão entre o Travelers Group e o Citibank, realizada, de resto, ainda antes da própria revogação da lei Glass-Steagall – que o iria permitir). Na reforma fiscal que promoveu, depois de prometer “eliminar as deduções fiscais das empresas por salários ultrajantes de executivos”, a Administração Clinton deixou de fora as opções de compra de acções (dedutíveis a 100%), o que se tornou “um poderoso incentivo para os executivos manipularem o preço das acções das suas empresas, utilizando os lucros para recomprar acções, aumentando assim artificialmente o preço dos papéis. Desde o New Deal que a recompra de acções era ilegal e considerada uma forma de manipulação de mercado. Mas, em 1992, a administração Reagan legalizou a prática. Quando Clinton introduziu a lacuna entre desempenho e pagamento, as compras de acções explodiram como forma de pagamento dos CEO. Em 1980, quando Reagan foi eleito presidente, os CEO das grandes empresas ganhavam 35 vezes o salário do trabalhador médio. Em 1992, quando Clinton prometeu limitar a remuneração dos executivos, os CEO ganhavam 109 vezes mais do que um trabalhador normal. Em 2000, o último ano da presidência de Clinton, o rácio de salário tinha mais do que triplicado (de 366 para 1). Os CEO ganhavam num dia o que um trabalhador normal ganhava num ano” (p.258). Mas mais: “além de inflacionar a remuneração dos executivos, a compra de acções, como outras formas de engenharia financeira, proporcionou ganhos de curto prazo aos accionistas, mas desviou o capital do investimento a longo prazo em investigação e desenvolvimento, fábricas, equipamentos e formação de trabalhadores. A tendência para a recompra continuou através das administrações democrata e republicana. De 2010 a 2019, as empresas norte-americanas gastaram 6,3 mil milhões de dólares de recompras, capital que poderia ter sido utilizado para criar empregos e aumentar a capacidade produtiva. Parte desta verba poderia também ter sido guardada como almofada para emergências imprevistas. Nos cinco anos anteriores à pandemia da COVID-19, as principais companhias aéreas norte-americanas pagaram 45 mil milhões de dólares aos accionistas, na sua maioria em recompra de acções. Depois, esgotadas as reservas de dinheiro quando a pandemia impediu as viagens aéreas, pressionaram e receberam uma ajuda de 50 mil milhões de dólares dos contribuintes para reabastecerem os seus cofres empresariais” (p.258).
Se Margaret Thatcher tinha dito que a sua maior vitória era Tony Blair – que não contestara, nem colocara em causa, na governação que liderou, a herança que aquela deixara, apesar de se situar num plano político-partidário diverso da antiga PM britânica -; se Dwight Eisenhower irá legitimar o New Deal deixado por Roosevelt; Clinton “normalizou aspectos-chave da visão de Reagan do mundo económico (…) Optou por confiar mais nos mercados do que num governo activista. Esta linha daria o tom para decisões posteriores, definindo Clinton como um neoliberal em vez de herdeiro de FDR e de LBJ” (dirá o historiador económico Nelson Lichtenstein, p.249). Nos anos 50 e 60, o sector financeiro representava 10% a 15% dos lucros empresariais dos Estados Unidos; a meio da década de 80, 30% dos lucros das empresas; em 2001, 40% (na sequência de 2008 uma queda acentuada, mas rapidamente chegando, de novo, aos 30%; p.254).
As Administrações Clinton e Obama ratificarão e procurarão ratificar, respectivamente, e por outro lado, diversos acordos de comércio livre. Segundo Sandel, este tipo de postura custou caro a Hillary Clinton: “nas eleições presidenciais de 2016, Hillary Clinton teve um revés por conta de duas décadas de política comercial do Partido Democrata. Trump, por seu lado, que se bateu contra o NAFTA e a TPP, esteve mais forte do que os anteriores candidatos republicanos em condados que tinham perdido empregos para a China e o México” (p.251). De acordo com Aaron Blake, Trump ganhou por pouco a Hillary Clinton entre os eleitores de mais altos rendimentos, mas ganhou decisivamente entre os eleitores das zonas rurais e pequenas cidades (62% contra 34%), entre os eleitores brancos sem curso universitário (67% para 28%) e entre os eleitores que acreditam que o comércio com outros países retira, em vez de criar, mais empregos (65% a 31%) (nota de rodapé 113, p.337). Um estudo do Economic Policy Institute, de 30 de Janeiro de 2020, “estima que o défice comercial dos EUA com a China custou 3,7 milhões de empregos [aos norte-americanos] entre 2001 e 2018 (nota de rodapé 13, p.329).
Os “acordos comerciais da era da globalização contribuíram de forma modesta para o crescimento económico norte-americano: segundo uma estimativa, acrescentaram menos de um décimo de 1% do PIB. Mas reconfiguraram a economia, principalmente em benefício das empresas e das classes profissionais. Os norte-americanos da classe média e trabalhadora beneficiaram como consumidores, mas não como produtores. Graças a uma inundação de importações da China e de outros países de baixos salários, os consumidores podiam comprar televisores e roupas mais baratas no Walmart. Mas face à concorrência estrangeira, os salários estagnaram para a maioria dos trabalhadores, e os postos de trabalho da indústria transformadora desapareceram aos milhões. Entre 2000 e 2017, foram extintos 5,5 milhões de postos de trabalho na indústria transformadora. O comércio global não foi o único responsável; a automação contabilizou grande parte do declínio. Mas, de 1999 a 2011, a concorrência chinesa na importação causou a perda de cerca de 2,4 milhões de postos de trabalho norte-americanos” (p.250).
Para Clinton, questionar a globalização seria o mesmo do que pôr em causa a chuva, enquanto para Tony Blair tal redundaria em perguntar se o Outono se segue ao Verão. Thomas L. Friedman, diversamente, vê o conjunto de opções políticas como a configuração intrínseca da globalização - Fazer do sector privado o motor principal do crescimento económico, manter uma baixa taxa de inflação e estabilidade dos preços, reduzir a dimensão da burocracia estatal, manter um orçamento o mais próximo possível do equilíbrio, se não mesmo de excedente, eliminar ou baixar as restrições ao investimento estrangeiro, eliminar as quotas e monopólios nacionais, aumentar as exportações, privatizar as indústrias e serviços públicos estatais, desregulamentar os mercados de capitais, tornar a sua moeda convertível, abrir as suas indústrias, mercados de acções e obrigações à propriedade e investimento estrangeiros diretos, desregular a sua economia para promover a maior concorrência interna possível, eliminar a corrupção governamental e os subsídios tanto quanto possível, abrir os seus sistemas bancários e de telecomunicações à propriedade privada e à concorrência e permitir aos seus cidadãos escolher uma série de opções de pensões concorrentes e fundos de pensões geridos por estrangeiros. Quando se cosem todas estas peças, tem-se a camisa de forças dourada -, sendo que “a decisão de deixar o mercado decidir é, em si mesma, uma decisão política (p.255), pelo que a sua naturalização – a evocação das forças da natureza e das estações do ano – não procede, na medida em que fazer política é, necessariamente, escolher.
Em contexto de globalização, poderíamos, em qualquer caso, citar os estudos de Branko Milanovic para ponderar no facto de a desigualdade entre países ter, com aquela, diminuído, mas não assim a desigualdade no interior dos países - que aumentou. Alguns, verão algum reordenamento global, com milhões a saírem da pobreza (em latitudes, durante um ínterim de 200/300 anos, desconsideradas), como efeito a considerar; outros, sempre notarão o dumping social e de regras que não respeitam os direitos humanos na base de um crescimento económico que, ao ser assim alcançado (em se sopesando, por antonomásia, o exemplo chinês), coloca, implicitamente, sob ameaça a base de direitos económico-sociais que consideramos próprios de um mundo civilizado – ainda que sem que essas exigências lhes fossem formuladas no momento-chave de entrada na OMC.
Na Administração Obama, dá-se o caso de esta enfrentar, historicamente, uma monumental queda de grandes bancos e de os ajudar a erguer-se – e mesmo se quem liderou, como a republicana Sheila Bair, a Federal Deposit Insurance Corporation, se questione, hoje, até que ponto existiria, mesmo, à época, um risco sistémico – e, em um momento de absoluta turbulência, a decisão de resgate poderia, no limite, aceitar-se, com a condição de se ter imposto uma reformatação ao sistema que não se baseasse no financismo (no ganhar mais em especular sobre coisas, do que em fazer coisas; as finanças não são produtivas por si mesmas, mas estão ao serviço da produção; “não há provas claras de que o crescimento na escala e complexidade do sistema financeiro no mundo rico e desenvolvido nos últimos vinte a trinta anos tenha impulsionado o crescimento ou a estabilidade, e é possível que a atividade financeira extraia rendas [ganhos injustificados] da economia real em vez de proporcionar valor económico”, Adair Turner, presidente da Britain’s Financial Services Authoruty, p.261. Mais: um estudo, de 2015, do Banco de Compensações Internacionais concluiu que “o crescimento do sector financeiro prejudica o crescimento real”. Ao desviar o capital da investigação e desenvolvimento e ao retirar à economia produtiva demasiados trabalhadores qualificados, a financiarização “torna-se um entrave ao crescimento real”, p.262), o que não ocorreu, enquanto o Estado deixou que 10 milhões de norte-americanos ficassem sem casas (execuções hipotecárias; sem ajuda neste contexto) e as ajudas ao sector automóvel implicaram grandes cortes e despedimentos nestes. Assim, também, na leitura de Sandel, se aplanou caminho para o ressentimento que elegeria Trump e o seu “populismo plutocrático”: “por muito penoso que tenha sido o custo económico da abordagem de Obama à crise, o custo político a longo prazo foi muito mais prejudicial. Tendo sido eleito para a presidência, oferecendo esperança de um melhor tipo de políticas, menos dependente de interesses poderosos (…) a forma como Obama lidou com o resgate traiu o idealismo cívico da sua campanha, lançou uma sombra sobre a sua presidência e preparou o caminho para a política rancorosa e polarizada que encontraria a sua expressão negra no seu sucessor, Donald Trump. Três aspectos do resgate reforçaram esta desconfiança: pouco fez para ajudar aqueles que perderam as suas casas, permitiu que Wall Street distribuísse belos bónus e deu dinheiro aos bancos sem os responsabilizar ou reestruturar a indústria financeira. (…). Ao mesmo tempo que gastava centenas de milhares de milhões para salvar os bancos, a Administração Obama permitiu que 10 milhões de proprietários perdessem as suas casas por não pagarem as hipotecas. Isto não foi um resultado inevitável da crise financeira. Foi uma escolha política (…) A Administração Obama decidiu socorrer diretamente os grandes bancos e deixar os proprietários suportarem sozinhos a perda total (…) Obama tratou a crise financeira como um problema técnico para os especialistas resolverem, não como uma questão cívica sobre o papel das finanças na vida democrática. Esta postura alimentou o descontentamento com os principais partidos e preparou o terreno para o retrocesso populista. A ira pública relativa ao resgate encontraria outra expressão política – à esquerda, no movimento Occupy e na candidatura de Bernie Sanders; à direita, no movimento Tea Party e na eleição de Trump” (p.268).
Na coloração ideológica de cada protagonista político, importará, ainda, para lá das grandes tendências nele identificadas, ou paradigmas ideológicos em que se inscreve, ou, efectivamente, na manutenção de Administrações onde se perpetuam protagonistas que sempre sindicaram/conduziram (ajudaram a conduzir) uma determinada visão política independentemente de quem governa – e de esta se ter revelado nociva - proceder a certo distinguo que permita identificar, no mínimo, algum grau de diferenciação. Como o próprio Sandel reconhece, Trump procurou “abolir a lei dos Cuidados de Saúde Acessíveis” que vinha da Administração Obama e que permitira a milhões de norte-americanos aceder aqueles cuidados (e uma abolição, por parte de Trump, que “teria deixado milhões dos seus apoiantes da classe trabalhadora sem seguro de saúde). Ademais, Trump, seguindo as políticas “do establishment republicano” com excepção da política comercial, tratou de acabar com a protecção ambiental, visou corroer os sindicatos bem como as reformas decretadas a quando da crise financeira. A política fiscal de Trump nada teve que ver com a dos seus antecessores democratas. Colocar um único rótulo ideológico sobre todos estes diferentes protagonistas políticos, porventura, não permitirá captar suficientemente as nuances que se traduzem em plataformas políticas que transformam – para melhor ou para pior, respetivamente – as vidas de milhões de pessoas, mesmo que com isso não se aceite qualquer conformismo perante o que é preciso mudar, e mudar substancialmente e em larga escala.
Ora, a reforma fiscal introduzida por Donald Trump beneficiou, em 2/3, “um bilião e meio de dólares foram para as empresas, o que levou a um recorde de recompra de acções, mas pouco investimento gerador de emprego. Apenas uma pequena fracção da redução fiscal foi para aqueles que lutam para sobreviver. Os contribuintes de classe média receberam uma redução fiscal de 900 dólares; os 1% mais ricos receberam 61 mil dólares e os do verdadeiro topo (um décimo do 1%) receberam 252 mil dólares. O populismo plutocrático de Trump refletiu a sua base de apoio bifurcada – eleitores republicanos privilegiados que queriam menos regulamentação e impostos mais baixos, e os eleitores brancos da classe trabalhadora, especialmente homens sem formação universitária, que foram atraídos para a sua política de protesto” (p.274). E o que interessa à General Motors não é o que interessa ao país: “a maioria dos norte-americanos (87%) é a favor do gasto do «que for necessário para que as escolas públicas sejam realmente boas». Entre os multimilionários, apenas 35% concordam. Dois terços do público acreditam que «o governo deveria fazer com que todos pudessem encontrar um emprego», mas apenas um em cada cinco multimilionários pensa assim. O público quer mais regulamentação governamental das grandes empresas; os ricos, não” (p.276).
Joe Biden foi o primeiro presidente vindo dos democratas, fora da Ivy League, em 36 anos, o que para o filósofo Michael Sandel representa um factor não negligenciável na (pelo menos, aparente) sensibilidade maior ao homem comum do que ao puro academismo dos seus antecessores (vindos do mesmo partido), com as consequentes medidas e propostas legislativas que tem levado a cabo: “rejeitando a política de austeridade que inibiu o governo de fazer despesa após a última recessão, Biden decretou um pacote de ajuda COVID-19 de 1,9 biliões de dólares e, depois, conseguiu a aprovação de uma lei de um bilião de dólares para reforçar a infra-estrutura decadente do país. Pediu mais biliões de dólares para reforçar a rede de segurança e combater as alterações climáticas, mas encontrou resistência num Senado muito dividido. Além das despesas, a agende de Biden recorreu ao vigor renovado da ala progressista do seu partido, que ofereceu propostas para dar nova vida à lei antitrust, controlar as grandes tecnológicas, limitar a compra de acções, tributar a riqueza dos bilionários, restaurar parte do trabalho no produto nacional, transformar a Reserva Federal num banco público aberto aos cidadãos comuns e fazer a transição para uma economia verde” (p.287). De qualquer modo, o seu controlo sobre o Congresso é ténue e “uma consequência da maré consequencialistas é a classe trabalhadora estar hoje praticamente ausente do governo. Nos Estados Unidos, cerca de metade da força de trabalho está empregada no trabalho manual e na indústria de serviços. Mas menos de 2% dos membros do Congresso tinham tais empregos antes da sua eleição. Nas legislaturas estaduais, apenas 3% provêm da classe trabalhadora. Os eleitores brancos da classe trabalhadora que apoiaram Trump não foram os únicos norte-americanos mal servidos pelo enfoque meritocrático no ensino superior como solução para os seus problemas. Os trabalhadores das comunidades de cor também foram negligenciados por um projecto político que dá pouco apoio e estima social àqueles que aspiram a empregos que não requerem um diploma universitário” (p.282). As disparidades das despesas federais com educação são, neste contexto, eloquentes: “o país desinveste lamentavelmente nas formas de aprendizagem de que a maioria dos norte-americanos depende para se preparar para o mundo do trabalho – escolas estatais, escolas comunitárias de dois anos e formação profissional e técnica. Isabel Sawhill, economista da Brookings Institution, calculou que, em 2014, o governo federal gastou 162 mil milhões de dólares por ano a ajudar as pessoas a frequentar a universidade, contra apenas cerca de 1,1 mil milhões em formação profissional e técnica” (p.281/282).
Hillary Clinton ufanava-se, em formulação que Sandel observa como sintoma de “arrogância meritocrática”, de ter ganho “os lugares que representam dois terços do Produto Interno Bruto da América”, de ter vencido “os lugares que são optimistas, diversos, dinâmicos, que avançam” (p.281). Que explicação para a esquerda não responder à crise da desigualdade? “Ao longo de grande parte do século XX, os partidos de esquerda atraíam aqueles com menos instrução, enquanto os partidos de direita atraíam os que tinham mais. Na era da meritocracia, este padrão inverteu-se. Hoje [em muitos países], as pessoas com mais educação votam em partidos de centro-esquerda e os menos letrados nos partidos de direita. O economista Thomas Picketty demonstrou que esta inversão se desenvolveu, em paralelo notável, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em França. Picketty especula que a transformação dos partidos de esquerda de partido de trabalhadores em partidos de elites intelectuais e profissionais, desde os anos 90, pode explicar porque não responderam à crescente desigualdade das últimas décadas” (p.281).
Não há recursos para isto e aquilo, estes são limitados, os bens escassos; e, no entanto, “respondendo à devastação económica da pandemia, as nações do mundo libertaram recursos financeiros numa escala inimaginável em tempos normais”. Isso recorda a todos, na comunidade, uma lição de Keynes na sequência da Segunda Guerra Mundial – “tudo o que pudermos fazer, podemos dar-nos ao luxo de fazer” - que José Pacheco Pereira, na esfera pública portuguesa, insiste em sublinhar e que é assim exposta por Michael Sandel: “o que podemos pagar depende daquilo com que, em última análise, nos preocupamos”. A pergunta inicial – a mais política delas todas! – é com que é que nos preocupamos e jamais devemos deixar que ela seja apagada (nem inverter os termos das interrogações que a envolvem com recursos que a sustentem, até porque é o predomínio do financismo que cala as interrogações públicas fundamentais: “deverá o país investir mais em habitação, ou em educação, ou transportes públicos? E quanto à investigação e desenvolvimento de novos medicamentos, ou às tecnologias de informação, ou à energia limpa? Devemos investir em salvar as indústrias automóvel e siderúrgica, ou devemos comprar os nossos automóveis e o aço a outros países e investir, em vez disso, em indústrias de alta tecnologia, tais como a inteligência artificial e a robótica? Deveria ser atribuído mais crédito às pequenas empresas ou aos consumidores? Que equilíbrio deve haver entre investimento público e investimento privado? Escolher entre este tipo de prioridades envolve julgamentos contestáveis sobre o bem público que os políticos estavam todos dispostos a evitar, deixando os mercados financeiros decidir”, p.255).

Pedro Miranda



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