A NORMALIZAÇÃO DA DIREITA RADICAL

 
Sobre a normalização da direita radical

1.As consequências, em sangramento de vidas e em tratamento profundamente desumano de milhões de pessoas, em regimes - totalitários, autoritários, ditatoriais, no século XX, em diferentes partes do mundo - assentes em ideologias nas quais o racismo, o nacionalismo ou a xenofobia tinham lugar preponderante fizeram com que ideias, crenças, preferências políticas e sociais deste jaez (extrema-direita e/ou direita radical*) se tornassem interditos do/no espaço público.

2.Assim, e face aos padrões sociais vigentes, a expressão de preferências políticas e sociais de tipo racista ou xenófobo, por exemplo, passou a merecer séria censura (social). Em face da mesma, procurando evitá-la, evadindo-se de recriminações, quer em contexto de inquéritos sociais (de tipo científico), quer em conversações em grupos minimamente alargados, quase todos os cidadãos, em diferentes países, abstinham-se de indicar qualquer filiação em mundividências que contivessem aquelas manifestações.

3.Em virtude dos resultados de inquéritos sociais, estudos de opinião, sondagens sobre conteúdos e objectos de desejo políticos, aqueles que consideravam dedicar-se, empenhar-se, ater-se à vida política, recebiam clara indicação, dados, respostas dos seus concidadãos de que as preferências políticas e sociais associadas à extrema-direita ou direita radical não tinham (quase nenhuma) procura (eleitoral).

4.Neste contexto, o estímulo, o incentivo ao político era o de que, independentemente, até, das suas convicções últimas, não se situasse, não se apresentasse em termos do concurso partidário, em formações de extrema direita e/ou direita radical. Em assim sucedendo, a base de recrutamento de (lideranças/elites de) partidos situados neste campo político tornava-se diminuta. Em uma base de recrutamento diminuta, a probabilidade de lideranças talentosas, competentes, mobilizadoras, reduzida.

5.Um elemento chave na elaboração de Vicente Valentim, cientista político português, de Oxford, em O fim da vergonha. Como a direita radical se normalizou (Gradiva, 2024; Prémio Jean Blondel para melhor tese europeia em Ciência Política), passa por distinguir (por vezes, ou muitas vezes, dissociando) crenças políticas/preferências sociais e políticas, por um lado, e (respectivo) voto (ou abstenção), por outro. Isto é, não é por uma percentagem ainda significativa de cidadãos, em vários países (europeus, nomeadamente), votar/ter votado, preferencialmente, em partidos de centro-direita ou de centro-esquerda durante décadas (como o fez), ou, então, ter optado por se abster, que as suas crenças ou preferências sociais e políticas não eram/deixavam de ser as que correspondiam - como, em realidade, se passava - ao espaço ou conteúdos de extrema-direita ou de direita radical. Não é por uma pessoa ter uma dada ideia política que vai, necessariamente, agir com base nela – eis um ponto central da tese do cientista político – nota, esta, diferenciada da mera preferência por explicações de tipo económico – a grande recessão como causa explicativa total dos votos na direita radical ou extrema direita – ou explicações de tipo cultural – as vagas de imigração/mudança demográfica como causa explicativa total para os mesmos efeitos, como o autor regista acontecer, de forma hegemónica, na sua área disciplinar de especialização.
Num movimento (explicativo) circular, temos, assim, que muitos cidadãos, dadas as normas sociais tendentes a repelir preferências de tipo racista ou nacionalista, escondiam, em inquéritos ou estudos de opinião, as suas reais crenças políticas, dando um sinal e incentivo para que os (mais talentosos/competentes/mobilizadores) políticos se fixassem em outras faixas ideológicas que não as de extrema-direita e direita radical, encontram-se, então, por altura da eleição, tais cidadãos, imbuídos da (sua) descrença nas possibilidades daquilo que, em rigor, acreditavam poder ser ativado e traduzido politicamente  - por actores políticos que concebiam como menores - e, para lá de se julgarem sozinhos nas crenças que possuíam (a mentira ou dissimulação nas respostas a inquéritos, sondagens, discussões públicas a tal conduzia), desta sorte optando por forças partidárias mainstream ou, então, pela abstenção.
 
6.Grande parte dos eleitores que, nos anos mais recentes, votaram AfD na Alemanha (em 2017 pela primeira vez no Parlamento; com uma ascensão sob a liderança de Frauke Perry, com doutoramento em Química, tendo sido empresária e integrado a Direcção do Fórum de Jovens Químicos da Sociedade Alemã da Química), UKIP na Grã-Bretanha (entra no Parlamento em 2015), ou Chega em Portugal (em 2019, acede à Assembleia da República, com 1,3% dos votos; 7,2% em 2022; 18% em 2024) não é que tenham mudado de ideias, opiniões, crenças ou preferências políticas (nos últimos tempos). Essas crenças políticas, essas preferências sociais e políticas sempre lá estiveram**; agora, houve, sim, quem – pessoas, circunstâncias, lideranças políticas em especial; estas últimas consideradas, consensualmente, hábeis e com percursos académicos prolongados*** - as conseguisse ativar/legitimar no espaço público e partidário (de resto, o crescimento eleitoral, da direita radical foi tão acelerado, em tão poucos nos, que, em realidade, e em constatação objectiva, não deu tempo, sequer, das pessoas, mudarem de ideias; se vindicássemos ideias políticas cingindo-nos, apenas, aos resultados eleitorais iríamos concluir que preferências sociais e políticas de direita radical em Espanha, em 2016, por exemplo, correspondiam apenas a 0,2% do eleitorado…Com a entrada destes partidos nos respectivos parlamentos nacionais, os estigmas associados a ideias, crenças, preferências políticas e sociais que perfilham, do racismo à xenofobia, tendem, naturalmente, a enfraquecer. E, mais, “a participação em protestos, exposição de ideias discriminatórias em discussões com amigos ou o uso de símbolos de direita radical” tendem a aumentar). Para o caso português, Vicente Valentim, académico que podemos notar francamente elogiado por pares de grande relevo internacional na área da Ciência Política como Daniel Ziblatt ou Ben Ansell, faz, pois, uma interpretação do voto no Chega, em medida considerável (mesmo que não exclusiva) não como voto de protesto, mas, bem ao invés, enquanto voto de adesão ao tipo de preferências por aquele partido expressas. Rematando, de resto, com o óbvio ululante que muitos, contudo, pretendem negar ou dissolver: quem votou Chega, ainda nas mais recentes legislativas, no mínimo, não se importou de sufragar quem desenvolveu um discurso e propostas, ao longo da sua breve história, em que elementos de índole racista foram muito vincados – maxime, a obscena proposta de confinamento (guetização) de uma dada comunidade étnica durante a pandemia da covid19. Se quem votou no Chega – primeiro partido de direita radical a entrar no Parlamento depois do 25 de Abril de 1974 - não o fez (primordialmente) por causa de propostas como a vinda de enunciar, no mínimo não se importou de aderir, nas urnas, a uma força partidária que teve um discurso e propostas como a acabada de aludir.
 
7.O crescimento eleitoral dos partidos de direita radical é um dos mais relevantes desenvolvimentos políticos das últimas décadas e, para os quais, não raro se desenvolvem explicações de tipo monista, claramente insuficientes: por exemplo, quando se identificam as redes sociais como factor determinante no ascenso da direita radical, ignora-se que Jorg Haider surge como líder da força política mais votada na Áustria bem antes de daquelas, sequer, existirem; o caso português do Chega de André Ventura – com doutoramento em Direito, tendo sido professor em duas universidades, ex militante do PSD, debatente em canal televisivo de cabo de questões desportivas e criminais - vem muitos anos após as redes sociais serem, já, uma realidade. Choques como uma forte crise económica, uma chegada repentina e massiva de imigrantes/refugiados, uma pandemia, um ataque terrorista podem ser ocasiões que fazem sinalizar (por banda de alguma opinião pública) a empreendedores políticos a oportunidade de lançarem um discurso/proposta que vai contra os padrões sociais vigentes, sendo que para os - ao discurso/proposta e ao seu eleitorado adormecido - ativar terá que utilizar linguagem que vá contra tais normas - para que os seus eleitores possam sentir-se confortados nas preferências políticas e sociais que possuem e creiam na (suposta) autenticidade da sua enunciação (em Espanha, o Vox, de Santiago Abascal, formado em Sociologia e membro do Partido Popular durante anos, fará da quebra do que afirma serem “tabus” societários a sua verdadeira matriz identitária – por exemplo, defesa da reversão da mudança de nomes de dirigentes franquistas dados a ruas entretanto redenominadas nas cidades espanholas; o líder da AfD na Turíngia, Bjorn Hocke, chamou ao memorial do Holocausto em Berlim “o memorial da vergonha”; Nigel Farage, do UKIP, disse ser o representante daqueles que não pretendem imigrantes a viver perto de si, e que ficaria muito preocupado se uma família de imigrantes romenos, grupo discriminado na sociedade britânica, se mudasse para junto de sua casa). Em muitos países, assiste-se, por outro prisma, à hibridização da direita radical com a direita tradicional (a que actores políticos relevantes, da última década e meia, no nosso país, não parecem alheios, antes surgindo como proto-candidatos a encabeçar, entre nós, tal inclinação política). Vicente Valentim, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, regista que “o crescimento eleitoral da direita radical torna as sociedades mais polarizadas e até pode causar um aumento dos crimes de ódio”, paralelamente a “um incremento da quantidade de comportamentos xenófobos e discriminatórios”. E, bem assim, o seu êxito eleitoral tende a tornar mais sedutora a entrada de políticos nesta plataforma – que passa, por consequência, a ter uma fonte de recrutamento de pessoas com maior preparação (técnico-científica com liame político) mais alargada (no Reino Unido, alguns conhecidos políticos do Partido Conservador passaram-se para o UKIP e estamos a ver, em Portugal, um fenómeno parecido com o Chega a arregimentar alguns políticos de partidos de direita tradicional).  
Entre a quebra de tabus e o à vontade de expressão de dadas preferências políticas, em um dos pratos da balança, e as pessoas (e grupos sociais) atingidos por esse alargamento do que é socialmente legítimo dizer-se publicamente, em um outro sopesar, Vicente Valentim não hesita na sua preferência ao nível do padrão de valores: “parece-me impossível ver um aumento do à-vontade em expressar ideias de exclusão como sendo normativamente mais importante do que os direitos e a protecção dos grupos que saem prejudicados por essa expressão e o ódio a que ela incita” (p.144).
A estigmatização e contenção de crenças, preferências políticas e sociais – como as do racismo, nacionalismo, xenofobia – de direita radical ou extrema-direita terá sido o produto de “um momento histórico específico” e, segundo prognostica o cientista político, “é improvável que seja possível reverter o processo de normalização” (p.145; os partidos de direita radical/extrema direita na Holanda, por exemplo, no Parlamento desde 2002, tiveram momentos de maior e menor sucesso eleitoral, mas as ideias que se inserem naquela linha política mantiveram-se sempre presentes nestes últimos 22 anos nos Países Baixos). Com base em estudos anteriores no âmbito das Ciências Sociais, o ensaísta propõe “programas [dirigidos às populações] que enfatizam as semelhanças entre a situação de uma determinada pessoa e a dessas minorias” [objecto de depreciação por parte de discursos e propostas presentes no espaço público no qual a direita radical/extrema direita estão integradas], bem como “programas de educação para a democracia, que também se têm vindo a provar eficazes para promover a adesão aos valores centrais desse regime [democrático] e a rejeição de ideias ligadas ao autoritarismo” (p.149).

 

Pedro Miranda

 

* “É comum fazer-se uma distinção entre direita radical e extrema-direita, segundo a qual a primeira aceita as regras do jogo democrático, enquanto a segunda se opõe abertamente à democracia enquanto forma de governo. Apesar de obviamente importante no contexto de muitos estudos e discussões, esta discussão não é de particular relevância para o enfoque” que aqui se segue (Vicente Valentim, O fim da vergonha, Gradiva, 2024, p.40)

**Experimentem perguntar a alguém das suas convicções sobre a imigração. Independentemente das que sejam, tendem a ser estáveis ao longo do tempo – aponta Vicente Valentim. O mesmo se diga em tópicos como os do interesse pela política, confiança nas instituições e até preferência por diferentes tipos de política de saúde (p.30). Tal não significa, bem entendido, que as pessoas nunca mudam de ideias políticas – porque observamos como, por vezes, isso acontece. Nem, tão pouco, subsume todo o voto na direita radical ou extrema direita a um processo de normalização (quer de violação do que eram tabus sociais, como racismo, quer na entrada para o Parlamento de forças partidárias desta área política e, com eles, maior desinibição em expressar o que antes era proibido e em mobilizar uma maior base de recrutamento e competências). O que se pretende dizer é que tal manutenção, desde sempre, das mesmas ideias, crenças e preferências políticas e respectiva normalização explicam uma parte significativa do crescimento de tais partidos (p.143).

*** “como estudos anteriores têm vindo a mostrar, as pessoas com mais escolaridade costumam envolver-se mais em actividades cívicas, possuem mais capital humano e, quando eleitas, têm maior capacidade de promover o crescimento económico” (p.68)




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