QUE "POLÍTICA DECENTE"? (MICHAEL WALZER)

 

Escrito durante a pandemia, apenas com acesso à biblioteca de casa, “A luta por uma política decente”, sem notas de rodapé (ainda que com bibliografia), procura ser uma viagem pessoal – judaísmo, academia, social-democracia, comunitarismo liberal… - do filósofo Michael Walzer pelos grandes tópicos da política contemporânea

 

1.Da mesma forma que Jason Brennan em “Contra a democracia” (Gradiva, 2017), relativamente ao vocábulo “epistocracia” -  seja social-democrata, mas um social-democrata epistocrata (conhecedor), seja um democrata-cristão, mas seja um democrata-cristão epistocrata (conhecedor)…-, Michael Walzer, em “A luta por uma política decente” (Gradiva, 2023) usa como adjectivo o “liberal” que tanto apõe a comunitarista, como a conservador, nacionalista ou socialista – seja um comunitarista, mas um comunitarista liberal; seja um conservador, mas um conservador liberal, seja um socialista mas um socialista liberal, seja nacionalista, mas um nacionalista liberal
Na acepção convocada por Walzer no seu mais recente ensaio, liberal vem a significar a qualidade do compromisso político (enquanto) não dogmático ou intolerante, antes intrinsecamente democrático e pluralista (assumido pelo cidadão); capaz de viver com a ambiguidade; não fanático. Assim, neste sentido, a descrição do liberal “é mais moral do que política ou cultural” (e o seu oposto, iliberal, implicará, diversamente, uma abordagem, às questões que se colocam na polis, monista e de tipo repressivo - para o autor, uma postura claramente indesejável).
À porventura mais polissémica das palavras do nosso léxico político (“liberal”), o filósofo de Princeton aduz a memória perdida da raiz mais antiga do conceito – “a palavra descreve uma vida de cultura e ócio – não o ócio dos indolentes, antes um compromisso reflexivo e sem pressa com as «artes liberais» e a aprendizagem clássica. Antigamente, um cavalheiro e, por vezes, uma dama, não eram apenas detentores de uma posição na hierarquia social, eram também, e mais importante ainda, pessoas com maneiras gentis e uma mente curiosa” (pp.15-16) – e convoca um conjunto de autores (de Szymborska a Philip Levine) que ajudam a preencher o particular modo que o pensador norte-americano possui de o articular (isto é, de conceber o conjunto de “qualidades” que, em seu entendimento, o compõem): “a generosidade, a compaixão, o humor e a ironia doce (…) sem excluírem a raiva e um realismo feroz” (p.16).
Por curiosidade, o adjectivo libertário, na sua mais remota configuração, ficou associado a escritores como o revolucionário russo Peter Kropotkin e a grupos como os anarquistas espanhóis da década de 1930: “para eles, a palavra descrevia uma política de esquerda de cooperação espontânea entre indivíduos livres e iguais” (pp.13-14).
 
2.Se a democracia exige e reclama o consentimento dos governados, a ausência desta anuência por parte de mulheres, de escravos ou dos não nascidos na cidade (ou sem pai ou mãe a esta pertencentes) faz com que a democracia, desde o seu princípio, em Atenas, tenha ficado “ensombrada”: “a primeira democracia não-democrática da história foi Atenas, e o estadista Péricles (495 a.C.-429 a.C.) foi provavelmente o primeiro, e certamente o maior, democrata não-democrático” (p.19). A luta pela inclusão de diferentes grupos que importa que sejam considerados (no) demos acaba por se constituir como um elemento determinante do próprio processo democrático: “a luta eterna é o preço da democracia” e, aliás, inclusivamente após tais grupos e pessoas serem incluídos é necessário que continuem a ser defendidos para alcançarem uma consideração social como aquela de que beneficiam os demais cidadãos (desde há muito).
 
3.Se a Atenas de Péricles não possuía escolas públicas, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) considerava-as essenciais. Em realidade, e em nosso tempo, uma educação liberal é essencial e indissociável de uma democracia liberal – “existe uma ligação estreita entre democracia liberal e educação liberal – uma ligação desenvolvida pela primeira vez por John Dewey (1859-1952), que foi o filósofo da América do mesmo modo que Aristóteles o foi de Atenas” (p.43). Para Dewey, uma educação ajustada a uma cultura democrática opunha-se às várias formas de rigidez do ensino tradicional – como a da presença de professores autoritários (“as aulas do ensino secundário devem ser lugares onde se fala livremente (…) Os professores liberais saberão impor a disciplina que torna possível a aprendizagem sem reprimir as mentes curiosas dos seus alunos adolescentes”, p.158) -, sendo favorável a que os discentes aprendessem ao seu próprio ritmo, participassem na tomada de decisões curriculares e fossem encorajados a ter pensamento crítico – tal “era a preparação correcta para uma cidadania democrática”.  As escolas aptas a impulsionar cidadãos para o exercício democrático seriam capazes, pois, de formarem “mentes curiosas, que poderiam não ser nacionalistas ou comunitaristas, mas que seriam bons patriotas constitucionalistas”. O que dificilmente se compagina com o credo democrático é “a existência de milhões de cidadãos que acreditam em «factos alternativos» e teorias da conspiração”; tal, “sugere fortemente que as nossas escolas não estão a produzir realistas cientificamente educados e rigorosos em número suficiente”. Em face desta realidade, “neste momento, o que parece mais necessário é reforçar a educação naquilo a que poderíamos chamar empirismo crítico: o que são factos, como funciona a ciência, o que significa «verdade» e como detectar mentiras. Temos de encorajar os professores a envolverem-se com os seus alunos nestas questões em tudo o que ensinam, desde a Biologia e a Física à História e ao Inglês. É provável que isso seja mais urgente do que o ensino da diversidade, da identidade, ou mesmo acerca da teoria crítica da raça” (p.44).
De outro prisma, professores liberais escreverão manuais escolares que permitam aos docentes terem espaço para as suas próprias iniciativas (ou seja, não devem censurar a forma como os professores ensinam) e que convidem os alunos a pensar criticamente (não devem ter como objectivo a doutrinação política) (p.158). Sem cancelamentos (nomeadamente, mas não de forma exclusiva, na Academia): “[os professores liberais] precisam de dizer aos seus colegas e aos seus alunos que a academia é um lugar e a educação um processo em que as crenças fundamentais de uma pessoa e as opiniões recebidas são constantemente desafiadas, e por vezes os desafios magoam. Qual é a resposta correcta a um professor que, segundo um dos seus alunos, subestima o horror moral do comércio de escravos? Escreva um artigo sustentado por investigação cuidadosa e argumentos sólidos que mostre que esse horror está certo. Junte-se à discussão em vez de tentar reprimi-la” (p.157).
Nas escolas liberais haverá professores bem pagos – “nos Estados Unidos, são manifestamente mal pagos, excepto em algumas cidades onde formaram sindicatos poderosos” (p.46) –, alguns dos quais intelectuais – “os professores e intelectuais têm uma profissão ou vocação, não uma ideologia ou um credo particular (…) Antigamente, antes da era da especialização, os professores e o tipo de pessoas a que hoje chamamos intelectuais eram (…) homens, e mais raramente, mulheres, de ócio (…) Lewis Coser define o intelectual académico como alguém «que lê livros fora da sua área» (…) O que distingue os verdadeiros intelectuais (…) [é] aquilo a que Ignazio Silone chama a sua «consciência crítica». Observam o mundo com um olhar de oposição ou, pelo menos, com um olhar independente: não devem nada aos poderes instituídos. São, quase profissionalmente, críticos sociais” (pp.147-148 e 160) - e deseja-se a formação de alunos “suficientemente inteligentes para detetarem o fanatismo [que possa advir de um docente mal formado] ou suficientemente impermeáveis para o ignorarem. Não parece que precisem de protecção administrativa” (p.155).
 
4.Uma das mais importantes questões que se têm colocado, ao longo dos anos, e com especial premência, hoje por hoje, às nossas democracias é se elas são (devem ser?) compagináveis com forças ou movimentos políticos, que nelas se arreiguem, que visam a destruição daquelas. Michael Walzer coloca, com clareza, as principais indagações que estão em cima da mesa neste domínio: “até que ponto [qual o grau de elasticidade] a sociedade civil deve ser aberta? (…). Haverá espaço numa democracia liberal para partidos e movimentos antidemocráticos se organizarem e causarem agitação? Será que a liberdade de expressão constitucionalmente garantida inclui o discurso do ódio? (…) Gostaria de me ocupar um pouco com a questão de saber se a defesa absolutista destas liberdades é exigida pelo adjectivo “liberal”” (p.36). Muito embora, segundo acredita o filósofo político, a “opinião comum” responda afirmativamente às perguntas vindas de enunciar, “sem dúvida que «absoluto» e «liberal» são palavras que não combinam uma com a outra. A afirmação do senador Barry Goldwater de que «o extremismo na defesa da liberdade não é um pecado» não parece ser o início de um argumento liberal (…) Um pouco de cepticismo em relação ao absolutismo das liberdades civis, um reconhecimento de possíveis (não muitas) excepções [Walzer dá o exemplo da marcha neonazi, em Skokie, localidade do Illinois onde viviam muitos sobreviventes do holocausto, em 1978, em que o objetivo era lembrar e fazer temer o regresso do nazismo ás suas vítimas e que, contra todos os esforços das autoridades da cidade, a União Americana das Liberdades Civis defendeu e ganhou o processo legal – apesar de a marcha, depois, nunca se ter vindo a efetivar], serviriam a causa da democracia liberal” (p.37).
 
5.Em “O Livro Aberto: leituras da Bíblia” (Cotovia, 2015), Frederico Lourenço retomava os limites culturais e éticos das nossas sociedades – a propósito da circuncisão: pode um pai impô-la a um filho (sobretudo, ainda que não exclusivamente, no contexto cultural do judaísmo, mas em sociedades demo-liberais)? -, com um interessante caso de estudo – aquele que, neste contexto do corte de prepúcio a um rapaz por indicação paterna, em 2011, foi levado aos Tribunais alemães, “tendo ocasionado legislação oriunda de um tribunal de Colónia que (…) procurava defender a integridade física dos bebés do sexo masculino nascidos de pais judeus” (p.53). Todavia, a “tentativa de proibir a circuncisão foi de tal forma contestada pela comunidade judaica que o legislador alemão teve de recuar, sob pena de incorrer na acusação de anti-semitismo”. Com a prática da circuncisão (no caso descrito, nomeadamente) não há, para futuro, diminuição do prazer sexual (experimentado por quem se submeteu, ou foi submetido, a tal prática), a anestesia, por sua vez, evitará dor (no momento da circuncisão) e, em assim sendo, possivelmente a resposta atinente à possível violação da dignidade humana no caso em apreço poder-se-á afigurar menos clara, ao intérprete, do que a que imediatamente o impele a manifestar-se no caso da mutilação genital feminina.
Agora, em “A luta por uma política decente” podemos observar como Michael Walzer, um judeu educado numa congregação reformista de uma pequena cidade da Pensilvânia [um judeu para o qual é mais relevante o foco no Sinai do que em Auschwitz, o centrar os judeus mais como agentes do que como vítimas, embora a escravidão no Egipto e a Shoa sejam uma memória e reflexão permanentes e integradoras da identidade judaica como Walzer a compreende), se pronuncia favoravelmente – quer dizer, como respeitando esta a humana dignidade – à circuncisão, mas daí retira consequências para o problema da mutilação genital feminina: por analogia, nesta, só os casos mais graves devem ser condenados, admitindo, portanto, como legítimas as formas mais leves daquela prática – “[o Estado deve] proibir as formas mais extremas de mutilação genital – mas não as formas mais leves, uma vez que a circuncisão masculina é (e bem) permitida” (p.136).
Relativamente ao modo, a nosso ver extravagante e errado, como as questões que confinam com o relativismo ético ou cultural são tratadas, em situações exemplares, pelas instituições dos EUA, atente-se nos seguintes dois casos: “As comunidades Amish são autorizadas pelo Supremo Tribunal a pôr termo à educação dos seus filhos vários anos antes da idade legal de abandono escolar: os anciãos argumentaram que as crianças só precisavam de saber um certo número de coisas, e o Tribunal concordou [vide, em anos recentes, no que à realidade nacional diz respeito, a decisão de uma magistrada quanto ao caso de uma menina de etnia cigana que abandonou a escola precocemente, gerando uma justa e contundente crítica na opinião pública, e no meio jurídico, portuguesa]. (…) O exemplo mais revelador de tolerância ou, neste caso, de conciliação, é a existência da aldeia ultra-ortodoxa (Haredi) de Kiryas Joel, a cinquenta quilómetros a norte da cidade de Nova Iorque. Como pode haver uma aldeia ultra-ortodoxa, uma aldeia religiosa, num Estado secular? O direito de propriedade privada permitiu a criação de um enclave de casas, todas propriedade de judeus Haredi, e o estado de Nova Iorque permitiu o registo do enclave como uma aldeia autónoma – e também, surpreendentemente, como um distrito escolar público. A discussão sobre o distrito escolar foi até ao Supremo Tribunal, que decidiu que a «atribuição de poder a um grupo de cidadãos que partilham a mesma fé» não é o mesmo que a «atribuição de poder a uma instituição religiosa». Nenhuma sinagoga ou yeshiva Haredi pode gerir uma escola pública, mas uma aldeia Haredi pode fazer exatamente isso – o que, dadas as opiniões dos líderes religiosos (e políticos) da aldeia sobre a educação de rapazes e raparigas, deveria ser mais preocupante do que o tribunal reconheceu” (p.175).
No desenvolvimento do princípio da laicidade como articulado nos EUA, se estes exemplos, acabados de explicitar, nos desafiam de sobremaneira, já a indicação de incompatibilidade do liberalismo com feriados (civis) adstritos a uma dada confissão religiosa se afigura tão (compreensivelmente) defensável quanto o compromisso pragmático de aos Domingos as repartições públicas não estarem abertas – mau grado o estado não possuir religião – bem como o financiamento de árvores de Natal, entre outras atividades associadas à mesma festividade cristã ser uma realidade não contestada por (praticamente) ninguém. Mais relevante, ainda, na dimensão paradoxal e complexa do emaranhado que se prende com o princípio da laicidade: Walzer reconhece que a frase bíblica, invocada por Martin Luther King Jr. no espaço público norte-americano, “que descreve os seres humanos como «criados à imagem de Deus» parecia funcionar bem na nossa política democrática – nunca ouvi ateus convictos a objetar (…) Representa mais um compromisso com uma ideia religiosa amplamente partilhada – e, para as pessoas de esquerda liberal, politicamente útil. Mas outras ideias religiosas, como o valor da vida, ou a assistência aos pobres, por exemplo, também têm sido invocadas com sucesso no discurso político americano. O discurso secular com frases religiosas funciona provavelmente melhor do que o discurso apenas secular, pelo menos na América. As exigências culturais do separacionismo não proíbem referências religiosas no nosso discurso político, desde que as minorias religiosas ou quaisquer outras minorias não sejam condenadas ou excluídas. A «criação à imagem» não exclui ninguém” (p.180).
 
6.Se, infelizmente, as batalhas pelas alterações climáticas, travadas neste momento, não estão “a ser ganhas em algum lugar, até agora os registos mostram que as melhores respostas, ainda que lamentavelmente inadequadas, vieram de Estados com governos democráticos liberais ou sociais-democratas (ou de Estados com uma tradição de regulação estatal produzida por governos sociais-democratas no passado). Um Estado forte e democraticamente responsável parece ser o agente mais provável para o compromisso ambiental” (p.79).
 
7.Que níveis de desigualdade são aceitáveis em uma democracia liberal que funcione adequadamente? Michael Walzer responde com exemplos concretos: que alguém consiga comprar férias mais caras, colecione primeiras edições de livros raros, aceda a peças de última moda e o cidadão médio não, “tudo isto é compatível com uma sociedade justa”. Já quando só alguns conseguem comprar cuidados de saúde, obter representação legal (minimamente eficaz) ou ter influência junto de agências governamentais, aí a sociedade afasta-se do justo e de uma democracia liberal com robustez bastante.
Um dos tópicos muito presentes na discussão na esfera pública, em nossos dias, e muito particularmente nos EUA, prende-se com a devida consideração e auto-estima dos trabalhadores (assim, também, os últimos ensaios de Fukuyama ou Sandel). Ora, Walzer recorda, neste seu mais recente livro, o que imaginaram como ideal os socialistas ou sociais-democratas que acredita(ra)m no mercado desde meados dos anos 80/90 (nomeadamente, no que publicaram na revista Dissent, da qual este homem de esquerda foi responsável editorial durante mais de três décadas, ele que sempre procurou compatibilizar escolha com dissidência [“o movimento é sempre mais importante do que a finalidade”, quer dizer mesmo para os que partilham um determinado objectivo/desígnio político, tem que haver espaço para discordância e não observar a finalidade em termos absolutos e monolíticos, de acordo com esta perspectiva], entendeu que os fins não justificam meios iliberais e verificou como (actuais) governantes iliberais acusam seus compatriotas de estarem contra o próprio país, o que no passado não acontecia mesmo quando o quadro esquerda-direita tinha contornos mais nítidos e dividia amplamente), quanto à organização económica da sociedade e ao tipo de empresas nela patentes: “uma mistura de empresas, sociedades e de redes de formação de negócios. Haveria indústrias socializadas, organizadas a diferentes níveis (nacional, municipal) e geridas de diferentes formas. Algumas teriam conselhos de administração com representantes dos trabalhadores e dos consumidores, bem como de investidores; outras teriam conselhos de administração nomeados pelo governo que teriam de lidar com sindicatos fortes. Haveria também empresas detidas pelos trabalhadores, cuja autodeterminação colectiva produziria resultados de mercado diferentes. Algumas seriam geridas de forma eficiente, outras não; algumas escolheriam a qualidade de vida em vez da produtividade; algumas investiriam os seus lucros em novas tecnologias, outras em centros de dia ou em infantários para os filhos dos trabalhadores. Os trabalhadores-proprietários acabariam por ter rendimentos diferentes, tal como os proprietários privados dos nossos dias, mas há evidência importante de que teriam um sentido de auto-estima muito maior do que os empregados que não participam na tomada de decisões colectivas. E, evidentemente, todos estariam protegidos por um Estado-providência forte” (p.77).
Quanto a políticas de acção afirmativa, Walzer considera-as “uma boa política social-democrata”, “útil”, mas desconstrói o seu impacto estrutural social, expondo as suas limitações: “tem de ser acompanhada por transformações a longo prazo na educação, na habitação e no emprego. Por si só, a acção afirmativa não altera o carácter hierárquico da sociedade capitalista: apenas move algumas pessoas para posições mais elevadas. Torna a hierarquia mais defensável, mas ainda não uma sociedade justa” (p.70).
 
8.Iliberal é, em definitivo, eliminar ou reprimir alguém por ter pertencido, ou pertencer à elite. Se, não raramente, um conjunto de autores faz remontar o populismo ao século XIX, em diferentes países, Michael Walzer vê a concretização do mesmo num personagem de Shakespeare do século XV (procurando tornar operativo um conceito, normalmente descrito como oposição entre as elites más e corruptas e o bom e puro povo, a uma época na qual ainda não havia sido formulado…mas cujas atitudes e discurso padeciam, de alguma forma, de idênticas características): “personagem de Jack Cade, um populista do século XV que, apontando para um clérigo e dirigindo-se a uma multidão, gritava: «Fora com ele! Fora com ele. Fala latim»” (p.57).
Baseado na doutrina clássica de John Stuart Mill de não intervenção, Walzer manifesta-se – enquanto comunitarista liberal, como se define -, tendo, ainda, como pano de fundo a questão da guerra do Iraque, pelo não derrube de um regime autoritário por forças exógenas às daquele Estado (“o derrube de um regime autoritário tem de ser obra dos seus súbditos. Liberais e esquerdistas poderiam ajudar com apoio político e moral e cada indivíduo poderia juntar-se à luta como voluntário, mas os exércitos estrangeiros deveriam ficar de fora, uma vez que era improvável que fossem capazes de estabelecer e sustentar um governo democrático”, p.63).
 
9.A recuperação da centralidade do Estado-nação como casa da democracia, tal como em diversos ensaios de filosofia política em anos recentes, é, igualmente, promovida por Michael Walzer: “as cidades-Estado e os Estado-nação são a casa natural da política democrática, aliás, a sua única casa”. E foi no Estado-nação, e só aí, que os social-democratas conseguiram alcançar “vitórias políticas significativas” – “David Miller já o disse repetidamente e bem: «os Estado-providência – e, na verdade, os programas de protecção dos direitos das minorias – sempre foram projectos nacionais, justificados pelo facto de os membros de uma comunidade deverem proteger-se mutuamente e garantir igual respeito uns pelos outros” (p.85). Se estas formulações nos podem parecer sempre aquém do necessário quanto a uma rede de protecção alargada globalmente, Walzer deixa um exemplo forte dos limites de solidariedade verificados historicamente (o que, evidentemente, não significa a impossibilidade lógica da sua superação, mas são um marco de um constrangimento que não pode ser negligenciado em função de uma pura ordem de volição): é por os Estados Unidos serem a grande “não nação” que neles o Estado Providência é mais fraco e de pior qualidade, de entre o mundo desenvolvido (“os anos de glória da social-democracia foram também anos em que o Estado-nação europeu era forte e em que a sua política refletia um sentido de cidadania partilhada e de reciprocidade. Em contraste, os Estados Unidos, a grande não-nação, são um dos Estados-providência de pior qualidade do mundo ocidental” (p.85).

Pedro Miranda




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