E ASSIM VAI O MUNDO...

 

E assim vai o mundo…

Em Itália, na semana passada, o administrador de uma empresa estatal que fornece software a alguns dos mais importantes institutos públicos transalpinos, como a Segurança Social, teve de demitir-se na sequência do conhecimento público do email, por aquele enviado, mal foi nomeado para tal chefia, aos demais membros do conselho de administração: nem mais, nem menos do que uma missiva na qual se citava, extensamente, um dos mais terríveis discursos de Mussolini, no qual este se gabava do assassínio de um político socialista, momento hoje considerado pelos historiadores como fulcral na instauração da ditadura naquele país. Ao mesmo tempo, soube-se que um vice-ministro italiano, numa despedida de solteiro, não encontrou melhor ideia do que vestir-se com farda nazi. Impressiona, de sobremaneira, como alguns decénios após ideologias e personalidades políticas que levaram a humanidade ao abismo se encontra um clima (axiológico-político) que leva a que haja pessoas com grandes responsabilidades públicas a enveredar por tais condutas e a louvar-se em tais ideologias e políticos (do passado).

Por sua vez, na Coreia do Sul, foi apresentado, também na semana que passou, um projecto-lei, apoiado pelos principais grupos económicos do país, que pretendia passar o horário de trabalho máximo permitido para as 69 horas semanais (das 40 horas semanais + 12 horas extra hoje permitidas, passar-se-ia, então, para 40h+29h). O projecto-lei foi chumbado, sobretudo com a oposição dos jovens trabalhadores que supunham que em vez de uma possibilidade – e a compensar em períodos de menor procura – fossem, mesmo, obrigados a trabalhar esse tempo semanal. Apenas 40% dos trabalhadores sul-coreanos cumpriram, no ano que passou, as férias a que tinham direito. Depois de tantas e tão duras lutas por horários de trabalho condizentes com um tratamento humano digno, não deixa de causar perplexidade que exista uma atmosfera susceptível (mesmo na muito workaholic Coreia do Sul) de permitir que se avance com projectos-lei desta natureza (mesmo que, depois, chumbados).

Em Israel, assiste-se, desde há semanas, a inúmeras manifestações de rua, com centenas de milhares de pessoas, contra a tentativa de a coligação governamental aprovar uma reforma do poder judicial que permita, nomeadamente, ao Parlamento suplantar o veto do Tribunal Supremo do país, ou que o Governo passe a ter um papel reforçado na nomeação de juízes. Muitos manifestantes que podemos escutar ou ler nos meios de comunicação social, nestas mais de 10 semanas sucessivas de protestos, mostram-se muito preocupadas com o facto de a separação de poderes poder ficar em causa e, com ela, a própria democracia liberal. Mais uma vez a transformação da democracia a partir de dentro e a sua declinação em "democratura" parece emergir - embora e, ao mesmo tempo, sinal de esperança na luta de tanta gente pela democracia. Neste contexto, não faltaram, em diferentes cidades israelitas, cartazes onde podia ler-se “Isto não é a Polónia”, uma referência a um país onde estes problemas da independência do poder judicial – a par com outras capturas de árbitros do sistema por parte do poder executivo – tem colocado graves entraves a que os polacos possam viver hoje num regime que seja considerado, como não o é, uma democracia liberal. A par da Polónia, os conhecidos casos de Hungria, Índia, Turquia, Filipinas (além de outras tantas interrogações sobre as actuações, nos anos mais recentes, e neste contexto, de governos eslovacos e maltês, e os ataques às instituições-charneira de um Estado de Direito Democrático por parte de Donald Trump e Jair Bolsonaro, durante as suas presidências, nos EUA e Brasil respectivamente).

Das últimas semanas, vem a enésima ilustração e concretização de um recuo na vivência democrática em diferentes regiões do globo. No México, o presidente López Obrador cortou em 1/3 o orçamento do INE, o instituto que regula as eleições naquele país, depois de o ter procurado extinguir (sendo que a reforma constitucional não avançou a esse nível; ficando, pois, a cabo de uma lei a machadada no referido instituto). A segunda instituição em que os mexicanos mais confiam fecha, assim, portas em diferentes partes do México, despedirá mais de 6 mil funcionários e as próximas eleições passam a estar rodeadas de uma sombra perturbadora. Se Trump e Bolsonaro, em anos recentes, lançaram dúvidas, de forma sistemática e sem sustentação, não sem evidente dolo, sobre os resultados eleitorais nos respetivos países que lideraram (mesmo a meses das eleições, e depois destas), Lopez Obrador – num país em queda económica acentuada apesar do forte investimento e deslocalização de empresas chinesas com o intuito de continuarem a vender para os EUA e dominado pelos cartéis de droga – foi ao ponto de diminuir, “cortar”, desqualificar a agência estatal responsável pelos atos eleitorais. Para Fareed Zakaria, no Washington Post, a motivação para que isto ocorresse teria uma forte componente narcísica (a par da manutenção do seu partido no poder), na medida em que o agora presidente mexicano havia concorrido e perdido em anteriores atos eleitorais (já durante este século), atribuindo, sem evidências nem corroboração de outras entidades, essas derrotas aquela agência. Lopez Obrador, embora de ideologia diversa da de Trump, é mais uma personalidade que hoje é percepcionada como uma das manifestações maiores da corrente populista, na escala internacional, e dos que dão corpo ao que Gideon Rachman chama “a era do homem forte”.

Margaret Atwood, nos seus ensaios recentemente compilados e vertidos para português, nota o ano de 2016 como um marco: “o zeitgeist mudou” com a eleição de Trump (deixemos, por agora, os antecessores, Berlusconi, desde logo, nos anos 90). Pois precisamente face a este “zeitgeist”, tão manifesto, há narrativas presidenciais que pululam há mais de um ano entre nós que, para citar um conhecido título de um programa de humor da rádio portuguesa, são “extremamente desagradáveis”. Este fim de semana, no “Nascer do Sol”, José António Saraiva, num longo elogio ao Almirante Gouveia e Melo, escrevia, sintetizando aquela narrativa: “Os portugueses gostam deste tipo de líderes, com imagem de antipolíticos. Que não parecem mover-se por objectivos partidários, mas por objectivos nacionais. Se concorrer, julgo que Gouveia e Melo tem a vitória garantida (…) Gouveia e Melo nunca teve partido, não tem de olhar aos interesses políticos ou económicos, mas apenas ao interesse nacional, é disciplinador, direto e frontal, corta a direito sem olhar a quem, tem autoridade”.

Ora, a cidadania remete à cidade, à polis, àquilo que suplanta os “negócios privados” e diz respeito a todos, aos assuntos que temos em comum, que nos ligam (necessariamente quando nos estabelecemos como elementos de uma comunidade). Assim, alguém representar uma narrativa assente no “antipolítico” é algo que me parece absolutamente contraditório com qualquer cidadania capaz de problematizar e escrutinar criticamente (e nomeadamente face a alguém que pretende alçar-se ao cargo político cimeiro do país). Ademais, como se vê no texto de opinião de J.A. Saraiva, o elogio centra-se no facto de não ter sido conhecida militância partidária a Gouveia e Melo e, assim, sugere-se, aquele poder olhar ao interesse nacional (o que, fica implícito, de outro modo não poderia). Quando, em realidade, as democracias são-no não sem partidos, mas com partidos, e os partidos são compatíveis com o interesse nacional.

A Gouveia e Melo – e não está em causa a pessoa nem nenhuma comparação com outras personalidades a nível internacional, mas a narrativa em torno de uma sua proto-candidatura presidencial - agradece-se, evidentemente, o papel que teve no âmbito da gestão da questão das vacinas para a Covid19 – embora valha a pena rever, hoje, cronologicamente, os números quanto às vacinas existentes no país e sua distribuição durante o período crítico da pandemia, porque evidentemente houve um lapso de tempo em que existiu falta de vacinas no país para a demanda existente -, mas devem também fixar-se as suas palavras iniciais, em Setembro de 2021, sobre uma possível candidatura presidencial: “daria um péssimo político” (disse de si próprio); “não estava preparado para isso” (prosseguiu); é preciso, insistiu, “separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes”; não há, completou, qualquer “necessidade de nenhum militar vir para a política”, porque a classe política é “muito desenvolvida e estruturada” e “os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militares, e os políticos devem fazer o que sabem fazer, que é ser políticos”. A esta lucidez, sucedeu, porém, um conjunto de sondagens que colocaram o Almirante em boa posição para as Presidenciais de 2026 e, em Dezembro de 2021, três meses apenas, pois, das palavras vindas de citar, este já dava largas, em nova e mudada entrevista, às suas ambições neste domínio.

A atenção aos sinais dos tempos (e ao zeitgeist) implica reconhecer operações de charme e propaganda pelo país, o subtexto das apresentações – a sua candidatura em marcha - como muito mais importante do que o texto (isto é, o que em cada circunstância e auditório refere, como pretexto), e não acomodarmos essa (legítima, mas tão contraditória em apenas três meses e com uma narrativa que esta “era” reclama especialmente examinada) como se não soubéssemos do que está a falar.

P.S.: Ah, estou longe de estar convencido de que Gouveia e Melo tenha a vitória garantida – creio, mesmo, que não será Presidente da República, ainda que se as sondagens o derem bem posicionado a um ano das eleições se precipite, mesmo, para uma candidatura que, agora, mantém latente.

Boa semana.


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