'OS BEIJOS NÃO DADOS/TU ÉS BELEZA' (ERMES RONCHI)

 


‘Amigo é um nome de Deus’

Há um abismo, uma incandescência viva que se torna torrente jorrante em Os beijos não dados/Tu és beleza, de Ermes Ronchi: a mais fragante ardência amorosa, motivo e culminância do caminho monasterial, como insinua o autor (“a língua dos trovadores tem fome de superabundância de amor: por isso, o inevitável porto de chegada é, para muitos deles, a abadia”, p.17), como que (re) encontra a palavra guiada pela mão, puro artesanato do coração (“Deus não está presente onde o coração está ausente”, p. 12), para ajudar a falar de novo, em tempo desencantado.

O desiderato da obra, não deixa, pois, desde a sua aurora, de ficar bem claro: amar a Deus não é amá-lo com exclusão dos outros (amigos); é reinventar – até rebentar – um coração plural, polifónico.

Um risco implícito em todo o grande amor é o de esmorecer, em nome justamente de um amor totalizante, a polifonia da existência. Semelhante esmorecimento foi uma das consequências mais negativas de um mal interpretado e subvertido amor sagrado, que se traduziu – em demasiados lugares religiosos – na incapacidade de amizade, na frieza dos vínculos, na agrura das relações, no resfriar dos sentimentos, em distorções das propostas afectivas. É como que tornar miserável a vida, porque fora das relações não existe manifestação do infinito. As relações humanas permanecem o que de mais importante há na existência (p.23)

Para que, verdadeiramente convertidos, possamos, na autonomia da liberdade, ser esse testemunho concreto da presença de Deus na história – esse Deus, em que cremos, simultaneamente transcendente e presente na história – na relação ética com o próximo[1], que, contudo, não deve ser divinizado (“por outro lado, também é possível perder-se a polifonia do existir, cultivando apenas relações humanas; na ânsia do reconhecimento e do significar tudo para o outro, sem a luz dos grandes pensamentos e de um grande amor, corre-se o risco de chegar a um culto monótono e humano”, p.23/24),[2] urge, assim, também, recuperar o tacto na aproximação às palavras, o cuidado posto no labor com estas, a capacidade de as insuflar de vida; humanas e, portanto, com a consciência de que são penúltimas; por vezes – na vez das vezes – fazendo tangente à Palavra.

Se os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem, de vários quadrantes se reclama, hoje, uma necessidade de suplantar um universo tido por demasiado redutor (nas finalidades existenciais da pessoa humana; nas prioridades que elege; na hierarquização axiológica; nas realidades que conhece ou ignora: pensar é pensar com palavras, e um vocabulário demasiado reduzido tem o perigo de um grande prejuízo de um horizonte curto) em que parecemos situados e sitiados. A (re) substancialização da linguagem, aliás, seria, radicalmente, superação do nihilismo:

Em 1938, [Thomas Mann] quando fundou uma nova revista, escreveu no texto introdutório que a nossa obrigação como intelectuais é dar de novo sentido às palavras. É uma coisa que qualquer poeta sabe de cor. Os poetas sentem-se responsáveis pelo significado das palavras. Imagine que vivemos numa sociedade em que as pessoas deixaram de conhecer o significado das palavras – se não souber o que significa “perda”, ou “amizade”, ou “justiça”, então não fica nada. Uma das razões pelas quais escolhi estes títulos foi porque palavras e conceitos como “cosmopolitismo”, “nobreza de espírito”, “verdade”, “beleza” ou “sabedoria” deixaram de ser usadas frequentemente. Ora, creio que elas são essenciais para manter um ideal de civilização, porque nos permitem manter uma ideia sobre aquilo que é a dignidade humana. Todo o pensamento de [Bento] Espinosa – que, por acaso, foram vocês [portugueses] que nos ofereceram – é sobre a busca do significado da palavra ‘liberdade’ (…) A única saída é dar novo significado às palavras. Uma das principais obrigações morais dos intelectuais é devolver algumas palavras às pessoas e devolvendo-lhes o seu real significado. Explicar-lhes que não é em torno do dinheiro e do poder que a vida se joga. Que, se quiserem viver com dignidade, então precisam de cultivar a nobreza de espírito (…) [Friedrich] Nietzsche escreveu um texto em que previa que toda a cultura europeia seria aprisionada pelo niilismo. Isso quer dizer que um país pode ter Goethe ou Bach e isso pode não significar grande coisa. Voltamos ao significado: no fim, tudo perde o seu significado. É esse o significado de niilismo: a ausência de valores que nos precedem e nos transcendem[3].

 

O exemplo medieval pode inspirar-nos: nem o melhor dos trovadores, nem o mais habilitado lírico, possuía, então, tão rica paleta de cores e imagens, de metáforas ou parábolas, como o monge (p.17). Como se faz essa (re) substancialização da linguagem, se o diagnóstico da sua absoluta necessidade está feito[4]? Pois, resposta sugerida, por essa transformação/conversão pessoal[5] – P. Sloterdijk diria, filosófica e antropologicamente, metoikesis[6] - que fará brotar, nesta via de trabalho sobre a linguagem (mas um trabalho em comunidade, em diálogo com uma tradição, e um substracto que é mais que uma categoria sociológica), palavras que falam, que tocam e interpelam. Que têm e fazem sentido. De um modo novo, a cada tempo e cultura. Com a plenitude de quem não decorou fórmulas, mas sabe o substantivo cintilante e genuíno: “a vida não é estática mas extática” (p.19); “amigo é um nome de Deus” (p.49) são pequenos exemplos da possibilidade de roçar a perfectibilidade do aforismo (tão bem cultivado, como sabemos, na história do cristianismo), sempre completada pela indicação da via maior para a qual nos remete: no corpo de Jesus “o Amor escreveu a sua narrativa com o alfabeto das feridas indeléveis, doravante como amor” (p.49). Ou, como em síntese e de modo lapidar, escreve José Tolentino de Mendonça, na introdução a esta obra, “Séneca antes havia gravado: «Ter um amigo é ter alguém por quem morrer». A gente percebe que esta frase escrita no século I, é um dístico que ilumina (e muito) o segredo de Jesus”.

Num dos mais extraordinários discursos do actual pontificado, Bento XVI, na alocução ao mundo da cultura francesa, no College des Bernardines[7], começa por perguntar – um tanto retoricamente, adivinhamos - se o mundo monacal está, enfim, exaurido e o quaerere Deum esgotado, como tantos pretendem[8]. No percurso pela história da busca de Deus, na ida para o mosteiro, precisamente o acolhimento da palavra é mister decisivo:

Consequentemente, a procura de Deus requer por exigência intrínseca, uma cultura da palavra ou, como se exprime Jean Leclercq: no monaquismo ocidental, escatologia e gramática estão intimamente conexas uma com a outra (cf. L'amour des lettres et le désir de Dieu, p. 14). O desejo de Deus, le désir de Dieu, inclui l'amour des lettres, o amor pela palavra, o penetrar em todas as suas dimensões. Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê-la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua. Uma vez que a procura de Deus exigia a cultura da palavra, faz parte do mosteiro a biblioteca que indica as vias rumo à palavra. Pelo mesmo motivo, dele faz parte também a escola, onde concretamente se abrem as vias. Bento chama ao mosteiro um dominici servitii schola. O mosteiro serve para a eruditio, a formação e a erudição do homem - uma formação cujo objectivo último é fazer com que o homem aprenda a servir a Deus. Mas isto supõe precisamente também a formação da razão, a erudição, baseado na qual o homem aprende a perceber, por entre as palavras, a Palavra.

A grande questão, porventura, é se, de facto, o humanismo – a eruditio, se preferirmos - não está hoje posto em causa pela – entre outros factores - emergência de meios de desinibição de massas que tornam as cartas de grandes amigos – os escritores – insusceptíveis de terem destinatários[9]; se o modo como se procurou prosseguir tal projecto (humanista), “a boa leitura amansa”, não se encontra, verdadeiramente, em crise. De certo modo, esta intuição não deixa de estar presente, preciosa, no poema de Hélia Correia[10]:

 

                                           E pode
No entanto escutar-se, no entanto
Reler-se, no entanto caminhar
Em direcção diversa, magoar
Novamente os joelhos na jornada?
Com os velozes mensageiros de hoje,
Os que, como Íris e Hermes, esvoaçam
Pelo éter, não há-de reunir-se
Um exército novo, uma razão
Em forma de cenário, aquela estranha
Ardência do improvável

 

A problemática dos media – demasiado ‘veloz mensageiro de hoje’, onde o efémero ocupa o lugar do perene, onde a ‘ardência do improvável’, a recuperação grega (da Grécia actual e, mais ainda, da Grécia clássica e mítica, para a autora) que tanto deu ao humanismo surge como improvável senão impossível, mas, igualmente, a ‘ardência do improvável’ passível de ser lida à maneira de Mardones (“o símbolo vive da evocação e sugestão do ausente e choca com o imanentismo e a pretensão da exibição total da civilização da imagem (…) a consequência é a desvalorização do imaginário em geral, da «capacidade simbólica para forçar o significante banal a nomear um simbolizado invisível» (…) o pensamento fica remetido para a imanência, mais ainda, para o que há[11]) – emerge, fortemente, se pretendemos esse encontro dador de sentido com o Amigo, com a verdadeira Beleza (transformadora):

A uma sociedade como a nossa, que quer viver tudo em pouco tempo, é preciso opor e propor a coragem do longo prazo, do tempo, da liberdade e da concentração do espírito e dos sentidos. O ritmo da sociedade apressada, pressionada, estressada não é conciliável com a perceção, a interiorização, o deslumbramento e a contemplação. A velocidade à qual se sucedem as imagens de um videoclip não nos permite olhá-las verdadeiramente. Hoje, aprende-se a falar de uma obra, mas não se aprende a deixar-se penetrar pelo sentido real que nela está presente e que dela emana[12].

Se, evidentemente, o lebenswelt cristão recusa, como não pode deixar de ser, a provocação do uso de antropotécnicas para domesticar o humano, destruidoras da liberdade fundamento de dignidade, em favor de qualquer (novo) Super homem, está em condições, outrossim, de repropor aos homens e mulheres aquela sabedoria que o conhecimento proveniente da fé lhe dá:

As nossas cidades já não estão cheias de altares e imagens de muitas divindades. Para muitos, Deus tornou-se verdadeiramente o grande Desconhecido. Mas, como então por detrás das numerosas representações dos deuses estava escondida e presente a pergunta acerca do Deus desconhecido; também a actual ausência de Deus é tacitamente importunada pela pergunta sobre Ele. Quaerere Deum - buscar a Deus e deixar-se encontrar por Ele: isto, hoje, não é menos necessário do que em tempos passados. Uma cultura meramente positivista que relegasse para o âmbito subjectivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, o descalabro do humanismo, cujas consequências não deixariam de ser graves. O que fundamentou a cultura da Europa, a procura de Deus e a disponibilidade para O escutar, permanece também hoje o fundamento de toda a verdadeira cultura[13].

Contemplação, amor oblativo, ágape, linguagem ardente…Quando repensamos o papel dos fóruns académicos, num tempo em que nos falam da necessidade de “mosteiros seculares” (Rob Riemen) contra o pragmatismo asséptico e o útil sem significado, há uma chama que somos chamados a cumprir e transmitir. Uma liturgia de vida que, com Ronchi, é, muito, em Os beijos não dados/tu és beleza, a língua, perdida, do afecto:

Bernardo [Claraval], o homem de acção e de teologia, está finalmente liberto da tirania de uma vida feita de objectivos a alcançar. A vida que se mede sempre com exigências, que sucumbe e se rende a deveres: o que devo fazer? Com que fim devo fazê-lo? Porque devo? Uma série inteira de «porquês» sem fim. Bernardo opõe-lhes um protesto de beleza, a insurreição da ternuraA amizade, o estar com o amigo ou a amiga, é uma revelação da inocência e da eterna infância de Deus. Esta infância tão fácil para o sorriso, para o beijo, sempre pronta para o jogo. Idade encantada que não tem de produzir ou trabalhar para se sentir verdadeira, mas que tem alegria; que não conhece a ânsia, por vezes a tortura, de perseguir um sentido que transcende, uma vida feita de finalidadesInfância: inocente sempre presa de amores. Infância espiritual: cumprimento de si, do dom de si, do milagre de existir em comunhão. Na ideia de vida que emerge deste escrito, tão livre e tão moderno, o homem não vale por aquilo que realiza ou pela sua obra, mas pelo modo e pela intensidade com que ama uma criatura. Um homem vale quanto vale o seu coração (p.29).

Pedro Miranda


[publicado na revista "Cenáculo", 2012]

[1] J.RATZINGER, Fé e Futuro, Principia, Estoril, 2008: “Neste contexto, parece-me clara uma estrutura fundamental da fé bíblica que pode ser formulada nestes termos: Deus vem até ao homem somente através dos homens”.

[2] IDEM, Assim, também eles foram reenviados por Deus uns aos outros, para que pudessem transformar e ampliar a afirmação anterior: assim como Deus vem até aos homens apenas através dos homens e para os homens, assim também os homens só chegam uns aos outros através de Deus.

[3] R. RIEMEN, em entrevista a T. SOUSA, in Público, 29/04/12.

[4] BENTO XVI e P. SEEWALD, Luz do mundo, Lucerna, Cascais, 2010, 70: “Para Jurgen Habermas, é importante haver teólogos que sejam de tal forma capazes de traduzir o tesouro guardado na sua fé que ele seja no mundo secular uma palavra para este mundo. Ele, se calhar, compreende-o de modo diverso do nosso, mas tem razão na medida em que o processo interior de tradução das grandes palavras para a palavra e o pensamento do nosso tempo já começou, mas ainda não foi bem-sucedido”.

[5] Ibidem: “Isso só pode acontecer quando os homens viverem o Cristianismo a partir d’Aquele que há-de vir. Só então poderão testemunha-lo. O testemunho, que é a tradução intelectual, pressupõe a tradução existencial”.

[6] Cf. P. SLOTERDIJK, O estranhamento do mundo, Relógio D’água, Lisboa, 2008.

[7] BENTO XVI, Encontro com o mundo da cultura no College des Bernardines, 12/09/08, in http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20080912_parigi-cultura_po.html, consultado a 12/05/12.

[8] Não deixamos de ler, e de nos parecer oportuno, o discurso de Bento XVI, como resposta às asserções de Sloterdijk, na obra citada na nota 4.

[9] P. SLOTERDIJK, Regras para o parque humano, Angelus Novus, Coimbra, 2007. Quanto aos meios de desinibição de massas, hoje, poderíamos falar, com Lipovetsky/Serroy, na sociedade dos ecrãs, ou nos vários phones que acoplamos, a cada temporada tecnológica.

[10] H. CORREIA, A terceira miséria, Relógio D’Água, Lisboa, 2012, 37.

[11] J.M.MARDONES, in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, Campo das Letras, Porto, 2007.

[12] A. MARTO, in O Evangelho da Beleza, Paulinas, Prior Velho, 2012, 31-32.

[13] BENTO XVI, Ibidem.


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