EUROPA: «IN VARIETATE CONCORDIA». VOLIA!

 

EUROPA: «IN VARIETATE CONCORDIA». VOLIA

Conselheiro de governantes, de diferentes matizes ideológicos, pelo mundo, Professor de Estudos Europeus da Universidade de Oxford, Senior Fellow da Hoover Institution da Universidade de Stanford, intelectual público com forte presença em periódicos de referência internacionais e, bem assim, nos debates que se coloca(ra)m, em cada momento, aos cidadãos do mundo, Timothy Garton Ash, num relato que combina erudição com episódios raros, pequenas histórias, anotações pessoais e diarística de décadas de viagens pelos mais variados recantos europeus, anedoctas, aforismos e poemas preciosos (no iluminar de épocas e condição humana com que se confronta), procede, em “Pátrias” (Temas e Debates, 2023), livro dividido em cinco capítulos fundamentais - Destruídas (1945), Divididas (1961-1979), Ressurgindo (1980-1999), Triunfando (1990-2007), Vacilando (2008-2022) -  a um balanço das últimas sete décadas europeias e, outrossim, elabora uma enérgica e sofisticada alegação em favor da Europa (na sua diversidade e pátrias que concebe, também, como suas, nas diferentes pertenças que formam a identidade pessoal do historiador britânico), e sem prejuízo de olhar para os abismos, históricos e actuais, do Velho Continente e, em simultâneo, mantendo o espírito resoluto e a possibilidade de superação (de momentos críticos por que vimos passando): vacilamos, mas não caímos (não cairemos). Uma “história do presente”, tão pessoal quanto política.

 

1.Implicará, sempre, violência a revolução? Faz parte desta, é-lhe essencial (elemento intrínseco, indispensável)? Não se pode falar de uma (revolução) sem convocar, imediatamente e sem cisões, a outra (violência)? A Europa Central é território favorito de Timothy Garton Ash (sentimo-nos em casa, sim, em diferentes pátrias europeias, mas de modo diverso em cada uma destas), desde a sua primeira visita à Polónia, em 1979, até ao deslumbramento com as Revoluções de Veludo. No entender do ensaísta, as interrogações acima enunciadas têm uma resposta que assume com clareza: sem embargo de, em termos tradicionais, se ter concebido a violência como elemento nuclear adstrito a qualquer revolução, o Solidariedade, na Polónia, desde logo, as revoluções de veludo de 1989 na Europa Central de um modo global - que, em si mesmas, haviam já sido herdeiras/bebido das recentes experiências (efeito de contágio, portanto) de Ghandi, na Índia, durante a administração britânica, do movimento dos direitos civis nos EUA, do derrube, em grande medida pacífico, das ditaduras em Portugal, Grécia, Espanha – iriam (irão) reconformar/transformar a própria noção/conceito de revolução, agora tida como contendo uma acção política de protesto/contestação não violenta, e negociada, do poder, pelo povo – geradora de uma inspiração (tal) multiplicada, desde esses finais dos anos 80, por vários países e continentes. Uma nova revolução emerge, assim, (fixada) em 1989, por contraponto à que conhecíamos de (desde) 1789.
O que fez o Solidariedade foi uma revolução? “Acima de tudo, estes acontecimentos tinham a característica que a filósofa política Hannah Arendt mais prezava na revolução. Ela defendeu que, na melhor das hipóteses, a revolução mostra a capacidade humana para começar coisas genuinamente novas por meio da acção criativa de seres humanos individuais. É, assim, a manifestação política mais notável da liberdade humana, refutando a visão desumanizante de que a história é determinada por processos automáticos e forças irresistíveis. O Solidariedade foi algo genuinamente novo, não só uma revolução de operários sob o signo da cruz contra um chamado Estado dos operários, mas também uma união de classes sociais (intelligentsia, operários e camponeses) e forças políticas (como a Igreja Católica e a esquerda secular) que nunca se haviam conjugado deste modo. Em termos ideológicos, foi uma mistura sem precedentes de socialismo, cristianismo, nacionalismo e liberalismo.
«Mas as revoluções são violentas!», contraporia o tradicionalismo revolucionário. «A revolução», afirmou Mao Zedong, «não é um convite para jantar». Apenas dois anos antes de o Solidariedade ter irrompido pelo palco, o historiador A.J.P. Taylor iniciou uma série de palestras sobre revoluções dizendo: «Desde que existem comunidades políticas que tem havido convulsões políticas violentas». É evidente que ele via «violenta» como uma característica definidora: sem violência não havia revolução. Fora assim em 1789, assim de novo em 1917 e assim iria ser na revolução iraniana de 1979. No entanto, os acontecimentos na Polónia em 1980-81 inseriam-se numa tentativa transnacional mais ampla de mudança de regime (…) até à resistência civil pioneira de Mahatma Gandhi na Índia governada pelos britânicos, passando pelo movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, noticiado em todo o mundo, e os derrubes em grande medida pacíficos das ditaduras em Portugal, Espanha e Grécia (…) O Solidariedade contribuiu para a criação a nível mundial de um vocabulário de protesto pacífico que iria ser visto subsequentemente no derrube da ditadura de Marcos nas Filipinas em 1986, que nos deu a expressão «poder do povo», e na mobilização maciça para destituir o general Pinochet, por meio de um plebiscito, no Chile, em 1988. Com as revoluções de veludo de 1989 na Europa Central, este passou a ser quase um novo modelo predefinido de revolução, não violenta e negociada, um forte contraste com o modelo violento de 1789. Muitos dos mesmos elementos puderam ser vistos na Eslováquia no final da década de 1990, no derrube em grande medida pacífico de Slobodan Milosevic na Sérvia em 2000, na Revolução Laranja na Ucrânia, em 2004 e, fora da Europa, no movimento verde no Irão, na Primavera Árabe de 2011 e nos protestos populares em Myanmar. Alguns destes movimentos tiveram êxito, outros falharam (…) Todos contribuíram para um repositório crescente de experiência em termos de poder não violento do povo. Em 2020 (…) eclodiram protestos pacíficos maciços contra umas eleições roubadas escandalosamente na Bielorrússia” (p.122).
 
2. É um debate que se diria não apenas académico, mas extensível (estendido) a todos que procuram compreender – olhando a História, escutando os seus cultores, bem como cientistas políticos ou filósofos dedicados à dilucidação das hodiernas polis: com a ascensão (ao poder), nesta hora do nosso devir coletivo, em diversos países europeus, de partidos que advêm da extrema-direita ou direita radical, de líderes e destacados militantes que outrora marcharam ao lado e teceram loas aos mais destacados líderes do fascismo (na Europa), faz sentido integrar - é rigoroso, mais fundamentalmente, ajuda a compreender o nosso tempo, qualificar - aquelas formações políticas como “fascistas”? Se, em anos recentes, um dos maiores estudiosos na ideologia e cultura fascistas, Emílio Gentile (“Quem é fascista”, Guerra e Paz, 2019), recusou a existência de um “retorno do fascismo” a Itália ou à Europa - "não creio que faça algum sentido, seja histórico, seja político, afirmar que haja hoje um retorno do fascismo em Itália, na Europa ou no resto do mundo", p.11 -, argumentando, de uma banda, que se o "fascismo" tivesse um "eterno retorno" (histórico), então, em vez de repelente, para muitos, particularmente os mais jovens, poderia adquirir contornos sedutores, pois tal significaria que apesar de constantemente combatido, nunca o "fascismo" seria liquidado (o que mostraria uma força, um poder, uma resiliência muito impressivos). Ampliar-se-ia, com a tese do "eterno retorno do fascismo", uma visão mítica do mesmo. Se existe um fascismo que retorna perpetuamente, isso significa que o antifascismo está destinado a uma derrota contínua; introduzir a eternidade na história humana, atribuir a eternidade a um fenómeno histórico, mesmo com as melhores intenções, implica uma grave distorção do conhecimento histórico. Sem, aliás, considerar que este atributo da eternidade seja reservado apenas ao fascismo, e não a um «jacobinismo eterno», «comunismo eterno», «nacionalismo eterno» (p.13) e, de outra, que os actuais movimentos populistas, muitas vezes comparados ao fascismo, exaltam o dogma da soberania popular, reivindicando a democracia directa. Ou seja, exaltam o que o fascismo negava de modo radical, proclamando-se o maior inimigo dos princípios da Revolução Francesa (p.15) -, por sua vez, o historiador Timothy Garton Ash, olhando, de um modo especial, para o caso russo, com Putin, considera “credível” apresentar-se o caso como se tratando de um fascismo (actualizado): “o culto de um líder único, uma estética de violência marcial e morte heroica, a cultura de uma sensação de ressentimento histórico, a doutrinação da juventude, a perseguição implacável das minorias dissidentes, uma ideologia de domínio de um Volk sobre outros, a diabolização do inimigo (…) É claro que havia elementos inovadores no regime de Putin e não estavam presentes todas as características do fascismo da década de 1930, mas isso é o que acontece em todos os fenómenos históricos recorrentes: nacionalismo, chauvinismo e utopismo também nunca reaparecem exatamente sob a mesma forma. Este era o fascismo pós-soviético para a idade da Internet” (p.403).
Il fascismo eterno é o título de um ensaio de Umberto Eco (que segundo Gentile não terá sido devidamente interpretado). Um outro pensador, neste caso holandês, Rob Riemen, num livro justamente intitulado O eterno retorno do fascismo (Bizâncio, 2012) não deixaria de subscrever a tese posta em causa por Gentile. E, outrossim, este último combate a ideia de que o fascismo não tinha uma ideologia (ou era uma não ideologia - ideia central no pensamento de Riemen, não citado a propósito nominalmente, mas, por certo, incluído no grupo de pensadores que assim julgam, a que se refere o Emílio Gentile. Este historiador não deixa, igualmente, de mencionar a enorme literatura sobre um suposto "fascismo" - ou quase fascismo - nos nossos dias).
 
3.O que é a Europa? Como defini-la? De que forma caracterizá-la, assinalar-lhe os contornos? Quantas Europas contém uma Europa? Do que falamos quando falamos de Europa? Timothy Garton Ash principia por se abalançar a quatro acepções, todos elas problemáticas, de Europa: i) como conceito geográfico, a Europa não tem fronteiras claras a Leste e a Sul (p.58). Marrocos pediu, e tal foi recusado, para aderir à UE em 1987. Mais tarde, a vez da Turquia parecer estar à beira de integrar o clube europeu. Desafio quem quiser, exorta o europeísta convicto, a explicar-me como a Turquia é Europa sem ambiguidades, e o mesmo, pela inversa (como não é Europa sem ambiguidades), relativamente a Marrocos; ii) uma Europa histórica nuclear na qual Roma, Paris, Achen (capital de Carlos Magno) adquiririam preeminência. Em realidade, ao longo dos tempos o Ocidente europeu, observa o historiador, sempre tendeu à autossatisfação e a considerar-se superior ao Oriente. Todavia, qualquer forma de proceder a um distinguo afirmando primazias e destacando inferioridades, respetivamente, na Europa, encontra-se condenada ao fracasso; iii) a Europa da cultura e dos valores contém a complexidade bastante de, por um prisma, se identificar como branca, cristã, masculina, com o encargo de levar a civilização aos selvagens (colonialismo); por outra banda, neste âmbito, Europa coincide com/sinónimo de liberdade, democracia, paz, dignidade e direitos humanos. Com uma essência platónica. A europa concebida como telos, fim, marco com o qual medimos o nosso progresso; iv) a Europa enquanto organização dos Estados europeus, agora UE. Muitas vezes, um aparelho burocrático, barulhento, com um Conselho Europeu aparentemente menos valorizado do que no passado, a OSCE entidade na qual a confusão é mais facilmente detetável.
Um dos factores de sedução da série (dinamarquesa) Borgen, que todos vimos, é, não sei se repararam, a raridade ou esquisitez da língua nela falada – e, quando leio este inciso do autor, penso que si non é vero, é ben trovato; suponho, em realidade, que tenhamos visto Borgen, sobretudo, pelo gosto da política e de uma observação mais do animal de fala que o humano é, e que mergulha em profundidade nela, na política dizendo na fala o justo (do seu ponto de vista), não é ficção. É que Garton Ash, à semelhança, por exemplo, de Julia Kristeva, escritora e psicanalista búlgara, académica em França, em “Existe uma cultura europeia” (Universidade Católica Portuguesa, 2020), considera que o multilinguismo de que os europeus – continente dos voos em massa – se vêm nutrindo preenche a (uma parte da) sua identidade – feita, paradoxalmente, de um questionamento permanente acerca do que se é (porventura, indagação extrema em tangente à própria derrisão). Quantas línguas falam os europeus? Entre 64 e 234, segundo os especialistas. Os melhores alunos europeus a falarem línguas estrangeiras são os luxemburgueses, os letões e os neerlandeses. Mais de metade dos europeus de estados-membro da UE, inquiridos para o efeito, assumiram falar pelo menos uma língua além da sua (nacional). De acordo com o levantamento de Julia Kristeva, “a diversidade linguística europeia está neste momento a criar indivíduos caleidoscópicos capazes de desafiar o bilinguismo do globish english. Será isto possível? Tudo hoje em dia parece apontar o contrário. Porém, uma nova espécie tem vindo a emergir pouco a pouco: um indivíduo polifónico, cidadão poliglota de uma Europa plurinacional. Será o Europeu do futuro uma pessoa singular com uma psique intrinsecamente plural, trilingue, quadrilíngue, multilingue? Ou limitar-se-á ao globish?” (p.13). O conhecimento de várias línguas, no dizer de Kristeva, permitiria a cidadão de uma pátria europeia um maior conhecimento da diversidade do globo e, em simultâneo, trazer à Europa e ao mundo o seu próprio, específico (aquilo que tem para dar, nesta troca).
Da Europa, podemos dizer que assenta em um passado repleto de autores “maiores do que a vida” que enchem o nome de praças e ruas (e que sobrecarregam os atuais europeus, por comparação (com os génios); diversamente, os americanos muitas vezes dão nomes de árvores a vielas, qual tábula rasa que não tem que se medir com uma história imensa, e pode, portanto, prosseguir), ou dos cafés enquanto espaço distintivo – passo de Timothy Garton Ash que nos remete ao George Steiner de “A ideia de Europa” (Gradiva, 2005): “Isto também é característico da experiência europeia. Não se trata apenas de vivermos em cima de tantas camadas de história, como se estivéssemos numa estação arqueológica, encontrando-se as camadas cretenses entre as mais antigas. Como europeus, vivemos num multiverso, densamente povoado, de recorrências e antevisões, referências cruzadas conscientes e ecos inconscientes, de modo que, ao lado daquilo a que o filósofo alemão Ernst Bloch chamou «não simultaneidade» (…) há uma simultaneidade compensatória que condensa séculos e até milénios. Na catedral de Colónia, pode ver-se um crucifixo pequeno e requintado feito de madeira. Os dedos fortes das mãos de Cristo pregado na cruz, as curvas rigidamente talhadas do rosto, as linhas estilizadas e retas do cabelo e da tanga – todos eles sugerem uma obra modernista, talvez de um aluno do escultor alemão do século XX Ernst Barlach, mas este crucifixo data do século X d.C. É dez séculos mais novo” (p.68). A Europa é uma dada arrumação da cidade: “a gramática visual recorrente da Igreja, castelo, praça de mercado e Câmara Municipal; alusões a Roma, elementos do gótico, barroco, Jugendstil ou brutalismo da década de 1960; leitmotive como o minotauro, as sereias ou a Virgem com o Menino; cafés de todas as formas e tipos possíveis; o café grego que é tão curiosamente semelhante ao turco, a couve em infindas variações gastronómicas (…) Quando nos levantamos para ouvir o hino do Lichtenstein damos connosco a ouvir a melodia de «God Save the King». Igual, mas diferente; diferente, mas igual” (p.70). A Europa é, desta sorte, uma caleidotapeçarianeologismo resultante de uma mistura de caleidoscópio e tapeçaria -, uma “obra de arte total”: “abarca não só os elementos familiares de alta cultura tradicional, mas também a moda, a comida, a bebida, o desporto, a música popular e os costumes locais; os cheiros característicos de uma ilha mediterrânica, de um fiorde escandinavo, de uma costa atlântica varrida pelo vento e de um restaurante italiano cheio de gente”.
A Europa é, numa palavra-síntese, uma confluência de Atenas (filosofia), Roma (direito, infra-estruturas) e Jerusalém (ética judaico-cristã) (a que alguns tendem a apor o Iluminismo como um outro elemento distintivo). Em realidade, e de modo muito particular, o Cristianismo foi o factor determinante na fisionomia de que a Europa se revestiu ao longo dos séculos: “[Bronislaw Geremek, principal arquiteto da transição democrática na Polónia, historiador] como académico, ele não tinha a menor dúvida de que foi o casamento de Roma com o cristianismo, Romanitas et Christianitas, que fez nascer, no final da Idade Média, a ideia de Europa donde descende a nossa” (…) [Efectivamente] o cristianismo foi, durante muitos séculos, o maior elemento de unidade na diversidade de toda a Europa. Tenho à minha frente um mapa intitulado Europa Polyglotta, elaborado por um cartógrafo alemão em 1730. Em termos visuais, é uma confusão total, com pequenas legendas, em diferentes línguas, a cobrir toda a superfície terrestre da Europa e a maior parte dos mares circundantes, como se fossem os gatafunhos de um professor louco. Mas, olhando mais de perto, vemos que em todas aquelas trinta e três línguas, tanto em alfabeto latino, como cirílico, grego ou outro, o que está escrito é a mesma frase: «Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome»” (p.84). Depois de um intenso debate no âmbito de uma convenção que deveria redigir uma constituição europeia sobre a inclusão do cristianismo no preâmbulo da mesma, a qual, em menção explícita, acabou por não ocorrer, Garton Ash afirma que “até mesmo um ateu profundamente empenhado tem de reconhecer a realidade histórica de que, sem cristianismo, não existiria Europa tal como hoje a conhecemos (…) As formas de pensar das crenças do passado, tal como as doutrinas de economistas mortos, moldam inclusive aqueles que já não acreditam nelas” (pp.84-85). De modo eloquente, “o escritor [e historiador] Tom Holland [no livro Domínio, Vogais, 2022] vai ainda mais longe e fala no cristianismo como «a estrutura mais influente para decifrar a existência humana que alguma vez existiu” (pp.145-146).
 
De modo vívido, e a propósito de como, nas suas viagens pela Europa, a marca cristã católica impregnou uma inteira comunidade rumo à democracia – como os seus percalços e padecimentos até a alcançar -, conta Timothy Garton Ash a experiência que teve, em 1979, na Polónia (lá onde, interrogava um espantado Buñuel, “como é que um líder de operários pode ser religioso?”), a propósito da primeira peregrinação que ali faria João Paulo II: “a visita mais surpreendente nesta urbanização socialista modelar foi uma igreja nova, com a forma de uma gigantesca arca de Noé e um grande crucifixo montado na sua proa. Ela fora construída ao longo da última década com contributos financeiros e trabalho voluntário dos habitantes da nova cidade, perante a resistência das autoridades comunistas. Cerca de cinquenta mil pessoas – mais ou menos um quarto da população de Nova Huta – tinham assistido à consagração original a «Maria, rainha da Polónia» pelo então cardeal-arcebispo de Varsóvia, Karol Wojtyla. Agora, Wojtyla era o Papa João Paulo II e, quando lá cheguei, a Polónia acabara de ficar eletrizada com a sua primeira peregrinação, sem precedentes, ao seu país natal. No Blonia, o grande prado que chega ao centro de Cracóvia, quase dois milhões de pessoas tinham ficado suspensas de cada uma das suas palavras, rezado com ele, cantado com ele e respondido, a uma só voz, ao que dizia. Na Praça da Vitória, em Varsóvia, tinham entoado: “queremos Deus nos livros, nas escolas, queremos Deus nas ordens do governo…”. Durante os nove dias da visita do Papa, foi como se o Estado comunista tivesse deixado de existir. Houve apenas uma sociedade polaca. Todos os homens, mulheres e crianças descobriram, pela primeira vez, que milhões partilhavam o mesmo sentimento e sentiram a força que a solidariedade traz” (p.111).
 
4.Impossível ignorar, de modo diametralmente oposto à edificação cristã, os precipícios a que a Europa se lançou, em especial durante a II Guerra Mundial (90 milhões de pessoas foram mortas ou desalojadas entre 1939 e 1945). Por mais que leiamos ou escutemos, nunca o arrepio se trava diante da descrição do inaudito. O pai do historiador de Oxford foi combatente naquele terrível conflito bélico – dando, inclusive, a um dos filhos, o nome de um seu companheiro de armas. Desembarcou nas praias da Normandia, tirou fotos em Westen (localidade alemã, cujo nome significa “Ocidente”), em 1945. É lá que o ensaísta agora regressa, assim voltando à História, no cruzamento entre o pessoal e o coletivo. Recorda-nos, então, do intrincado, do complexo, do sinuoso e perverso novelo de novelos que aquela circunstância conteve: “muitos dos trabalhadores forçados dos nazis viviam com os agricultores para quem trabalhavam, enquanto os filhos destes iam matar os parentes desses trabalhadores na guerra de Hitler” (p.23; havia quase 8 milhões de trabalhadores forçados na Alemanha, em 1945); evoca o lager de Bergen Belsen, através de um estudante de medicina que trabalhava para as forças britânicas: “Olhei para baixo, na penumbra, e vi uma mulher agachada a meus pés. Tinha um cabelo negro emaranhado, bem povoado [de piolhos] e as suas costelas sobressaíam como se não houvesse nada entre elas…Estava a defecar, mas a sua fraqueza era tal que não conseguia levantar as nádegas do chão e, como tinha diarreia, as fezes líquidas amarelas borbulhavam sobre as suas coxas. Os seus pés estavam brancos e inchados devido ao edema da fome e tinha sarna. Enquanto se agachava, coçava as partes genitais, que também estavam sarnentas. (p.23)”; “Um prisioneiro checo, Jan Belunek, contou aos seus libertadores que vira cadáveres cujos corações haviam sido retirados e observara outro prisioneiro «sentado de um desses cadáveres…a comer carne que não tenho qualquer dúvida de que era carne humana»” (p.24); não deixa de dar conta da também brutal resposta dos Aliados - 93% do espaço habitável em Dusseldorf ficara destruído – e do Exército Vermelho em particular. Este último, chega ao porto báltico de Danzig (atual Gdansk); uma testemunha ocular relata o que viu nesses idos de 1945: “quase todas as mulheres foram violadas – entre as vítimas havia mulheres de sessenta e setenta e cinco anos e raparigas de quinze de até de doze. Muitas foram violadas dez, vinte ou trinta vezes” (p.31) [a onda de suicídios, nomeadamente de mulheres, neste contexto, na Alemanha, foi enorme; Garton Ash regista: a acção das tropas britânicas não se comparou ás do Exército Vermelho, neste contexto, embora o sofrimento dos britânicos também não pudesse ser comparado aquele, muito maior, passado pelos russos e russas às mãos da máquina de guerra alemã-nazi. A este propósito, tal como no caso de Sbrenica, Garton Ash lembra W.H Auden: Eu e o público sabemos/ O que todos os alunos da primária aprendem./Aqueles a quem é feito o mal/Fazem o mal, por sua vez]; localidades atiradas, sucessivamente, de um país para o outro, em função de guerras como esta: “A Zona de Wagrowiec exemplifica a loucura desses anos, em que não só milhões de homens, mulheres e crianças mas também países inteiros foram atirados de um lado para o outro, contra a sua vontade, como gado. A região fora polaca durante séculos até a Prússia a ter tomado pela força, na última partilha da Polónia, em 1772. Por conseguinte, passou a fazer parte de uma Alemanha unida após 1871. Depois da Primeira Guerra Mundial, voltou a ser Polónia; em 1939, Alemanha, de novo; em 1945, voltou à Polónia” (p.29); a ausência de solidariedade entre alemães, quando a guerra estava perdida e a terminar e a migração interna uma realidade: 900 mil pessoas fogem de Hamburgo, após a operação Gomorra dos anglo-americanos. Migração interna, refugiados por exemplo para Westen: “essas refugiadas alemãs não foram bem-recebidas pelos habitantes locais e, certamente, não como parceiras para os seus filhos (p.21)”; casal comunista foge da Alemanha nazi. Vai para a URSS. Ele arruína a sua saúde numa purga de Estaline, enviado para o Gulag; ela, acaba num batalhão de trabalhos forçados (p.105); filho de uma mãe refugiada alemã que fugira, e na fuga sucumbira, às tropas do Exército alemão, “ele não sabia qual era o seu nome verdadeiro, nem os dos seus pais e nem sequer a sua verdadeira data de nascimento. No orfanato [em região da atual Lituânia], atribuíram-lhe apenas uma data de nascimento – 12 de Abril” (p.105); as lápides dos adolescentes de 17 anos que tombaram ao serviço de Hitler: Encontrá-los-ão / Onde perguntarem por eles/ Caídos no Leste/ Chorados no Ocidente.
 
5.Possivelmente, quando evocamos a data de 1945, a imagem (não imediatamente contrariada) de uma deposição de armas, nomeadamente europeia, nos venha ao espírito. A Europa em paz. Todavia, de diferentes continentes, nos dirão sobre os anos subsequentes ao armistício: paz (da Europa), mas apenas consigo (própria). Aqui, não. A Europa continuou em guerra, noutras partes do mundo. E, contando com a atuação da URSS na Hungria (1956), ou na (então) Checoslováquia (1968), as lutas intestinas na Estónia ou na Grécia, para não falar no que se passou na ex-Jugoslávia (1990), em rigor a própria Europa viu a guerra nela permanecer. Diferentes países, tiveram diferentes “anos zero” (para Portugal, Ash indica Abril de 1974; o historiador refere-se, neste livro, com certa frequência, ao nosso país, citando, nomeadamente, o Professor Keats e o grupo de alunos a quem ensinava literatura e o medo de que estes davam testemunho, por palavras e gestos reportados pelo literato, de estarem a ser escutados por algum informador da polícia política, ou o romance Afirma Pereira, de António Tabucchi para falar da enorme discrepância, ao tempo, entre Portugal e a Europa, ambos os episódios ao tempo do Estado Novo; também a figura de Durão Barroso e a evolução do seu pensamento e acção politicas são mencionados em algumas páginas deste livro). O massacre de Sbrenica, em Julho de 1995, foi, porém, o pior crime cometido na Europa desde 1945. Haia considerou tratar-se de um genocídio: “o assassínio de cerca de oito mil homens e rapazes bósnios foi um trabalho intenso. As forças dos sérvios bósnios comandadas pelo general Radko Mladic não tinham câmaras de gás. Em vez delas, os «muçulmanos», como costumavam chamar-lhes os assassinos, eram transportados em camiões para os campos de extermínio e abatidos, um a um, com um tiro na cabeça. Quando chegava a nova leva de cativos, estes podiam ver os cadáveres recém-abatidos dispostos em fileiras. Um dos assassinos, Drazen Erdemovic, recordou que o cheiro lhe lembrava um talho onde costumava ir em rapaz. Cada vítima reagia de uma forma: alguns suplicavam (“por favor, deixe-me viver, salvei sérvios de Sbrenica, tenho os números de telefone deles»), outros amaldiçoavam, outros ofereciam dinheiro e outros ainda marchavam em silêncio para a morte. Alguns não morreram com a primeira bala e precisaram de ser liquidados. Erdemovic tentava evitar olhar-lhes para os rostos, mas nunca conseguiu esquecer o rosto de um rapaz, que tinha apenas quinze anos ou talvez ainda menos, sem camisa e com a pele branca sob o sol brilhante. Os olhos dele esbugalharam-se quando viu as filas de cadáveres. Ao ajoelhar-se, prestes a ser baleado na nuca, murmurou «Mãe! Mãe!».” (p.328). Timothy Garton Ash – que assistira à história ao vivo em Varsóvia, recordara, em visita à ‘paterna’ Westen, a Segunda Guerra Mundial e três meses depois de Sbrenica estava na Croácia e na Bósnia, a falar com um soldado sobrevivente deste massacre -: “«Nunca mais!», tinham decidido os europeus após 1945. Agora acontecia de novo. Uma parte da Europa desceu uma vez mais a um inferno, fabricado pelo homem, de guerra fratricida, violação, limpeza étnica e genocídio” (p.228).
 
6.Contra-intuitiva parece ser uma outra anotação do autor britânico (especialmente atraído, reitere-se, pela Europa Central, região europeia na qual se empolgou com a marcha, com meta atingida, para a democracia): foi mais revolucionário o capitalismo, para os países da antiga “Cortina de Ferro”, do que o comunismo (“o capitalismo foi mais revolucionário do que o comunismo alguma vez fora”, p.251). Em que sentido o diz, e em que fundamenta tal afirmação? Conhece-se o terror da polícia política, a falta de liberdade ou a ineficiência económica e a carestia das condições de vida sob aquele regime político. Dado o desenvolvimento económico mais lento, o comunismo tinha, sem embargo, um efeito conservador: “para minha surpresa, descobri que havia mais coisas de uma Europa mais antiga anterior à guerra, que tinham sobrevivido sob os regimes comunistas pretensamente revolucionários do que sob as pretensamente reacionárias democracias da Europa Ocidental (…) encontrei qualidades da vida cultural que pareciam ausentes no Ocidente, ou pelo menos muito atenuadas. Este era um reino onde, como o poeta Paul Celan disse a propósito da sua Czernowitz natal antes do Holocausto, «as pessoas e os livros viviam». As ideias eram tomadas tão a sério como os exércitos. A religião ainda era importante. A música era ouvida ao redor do piano da sala de estar, como nos romances do século XIX. Havia tempo e espaço para a amizade. O Ocidente podia ser mais rico em termos de dinheiro, mas o Leste parecia mais rico em tempo. As conversas tinham uma intensidade especial. Regressei ao Ocidente com a impressão bem captada pelo romancista americano Philip Roth: «Trabalho numa sociedade onde, como escritor, tudo é aceite e nada tem importância, enquanto para os escritores checos que conheci em Praga, nada é aceite e tudo tem importância” (pp.106-107).
Assim, a mudança, a todo o vapor, de um regime comunista para um capitalismo globalizado e financeiro mudou drasticamente o quotidiano dos polacos: “Práticas de trabalho, artigos nas lojas, regulamentações, aulas nas escolas, roupas, automóveis, remédios, cargos, programas de televisão – tudo mudou”. A espiral inflacionista no momento da transição atingiu números incomensuráveis. De um modo profundo, o dinheiro passou a ser a medida de todas as coisas, não se distinguindo o preço do valor e passando-se, no mesmo instante, não apenas para uma economia de mercado, mas mais, para uma efetiva sociedade de mercado (que se caracteriza pela aplicação de critérios mercantis, de lucro, a todas as dimensões da vida humana, incluindo as relações interpessoais na sua coloração mais distópica): “A Europa pós-comunista, ao começar [a sua inserção no capitalismo globalizado e financeiro] com poucos dos freios e contrapesos sociais, jurídicos e institucionais que refreavam, pelo menos em parte, o animal na Europa Ocidental, reproduziu-o de uma forma particularmente dura e grosseira. O dinheiro parecia ser a fonte e medida de tudo – condição social, poder político, liberdade efectiva e até, caso se acreditasse nos novos anúncios das televisões, felicidade pessoal e satisfação sexual. Muitas pessoas sentiam que estavam a receber não só uma economia de mercado, mas também uma sociedade de mercado (…). Durante uma década, o governo radical pró-mercado de Margaret Thatcher privatizara cerca de cinquenta empresas estatais. No início da transformação, a Polónia tinha ao redor de sete mil empresas estatais” (pp.244-245).
As estatísticas provaram bem a imensa evolução nas condições (materiais) de vida da população (que o reconheciam, aliás, em inquéritos realizados para averiguar esses elementos). Tal, todavia, não evitou que o choque e a insegurança tomassem conta de muitos polacos, a que acrescia a espécie de pacto com a nomenklatura (dos antigos opressores) para que estes permitissem a transição (sem resistências e/ou violências, muitas vezes transformados, aliás, em oligarcas – no caso russo, onde se deu, no momento do fim do comunismo e na transição para outro regime político, “o roubo do século”, verdadeiros “cleptocratas” emergindo então - nunca se rememorando e reconhecendo os que haviam passado pelo pior durante os anos de chumbo) e o esquecimento do reconhecimento dos últimos: “A liberdade revelou-se desafiante, arriscada e insegura (…) Durante as últimas décadas de comunismo, muitas pessoas tinham vivido numa espécie de segurança relativamente inquestionável. Tinham menos dinheiro do que no Ocidente, mas mais tempo. Como se dizia: «nós fingimos que trabalhamos e eles fingem que nos pagam». Agora, para conservarem o emprego, as pessoas tinham de trabalhar de formas novas, stressantes e estranhas, para empregadores que muitas vezes também não as tratavam bem. A localização da ausência de liberdade transferiu-se do Estado para o local de trabalho (…) Monika queixava-se de ser tratada no emprego como um «objecto cinzento». Só em casa com os amigos é que [se] sentia um verdadeiro ser humano. Em 2005, Lech Walesa resumiu-me a questão nos seguintes termos: antes de 1989, as pessoas tinham segurança e ansiavam por liberdade; agora tinham liberdade e ansiavam por segurança. A transição inicial sob a terapia de choque foi traumática (…) Vaclav Malý, o padre católico que fora a voz da Revolução de Veludo em Praga, explicou-me que esta constante propaganda comercial do êxito fez com que muitas pessoas se sentissem falhadas por não terem a moradia, o carro, a carreira maravilhosa, os filhos felizes e a vida sexual perfeita. De qualquer modo, a Igreja Católica nunca havia sido muito entusiasta em relação ao capitalismo. (…) João Paulo II (…) numa conversa inesquecível (em polaco) sentados a uma mesa ao jantar, na sua residência de Verão de Castel Gandolfo, em 1987, ouvi-o dizer, com uma clareza espantosa: «o problema do capitalismo e do comunismo é que antipatizo quase tanto com um como com o outro» (…) Embora a despesa com a providência social tenha continuado, de facto, a ser substancial, ninguém (…) transmitiu de alguma forma essa preocupação com os membros mais pobres, mais fracos e marginalizados da sociedade – aqueles a quem Franklin D. Roosevelt chamou outrora «o homem esquecido»” (pp.250-254).
 
7.A 7 de Janeiro de 2015, extremistas islâmicos assassinaram jornalistas da revista francesa Charlie Hebdo (pela publicação, nesta, de caricaturas satíricas de Maomé). Este atentado, em França, inseriu-se num conjunto mais amplo, em diferentes partes da Europa, com o mesmo teor «terrorista»: um mercado de Natal em Berlim; o metropolitano e o aeroporto em Bruxelas; a ponte de Westminster em Londres e a Arena de Manchester; Estocolmo, Sampetersburgo, Barcelona. França, de novo: o Bataclan, em Paris; a avenida marginal em Nice; Trébes, ataques mortais a um padre de 85 anos na Normandia e a um professor primário Samuel Paty (que levara para a aula algumas das caricaturas de Maomé publicadas pelo Charlie Hebdo com o objetivo de debater os limites da liberdade de expressão).
Ora, quem cometeu estas atrocidades? Jovens, que tinham passado grande parte das suas vidas na Europa e, em muitos dos casos, tinham, inclusive, nascido no Velho Continente. E porque – que causas, que motivações, que percursos de vida - cometeram estes crimes? “Alguns analistas chamaram a atenção para causas sociais nos bairros degradados em que muitos destes jovens cresceram. Os polemistas atribuíram as culpas a um «islão» único e indiferenciado. Os que estudaram o fenómeno da radicalização da segunda geração retrucaram: mas que islão? Salafita ou sufi? Wahbita ou barelvi? A Europa incentivara a geração dos «trabalhadores convidados» imigrantes a vir trabalhar para cá e depois, despreocupadamente, deixara demasiados deles a viverem de subsídios da segurança social em zonas como Seine-Saint-Denis, a banlieue nos arredores de Paris” (p.337). Em simultâneo, perante a indiferença e passividade dos Estados europeus, muitas mesquitas eram “lideradas por imãs formados em países como a Turquia e a Arábia Saudita, que difundiam versões radicais muitíssimo conservadoras ou militantes do islão. Ainda piores eram os autonomeados imãs, sem qualquer cargo formal, cujo papel fundamental encontramos em muitas histórias de vida de terroristas islâmicos europeus”. Acrescia que “quando o jovem já radicalizado era mandado para a prisão por um primeiro delito, esta tornava-se uma escola de mais radicalização às mãos dos extremistas islâmicos empedernidos que se encontravam entre os reclusos”. Finalmente, “o grande Médio Oriente – Iraque, Palestina, Afeganistão, Argélia, Iémen, Líbia – [de uma banda] fornecia argumentos para a guerra santa e, ainda por cima, locais para treino de terrorismo quando o novo recruta saísse da cadeia” (p.337). Os assassinos dos jornalistas do Charlie Hebdo foram os irmãos Chérif e Said Kouachi: “eles eram filhos de imigrantes argelinos e tiveram uma primeira infância pobre e agitada. O pai morreu de cancro quando eles ainda eram jovens e a mãe sucumbiu devido ao álcool, às drogas e talvez ao desespero suicida, de modo que os adolescentes órfãos foram colocados em instituições de assistência. Após a invasão do Iraque pelos americanos, os jovens começaram a prestar mais atenção ao islão. Um pseudoimã autonomeado deu início à radicalização dos dois. Sob a sua influência, Chérif, o irmão mais novo, planeava voar para a Síria, mas em vez disso foi detido e passou vinte meses em prisão preventiva numa infame cadeia francesa. Ali, onde o Estado o deveria manter pretensamente em segurança, foi instruído para se tornar terrorista por um recrutador da Al-Qaeda. Tanto Said como Chérif frequentaram um campo islamista no Iémen, onde receberam treino com armas. Depois de assassinarem os jornalistas do Charlie Hebdo, os irmãos identificaram-se como «Al-Qaeda do Iémen». O antissemitismo era outro ingrediente familiar da mistura. «É por causa dos judeus», afirmou Chérif” (p.338).
Um ano após este atentado, o Instituto Montaigne publicava uma radiografia dos muçulmanos franceses (e não pode deixar de se reconhecer, assinala Ash, que o Islão foi, historicamente, o outro da Europa, face ao qual esta se fez, sem prejuízo de contributos que também lhe forneceu): “uma grande maioria de muçulmanos sentia-se relativamente integrada em França e nunca apoiaria opiniões dos islamistas radicais, quanto mais pegar em armas. Cerca de 30 por cento dos inquiridos disseram que nunca tinham frequentado a mesquita e outros 30 por cento só o faziam em ocasiões especiais como o Eid [celebração pelo fim do jejum do Ramadão]” (p.338). Os actos de uma “minoria violenta (…) moldaram um debate florescente sobre a identidade europeia” (p.338).
Timothy Garton Ash considera o ano de 1968 como o de uma tal, e tão profunda, mudança na cosmovisão de milhões de europeus – quase como que uma reconfiguração antropológica – que não compreende como essa época não é estudada, afincadamente e em detalhe, nas (nossas) escolas. Quando viu a frase/slogan, que nos primeiros dias compartilhou, Je suis Charlie, patrocinada pelo rei Abdullah II, da Jordânia, ao mesmo tempo que por ateístas acérrimos, compreendeu não apenas que no “Eu sou Charlie” estava inscrito um mais amplo debate sobre o que significava, na Europa, a relação com a liberdade de expressão (Garton Ash lançara a ideia, em solidariedade com os que haviam morrido ao serviço do jornalismo, de múltiplos jornais, nos dias seguintes ao atentado, republicassem as caricaturas de Maomé; o diretor do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em declarações à BBC, explicando a não publicação das mesmas: “Cedemos. A violência funciona”, p.334), tolerância e a pertença ou manifestação face ao religioso – desde a ideia de que não se deve matar ninguém pelo que diz ou escreve, a reclamação do espírito iluminista de liberdade ou, numa outra declinação, a defesa de um acirrado “laicismo” à francesa: afinal, “Je suis Charlie” poderia emanar diferentes, e até contraditórias, mensagens; estava, portanto, radicalmente, em discussão o que significa(va) ser europeu -, mas, ainda, e na senda de Ian Buruma, a perspectiva de que a compreensão do europeu como praticante/militante da “laicité” (recusando, ou as regras da cidade impedindo, a menção, no diálogo público, da tradição, ignorando-se, assim, o melhor que o pensamento liberal, de Rawls a Habermas, propusera relativamente à possibilidade de indicação, enquanto motivação primeira e última, de uma religação fundamental para a adesão a uma dada ideia/constructo de ou para a polis, mesmo sem a invocação de uma doutrina abrangente para a caucionar universalmente na deliberação no fórum público) introduziu uma “esquizofrenia cultural” na segunda geração de (antigos) imigrantes para França: “foi o estilo de vida ateu, desregrado e liberal dos de 68 e dos do pós-68 que induziu a esquizofrenia cultural mais aguda em alguns muçulmanos europeus de segunda geração – os que ficaram no meio. O cristão tradicional, conservador em termos sociais e praticante, que agora encontramos com mais frequência nos Estados Unidos do que na Europa Ocidental, era menos problemático para eles. Eram sobretudo estas versões mais radicais, ateias e socialmente liberais de I am Charlie que alguns muçulmanos europeus repudiavam com I am not Charlie” (p.340) [note-se que em “Criando Bin Ladens”, Zachary Shore, Bizâncio, 2007, deixa um conjunto de testemunhos, no mesmo sentido, ainda que extensivos a outros países do Ocidente]. Que o Papa Bento XVI tenha registado, ao longo do seu Pontificado, estas mesmas condições relativamente à formação de tal “esquizofrenia cultural” e dialogado sobre a questão do melhor entendimento da concretização de uma laicidade e de uma “razão aberta” – na linha do que escrevera, quanto às relações do religioso, e do cristianismo em particular, com o Iluminismo [que, note-se, segundo Ratzinger é de origem cristã], em “A Europa de Bento” (Aletheia, 2006) – não é, por certo, um acaso (nem que o seu livro póstumo “O que é o cristianismo” [Lucerna, 2023], também publicado há poucas semanas, (re)coloque a centralidade em 68, uma apreciação, relativa, igualmente, à conturbada questão dos abusos na Igreja e controvertidas causas últimas para tal suceder, e em boa medida haja convergência entre dois homens com percursos tão diversos, e que a partir de uma comum interpretação de 68 como data-chave de uma quase mutação antropológica, façam, evidentemente, juízos de valor não necessariamente identificáveis (ou assimiláveis entre si), mesmo que com pontos de contacto, como aquele que vimos de enunciar acerca da “esquizofrenia cultural” mencionada; de uma libertação de um centrar excessivo de ocupação/preocupação e discurso em dimensões de quase evitamento de eros, não se seguia, necessariamente, o seu desregramento absoluto, na constatação do qual os dois autores concordam – e quando se lê o conjunto de autores, académicos, filósofos de entre os mais citados, que na década de 70, no caso francês, em manifestos sucessivos, no Le Monde  no Libération (décadas depois retratando-se), pediram o relaxamento nas normas penais que configuravam as relações, no âmbito da sexualidade, entre adultos e crianças não deixa de se atentar com perplexidade a tal ambiente – cf., por exemplo, Vanessa Springora, Consentimento, Alfaguara, 2020, em especial, pp.54-56 – e, porventura, compreender melhor, independentemente de se ter uma sustentada perspectiva sobre as causas maiores para os referidos abusos, a posição de Bento XVI acerca de tal período e suas consequências).
Julia Kristeva dedica um capítulo do seu breve, mas instigador ensaio sobre a cultura europeia à “necessidade de acreditar, desejo de saber”, no qual se refere à «doença da idealidade». Nesse ponto do seu texto não deixa de ser como que uma “pedrada no charco” que a psicanalista (e até por essa sua condição) inscreva, entre as causas da atual desordem mundial, uma que “os políticos [e, acrescentamos, pensadores de diversa índole] frequentemente remetem ao silêncio: trata-se da recusa imposta sobre aquilo que eu designaria de «necessidade de acreditar» pré-religiosa e pré-política universal, inerente aos seres falantes que somos e que se exprime como uma «doença da idealidade» (p.23). O adolescente “tem a necessidade de acreditar em ideais para conseguir ultrapassar os seus pais, separar-se deles e ultrapassar-se a si mesmo”, mas a “decepção” acaba por o conduzir à destruição e autodestruição (toxicomania, anorexia e vandalismo; ímpeto para os dogmas extremistas fundamentalistas). Há uma “uma crise de crença que a religião já não consegue conter” [observe-se como em “A tarde do cristianismo” (Paulinas, 2022), Tomás Halík se refere ao fim do monopólio e até à incapacidade, em muitos casos, do religioso dar vazão a uma demanda espiritual, ou de ativar/sintonizar com essa necessidade de crer, mesmo que, ab initio, pré-religiosa], estando-se, no entender da psicanalista, perante o caos de um simultâneo niilismo/fanatismo, destruidores do pensar, que ameaça “a concepção do humano forjada no cruzamento grego-judeu-cristão com o seu enxerto muçulmano, esta inquietação de universalidade singular compartilhável”. A Europa é agora “chamada a estabelecer pontes entre os três monoteísmos – a começar por encontros e interpretações recíprocas, mas também e sobretudo por esclarecimentos e transvalorações inspiradas pelas ciências humanas”. Sendo pioneira na separação Estado-Igreja, “a Europa é o lugar por excelência que poderia e deveria lançar luz à necessidade de acreditar. Mas as Luzes, na sua precipitação para combater o obscurantismo, acabaram por negligenciar e subestimar o poder deste” (p.28).

8.Com mais 650 mil votos na permanência do Reino Unido na União Europeia, no referendo do Brexit, a separação não tinha ocorrido. E, no entanto, é preciso recordar que houve 70 milhões de britânicos a subscrever a saída. A esmagadora maioria estava consciente do que estava a fazer (é preciso reconhecê-lo, porque o inverso seria desrespeitar pessoas “como o meu pai”, p.357). Isto apesar de, por um lado, a campanha pelo leave ter utilizado como algumas das mensagens principais (inscritas em) slogans (frases) que sabiam ser baseados em pressupostos falsos – como o “desvio” de verbas (nomeadamente, dos cidadãos britânicos) que iria ocorrer para a Turquia, com a pretensa entrada desta na UE (algo que, de todo, era reconhecido que não iria suceder), ou a não menos célebre alusão aos milhões que em vez de irem para a UE seriam “injectados” no sistema de saúde britânico – evitando-se, desta banda, referir o quanto o Reino Unido beneficiava, economicamente, da presença na UE e, desta forma, como a saída podia prejudicar, justamente, serviços públicos como o da Saúde – e, por outro, sem o contributo de pessoas/políticos cultos a (uma parte da) classe média não se sentiria legitimada a tomar aquela opção (Nigel Farage não convenceria muitos dos ingleses educados a ir às urnas votar Leave). Um estudo do British Election Study evidenciou as principais, e diversas, motivações que levaram os eleitores britânicos a sindicarem a permanência na União Europeia – em primeiro lugar, «economia», seguido de «direitos», «comércio» e «segurança» -, ou, pelo contrário, a votar (maioritariamente, como aconteceu) pela saída - «imigração» foi o principal motivo indicado, a que se seguia «soberania», «país» e «controlo» (p.353).

9.Timothy Garton Ash faz mea culpa: a dado momento, no pós-1989, ele integrava um conjunto de intelectuais públicos que sabia que a história tinha um caminho, este era susceptível de ser conhecido e Ash, e aquele grupo, conheciam-no, e este afigurava-se com um conteúdo muito concreto: a democracia liberal juntamente com um capitalismo globalizado e financeiro. A húbris tomou conta do Ocidente, reconhece, agora o historiador, olhando para trás. Mas não quer deitar fora o bebé com a água do banho: a democracia liberal com capitalismo foi o melhor, ou, no mínimo, o menos mau a que a humanidade chegou. O como e a que ritmo a que os países poderão/desejarão caminhar para aí é que Garton Ash desconhece. Em realidade, quando alguns países em desenvolvimento, durante a crise financeira de 2008, viram a China como modelo, ou ainda quando repara como futuras gerações irão viver, em termos materiais, pior do que (a de) os seus pais, a crença no “progresso” fica em causa. Há uma humildade que reconhece, afinal, a incerteza – e, ademais, o acompanhamento de Fukuyama quando este, no seu último “O liberalismo e os seus descontentes” (D. Quixote, 2022), refere que os excessos ultraliberais na economia foram geradores de forte erosão democrática. Isto é, e como Dani Rodrik já equacionara, não se pode pedir a expansão ilimitada dos mercados e manter a democracia tal quale. Pelo que a equação democracia liberal e capitalismo impõe, também, a distinção dos vários tipos de capitalismo de que falamos, nomeadamente destacando aqueles, como preferíveis, que geraram menos desigualdades (e isso foi alcançado com um capitalismo de tipo social-democrata, como mostra, com múltiplas fontes e gráficos, Branko Milanovic, no seu mais recente “Capitalismo, apenas” (Actual, 2022). Garton Ash, chamado por W.Bush para ser escutado, na Casa Branca, sobre a Europa, a quando da cisão de uma parte da Europa com os EUA, a quando da desastrosa guerra do Iraque, redator de discurso de Tony Blair a propósito do bom que a Europa era para o Reino Unido e da manutenção de um forte vínculo deste com aquela (quando a Europa, de há muito, era questionada no Reino Unido), reconhece que mesmo a terceira via – a que, ao longo dos anos, lendo os seus escritos, o associaríamos – acabou demasiado próxima da mundividência legada por Thatcher e do sistema financeiro, contribuindo para a crise da social-democracia (que parecia já não representar aqueles que haviam fundado o Labour e para os que se julgava que este, primordialmente, se dirigia). A crise de 2008, que é muitíssimo a crise e o falhanço daquela visão de mundo, é apontada pelo historiador como a origem direta dos populismos um pouco por todo o planeta e também na Europa (e os casos mais graves, ainda que não únicos, de Hungria e Polónia [República Checa, Eslováquia, Malta contiveram reverberações daquela política], também marcados, evidentemente, por factores de ordem politica e histórica interna: o áudio do PM socialista, na Hungria, a dizer ao seu inner circle que estava farto de dizer mentiras aos húngaros; ou a sobrevivência do PiS na Polónia também por atender e auxiliar, economicamente, os mais frágeis da sociedade, atribuindo 500 zlótis por cada filho, a famílias necessitadas, valor para estas fundamental). O conceito de desigualdade integra, e tal não tem tido a necessária visibilidade nos debates sobre a polis, a desigualdade de respeito e atenção, desigualdade essa que se tem verificado de sobremaneira, para uma sorte de cidadãos e trabalhadores, mestres de ofícios que nas últimas décadas foram desconsideradas (de Dworkin a Sandel, a chamada de atenção para esta dimensão inigualitária). O conceito de “democracias iliberais”, mesmo que “inconsistente”, é “uma expressão útil” (p.380) para descrever “uma democracia liberal num estado de perigoso de decadência” (na Polónia, a Ministra da Justiça acumula o seu cargo com o de PGR). As democracias em tal estado, onde ainda se vota mas os árbitros, os vário reguladores do sistema, capturados, os freios e contrapesos sem cadência, as minorias com seus direitos limitados, foram chamadas “iliberais” por Fareed Zakaria há mais de uma década, e reclamadas por Órban enquanto troféu teórico-prático (Zakaria chamara a atenção, com o conceito, que para que se esteja perante uma democracia não basta que se verifique a existência de uma eleição, com uma votação em condições, no dia da deslocação às urnas, mais ou menos justas; uma “democracia liberal” implica, mais, media e tribunais independentes, órgãos reguladores independentes, respeito pelas minorias, etc., pelo que diversos autores chamam “autoritarismos competitivos”, “democraturas” ou “democraduras” (entre outras designações) a regimes onde, ainda se votando, se considera que não estão presentes os elementos que compõe uma democracia liberal). A TINA, a política do “não há alternativa”, é, em si mesma, “iliberal”. Enquanto teve alternativas, em “sentido forte”, aliás, o capitalismo democrático “saiu-se bem”; “libertado dessa concorrência, tornou-se preguiçoso, satisfeito consigo mesmo e excessivamente confiante” (p.304).

10.Muitos desconhecerão que “in varietate concordia” (unida na adversidade) é a divisa da União Europeia, nem, tão pouco, que a palavra “volia” (que significa algo como “liberdade” – como em ‘batalha pela liberdade’, ou “vontade” – como em ‘vontade de viver’, p.411) é, hoje por hoje, recorrentemente tatuada pelos ucranianos. Nunca a Europa, na acepção de “cultura e valores”, a Europa aspiracional (e em parte concretizada), nunca, portanto, “in varietate concordia” (Ash, em 60, a pertencer à última geração que sabe latim) dependeu tanto de “volia”. E a hora, desde logo para o historiador que busca exemplos no passado e que ao longo de mais de 400 páginas vinca e justifica como e porque acredita no papel do(s) indivíduo(s) na história (e não apenas em “processos”, “tendências”, “coletivos”; papel do indivíduo que conforma uma realidade tanto pela positiva, como Walesa, como pela negativa, o discurso do ódio nos Balcãs, por um Milosevic, a lançar fogo à pradaria; o melhor (líder) europeu de sempre, num grupo de intelectuais com quem Garton Ash discute [o balanço de sete décadas pós-1945, recorda-nos "Pós-Guerra", de Tony Judt, que o autor evoca várias veze neste livro], procedendo-se a votação, é, por grande margem, Walesa; sendo o humano imperfeito, regista, no entanto, o académico, mesmo os heróis em dadas circunstâncias, noutras cometem erros e pecadilhos: “não há heróis perfeitos”) é, precisamente, não a da resignação (a um “fatalismo trágico”) a la Zweig (“parece que estamos a entrar num período de martírio…temos de aceitar o destino”, escreveu, o escritor, a um amigo em 1930; em 1942, suicidar-se-ia, no Brasil), mas a da resolução e perseverança – mostrados por “outros escritores do seu tempo que continuaram a lutar, com caneta e voz, por aquilo em que acreditavam, por uma alvorada que se seguiria inclusive à noite mais escura” - rumo a uma superação de mais uma travessia no abismo: “se Stefan Zweig se tivesse aguentado durante mais três anos, teria visto a sua Áustria natal libertada. Mais doze e, aos setenta e cinco anos, poderia ter testemunhado a sua amada Viena a tornar-se, depois do tratado do Estado da Áustria de 1955, a capital de uma república independente, democrática e pacífica” (p.310).

Pedro Miranda




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