O 'Outono alemão', de Stig Dagerman, ou uma releitura da Alemanha de 1946
O Outono Alemão, de Stig Dagerman
Quando os jornalistas internacionais
que acometiam a Berlim, um ano depois do fim da Segunda Guerra Mundial, elaboravam a redacção única da merecida miséria em que viviam, então,
os alemães, neles detetando, em permanência e de modo indiferenciado, uma filia
nazi não extinta, Stig Dagerman (1923-1954), enviado pelo (sueco) Expressen a terras germânicas no Outono
de 1946, condói-se com as caves inundadas em que vivem tantas famílias,
colocando os filhos na rua – até então, na cama com água quase até às canelas -
duas horas antes da escola começar para que estes encontrem víveres, isto é,
solicitando-lhes, em rigor, que roubem; fica impressionado com as ardósias
utilizadas na escola – onde não havia nada para ler ou escrever - como forma de
substituir janelas e impedir o vento de passar; implica-se nas crises de fome
na região do Ruhr (e, quando comida há, “a carne e os legumes que comem são
repugnantes”, p.17); nota pessoas debaixo dos escombros há já dois anos (e
pontes submersas durante o mesmo lapso de tempo); anda assolado com a paisagem
(“mais desolada do que um deserto”, p.31) de uma Hamburgo totalmente destruída
(pelos ataques dos Aliados), onde
pululam “ex passeios”, de “ex ruas” e “ex casas”; desloca-se entre cidades, nas
quais campeiam raparigas “oferecidas”, subnutrição, gerações perdidas, leite em pó nos vagões de comboio só para
crianças até 4 anos e uma imensidão vive nas estações (ferroviárias); a
crueldade das grandes cidades – que choca/comove os nacionalistas idealistas - que rejeitam os refugiados internos (nessas grandes urbes, é proibido procurar
trabalho, alimento ou habitação), a Baviera que devolve, “ala que se faz
tarde”, os seus compatriotas às localidades de onde são naturais, nas quais há,
por sua vez, apenas, por dia, um caldo com legumes (e isto depois de viagens
que demoram semanas, sem que os entes
públicos forneçam qualquer tipo de auxílio nesse ínterim), os camponeses
que especulam com os preços, os professores que dão, diariamente, lições de
moral refutando o recurso ao mercado
negro antes de, em cruzando os portões da escola, a ele se dedicarem, as
forças Aliadas que oferecem esmola e não ajudam ao investimento e
recomposição do tecido produtivo, ao sentimento de um castigo exagerado experienciado pelos autóctones, até ao humor (“as
ruínas são as únicas minas de carvão na Alemanha…”), que perpassa o tempo, e
que canta ou (auto) ironiza, o frio, a fome, a miséria (que são uma segunda pele para milhões de alemães).
Ora, “a fome e o frio não figuravam na
escala das penas previstas pela justiça dos homens, pela mesma razão segunda a
qual a tortura e os maus tratos nela não figuram”, pelo que aquilo por que
passam os alemães no Outono de 1946 não é “merecido”, nem “justo”; entender que
assim fosse, e ver nisso uma forma de “educação”, resultaria num ensino do
imoral como norma a seguir e, por consequência, pois, a autoridade moral de
quem tal justiça administrasse ou pretendesse fazer vingar ficaria altamente maculada: “e um juízo moral que condenasse
os acusados a uma existência inumana, quer dizer, a uma existência que rebaixa
o valor humano dos condenados, em vez de o elevar, como justamente deve ter por
objectivo inconfessado a dita justiça terrena, minaria ele próprio as suas
bases” (p.23). Não cabe dúvida, bem entendido, “no que diz respeito às
atrocidades passadas, cometidas pelos alemães no interior das fronteiras da
Alemanha bem como fora delas”; sobre isso, evidentemente, “não pode haver
matéria para discussão, pois se não poderá discutir a crueldade de forma geral,
seja ela exercida como for e por quem quer que seja” (p.22). Coisa diferente
será a problematização de uma “culpa coletiva” e, mais ainda, mesmo que se
viesse a admitir o dito “merecimento” do “sofrimento” alemão, “o sofrimento
merecido é tão pesado como aquele que o não é” (p.29). Pelo que deve ser
rejeitado: para Stig Dagerman, a recusa, outrossim, da visão romântica de um
“sofrimento” como condição de grandes feitos (futuros), das “artes”
(nomeadamente, da literatura) à política (pelos alemães), como sustentam alguns
(nomeadamente, escritores germânicos com quem conversa durante o Outono de 1946),
é imperativa.
Quando os alemães dizem que antes (de 1945) estavam melhores do que agora (finais de 1946), significa não
uma (necessária) adesão ideológica ao
que antes existira, mas, tão só, a
indicação, de muitos dos interrogados pelos correspondentes
estrangeiros na Alemanha, de que, ao contrário de hoje, naquela altura comiam e não viviam em escombros húmidos, sem
higiene ou (meio) submersos. E se esta afirmação, tal qual, nos repugna pela
não assunção (ou autocrítica) do que sustentou o modo em que viviam (aqui não
pode haver lugar a meras constatações de
facto, sendo impossível não fazer um juízo
de valor sobre o que se passara entre 1933-45), e de todos os sucessos que
levaram tantos, a tomar casas e pão (alheios, nomeadamente de judeus), Dagerman
sustentará que “a fome não é grande pedagoga” e que não é com ela que se
inculcará, como se pretende, uma grande e entusiasta adesão aos ideais
democráticos. Existia, é certo, por esta ocasião, um ou outro transeunte
(alemão, pelas cidades visitadas por Dagerman), que não deixava de cerrar os
dentes e comentar que os juízes de Nuremberga virão a ser, eles mesmos, objecto
de julgamento (judicial), mas, de um modo geral, em Hamburgo, por exemplo, as
pessoas reagem com indiferença aos painéis
de informação que indicam a aplicação de penas capitais naquele juízo.
Num momento, ano e meio depois do
armistício, em que pode, ainda, haver, em muitos (aliados) regozijo com a situação em que vive grande parte da
população alemã, Dagerman mune-se de uma sensibilidade e sentido de empatia
(que questionam onde nem dúvida havia), de uma imaginação moral que outros,
perante os mesmos factos ou declarações do “alemão comum”, “não querem ver”
(sic) - e rejeita que seja “aceitável”, “justo”, “merecido” aquilo por que
passam, então, os alemães.
De entre a descrição da sociedade
alemã, impressa em Outono Alemão
(Antígona, 2020, 3ª edição; à compilação dos textos para o Expressen, junta dois inéditos), Dagerman, para quem o “jornalismo
é a arte de chegar atrasado logo que possível”, conta as primeiras eleições
livres ali ocorridas depois de 1945 (nenhum entusiasmo ou alegria face às
mesmas, p.27). Vencidas pelos sociais-democratas.
Na interpretação do jornalista (romancista, contista, dramaturgo), que desde
muito cedo militara no sindicalismo,
a vitória dos sociais democratas não
se justifica tanto pela adesão a um programa
(os alemães não eram, neste olhar, em 1946, convictamente nazis nem, tão pouco, social-democratas), como uma opção que
passa, antes de mais, pela exclusão das restantes hipóteses (para quem não
fosse “religioso cristão”, o não à CDU;
para quem olhasse para a política externa e a relação com a Rússia, a exclusão
da hipótese comunista; quanto aos liberais, demasiado pequenos e
desconhecidos, ou, onde a sua presença fora notada, com diferentes sentimentos
regionais sobre a sua relação com o nazismo). A opção social-democrata seria, desta sorte, a mais “óbvia”. Nas
reportagens de Dagerman podemos encontrar dezenas de milhares de pessoas em
comícios, em que os históricos resistentes da social-democracia, após 12 longos anos de chumbo, voltaram a ter
lugar à mesa (como Paul Lobe). Ou os cartazes da CDU que dizem “Cristianismo –
Socialismo – Democracia”, conquanto em Hamburgo os partidários desta força
política se esgrimam, para efeitos eleitorais, (sobretudo) anti-marxistas e em Berlim (rematados) socialistas (sendo que nas suas fileiras se abrigarão muitos
antigos nacional-socialistas).
Mau grado a penúria, nem só de pão vive o homem, os cinemas
estão cheios e vendem-se, inclusive, bilhetes (para se ficar) de pé nas salas
de projecção; os teatros, possivelmente com o melhor reportório da Europa do
Norte, esgotam - e, aqui, é percebido como humilhação (alemã) o facto de os
oficiais Aliados reservarem, para si,
as melhores filas (em momento no qual a ópera “Os quatro vinténs” congrega,
igualmente, casas entusiasmadas,
embora adquirindo esta ópera em concreto um significado diverso do pré-guerra,
símbolo atual da irresponsabilidade
social); os dancing, repletos se
encontram.
Para além da empatia (para muitos contra-intuitiva) presente no olhar de
Dagerman para o Outono alemão, o
segundo elemento mais forte na descrição do homem de letras da situação com que
se confronta em terras germânicas é a dos julgamentos
de Desnazificação (só em Estugarda vão a julgamento 120 mil cidadãos
alemães). Os alemães que colaboraram, de um modo ou outro, com o nazismo devem,
agora, ser julgados e punidos. Sucede que, em não poucos casos, em julgamento,
os procuradores dizem que vão acusar
com base numa “lei americana” (assim (des)qualificam a lei que lhes incumbe
seguir), e como que pedem desculpa, antecipadamente, a vários dos seus
interlocutores (por os levarem a julgamento). Não são capazes de esgrimir
argumentos bastantes, quando os mais jovens dos acusados (a geração que aos 18 anos conquistara o mundo, aos 22 já o
tinha perdido), por sua vez, apontam o dedo ao professor, ao jurista, ao
adulto alemão que não os avisou do que era o nazismo e do que aí vinha (“ninguém
nos ajudou, nem sequer os professores que agora se mostram arrogantes. Nem
sequer os senhores, os juristas que em breve nos hão-de julgar. Sou estudante
de Direito. E nessa qualidade acuso a anterior geração de ter apoiado o nazismo
pelo silêncio”; criados num caldo de cultura obediente ao führer em idade muito precoce, como, agora, participarão em
democracia? Em realidade, muitos serão os jovens que na Alemanha nada se passa
e que devem procurar um barco rumo aos EUA). Por outro lado, quando seriedade
há na abordagem de procuradores e
juízes, quase todos os réus se munem de testemunhos abonatórios de judeus
(muitos judeus alemães na miséria, ainda, e pagos para o efeito – em mais uma
afirmação no fio da navalha e sobre a qual Dagerman não se debruça com minúcia)
que levam ao conhecimento do juiz, os vizinhos vêm, também, em sua defesa, e a
farsa inclui a inevitável recordação de como estes ouviam, sem cessar, as (perigosas) emissoras de rádio
internacionais ao tempo da Guerra.
Da(s) história(s) do quotidiano – os alemães têm as contas bancárias bloqueadas e só podem levantar 200 marcos por mês, o correspondente, à época, a meio quilo de manteiga no mercado negro; uma sentença habitual nos processos de desnazificação é que ao acusado, tendo sido ele activista, seja confiscado o seu apartamento, atribuído, em contrapartida, a uma antiga vítima das perseguições políticas. Todavia, como esta pessoa está, não raramente, entre os medianamente pobres e os mais pobres (de entre estes), não tem meios para pagar a renda de um grande apartamento do ativista nazi, acabando o alojamento nas mãos de pessoas com dinheiro, ou seja, aqueles que ganharam dinheiro durante o nazismo e graças a este, p.48; A Berlim suja e imoral, quando a moralidade, face ao período histórico em causa, fica, de facto, como que entre parêntesis ou ganha contornos diferenciados dos observados em tempos menos penosos, como mesmo os meios “eclesiásticos progressistas” tenderão a reconhecer; o homem que com uma pesada bengala, arremete pela padaria, passa à frente de todos e arremata o último pão ali existente face ao temor dos demais; o rumor, na Alemanha ocidental, de que Hitler permanece vivo… – se compõem reportagens nas quais se encontra, obviamente, presente a mundividência e forma mentis do seu autor: não apenas a rejeição de que a guerra acabou com as classes sociais (como reclamado por algumas das forças políticas alemãs, assim contraditadas), como o divisar, permanente, de fraturas sociais: desde a “classe” que cada um ocupa no metro; à factura citadinos/camponeses; refugiados/autóctones; pobres/menos pobres; jovens/adultos; a chamada da atenção para o bombardeamento mais de “bairros populares” do que “residenciais” (e, na Introdução, de Júlio Henrique, à edição portuguesa, de 1991, agora reeditada, afirma-se, inclusive, o alvejamento civil, em vez de o foco em destruição corporativa como prova de solidariedade internacional entre o capital, mesmo em plena II Guerra Mundial).
Pedro Miranda
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