Revisitando clássicas distopias (II): “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley

 

Revisitando clássicas distopias (II): “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley

1.Brave New World: a expressão que dá título ao livro de Aldous Huxley é, nele, utilizada por John, «o senhor Selvagem», quando confrontado com a possibilidade de sair da reserva indígena onde vivera para se dirigir ao civilizado mundo londrino. Admirável Mundo Novo recua, contudo, às palavras de Miranda, n'A Tempestade, de Shakespeare. Aos 12 anos, John receberá como prenda de aniversário as obras completas de William Shakespeare e estas alimentarão os pensamentos, darão forma ao sentir, serão tanto a porta de entrada no mundo (ou num mundo), numa dada compreensão deste, quanto permitirão elaborar acerca dele. A expressão admirável mundo novo, com a (singular) apropriação de John, começará por expressar uma expectativa, uma curiosidade, um optimismo até face ao mundo de que este ouvira falar - nomeadamente através de sua mãe, Linda - e que agora iria poder conhecer; adiante, na narrativa, a mesma tirada adquirirá, contudo, um cunho irónico, céptico, cínico, de quem se afasta, rejeita o tal universo (dito) civilizado ao qual o apresentam.

2.Estamos no ano 632 de N.F. (p.20). Sendo que as iniciais N.F. correspondem a Nosso Ford. Eis a divindade. Os membros deste mundo novo utilizarão expressões como “Ó meu Ford”, ou “Nosso Ford nos livre!”. E há cerimónias do “Dia de Ford”, cantos em comum, e as Práticas de Solidariedade  - certas ideologias podem ser sempre religiões de substituição, como se escreveu, sobre algumas, no século XX.

3.A acção principia, e em grande medida decorre, em Londres, no CENTRO DE INCUBAÇÃO E DE CONDICIONAMENTO DE LONDRES – CENTRAL. Trata-se de um edifício atarracado de 134 andares, com 4 mil salas, onde serão incubados, maturados, condicionados, decantados os novos humanos (proveta).

4.Vive-se sob a égide de um Estado Mundial, sob a divisa COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE.

5.Os tempos em que os seres humanos tinham mãe e pai há muito haviam ficado para trás. Era, aliás, difícil aos homens (em especial, aos jovens) desta época compreender o significado de mãe, aliás obsceno. Devia evitar-se, até, dizer tal vocábulo. Cumprindo, escrupulosamente, um plano com vista à obtenção da felicidade por parte dos humanos, os 10 Administradores Mundiais – cujo sumo sacerdote-autoridade política máxima era Sua Forderia Mustafá Monda – sabiam da necessidade de vários espécimes humanos para que todas as necessidades sociais fossem cumpridas – e “não são os filósofos, mas sim aqueles que se entregam à construção de madeira e às colecções de selos que constituem a estrutura da sociedade”. Assim, na produção em série de humanos havia que estabelecer, predestinar, à partida, uma rigorosa divisão social.
Como numa garrafeira, aí estavam, pois, os embriões destinados a serem Alfas ou Betas e aqueles outros, bem menos valiosos, a Epsiliões. Haverá, ademais, subespécies como os Alfa Mais ou os Beta Menos. Com 70% do oxigénio normal seria, de resto, possível obter anões; com menos de 70%, monstros sem olhos. Um T era colocado sobre os machos, um círculo era adstrito às fêmeas. Para as estirpes mais comezinhas, podia fazer-se aplicar o processo Bokanovsky, com uma produção em série de gémeos idênticos – “o princípio da produção em série aplicado, enfim, à biologia” (p.23). Em suma, fabricavam-se “tantos indivíduos desta ou daquela qualidade” (p.25).
Os bebés cedo serão condicionados – para serem futuros Administradores Mundiais ou futuros varredores -, sendo que o segredo da felicidade estava em gostar daquilo que se é obrigado a fazer – “fazer as pessoas apreciar o destino social a que não podem escapar”(p.31). Tal é operacionalizado de modo gráfico: “no porta-garrafas nº10, várias filas de trabalhadores eram preparados para suportar o chumbo, a soda cáustica, o alcatrão e o cloro”(p.31). Se no CID há Salas de Incubação e de Decantação, existem, igualmente, infantários com salas de condicionamento Neo-Pavloviano (com a existência de descargas elétricas). O ódio instintivo a flores e a literatura era inculcado de modo a que futuros adultos nada quisessem com a literatura e a botânica: “as flores campestres e as paisagens – observou – têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à Natureza não fornece trabalho a nenhuma fábrica. Foi, pois, decidido abolir o amor à natureza, pelo menos entre as classes baixas”(p.36). Por outro lado, havia sempre o perigo de “eles lerem qualquer coisa que fizesse descondicionar indesejavelmente os seus reflexos” (p.36). Belo elogio ao carácter desestabilizador, desafiante, questionador da literatura (para lá do que pode não incrementar à economia, supremo pecado: “não se pode consumir muito se se fica tranquilamente sentado a ler livros”, p.62).
No ano 214 de N.F. (nota: a introdução do primeiro modelo T de Nosso Ford escolhido como data da origem da nova era, p.64), havia sido feita uma grande descoberta – a hipnopedia, ou seja, o ensino durante o sono (criando um conjunto de a priori aos amestrados; estes, não se aperceberão de que aqueles lhe foram inculcados e crerão ser, neles, naturais – tais axiomas).
 
6.Face a este mundo alquímico (no qual, por exemplo, existia um Colégio de Engenheiros em Emoção), assente em métodos como a ectogénese, o condicionamento neo-pavloviano e a hipnopedia (a que havia que somar o encerramento de museus, a destruição de monumentos históricos, supressão de todos os livros publicados antes do ano de 150 de N.F., PP.62-63), em que o indivíduo é o que é por via do condicionamento com um conjunto de fármacos, cada problema resolvido com o recurso à soma – uma espécie de droga que permite a pessoa evadir-se de todos os seus problemas e estar de bem consigo, sem os prejuízos físicos de uma droga banal -, ou, quem sabe, a um pacote de pastilhas, a uma hormona sexual, uma sandwich de carotina, uma fatia de empada de vitamina A, o pseudo-champagne, o centicubo opor-se-á o universo de John, alguém que ainda vem de um mundo ancestral e mítico, por um lado, e copiosamente conhecedor do clássico dos clássicos (Shakespeare, como se disse). Isto é, ao mundo do dos humanos provetas, criados em laboratório, quimicamente puros, contrapõem-se um mundo ainda humanista (que acredita que são as histórias, as grandes narrativas que podem moldar os humanos, que têm carácter, e não um acervo de químicos a disponibilizar ao homem em reacções pavlovianas sem escolha; ou muito limitada, como no caso das classes superiores, onde, ainda assim, havia certas liberdades).
Em realidade, creio, é a disputa acerca do que é o homem que subjaz como um dos principais tópicos deste livro, que ganha contornos filosóficos mais densos nos últimos capítulos. Aí, quando John, o selvagem, assumira uma verdadeira sublevação atirando com enormidades de soma janela fora, e a polícia o levara, juntamente a outros dois homens civilizados, à presença de Sua Fordidade, Mustafá Monda explicita: estes humanos civilizados sentem-se bem, em segurança, nunca estão doentes, não receiam a morte, vivem em serena ignorância da paixão e velhice, não estão sobrecarregados de pais e mães, não têm mulheres, filhos, amantes, nem paixões violentas. A Felicidade, portanto, seria a ausência de vinculação (com o outro), de emoções, do desligar do sexo da pessoa (da paixão), de uma norma que implicava que o ideal era ser-se bebé eternamente e ter várias parceiras/vários parceiros em simultâneo.
Quando atirara soma pela janela abaixo, no hospital em que sua mãe acabara de morrer, e frente aos trabalhadores daquela unidade de saúde e os bebés/crianças em maturação, John oferecia os seus postulados: “venho trazer-lhes a liberdade (…) Mas gostam de ser escravos? (…) Gostam de ser bebés?” (p.212) (…) [Não querem] ser homens?” (p.213). Para a tradição em que John se inscrevia, ser homem, portanto, ser digno de se chamar homem, implicava a existência, neste, de liberdade.
E que tal ter cancro, sífilis, piolhos, passar fome, ser torturado, passar pela velhice?, atira-lhe Monda. Isso é, também, muito humano, não? Sim, assume, por inteiro a condição humana, John. Então, você reclama o direito a ser infeliz, não é assim? Assim é. É que “vocês não sofrem nem enfrentam. Suprimem os golpes e as flechas. É demasiado fácil”(p.236), replica John. Ora, acrescenta convicto, “eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado” (p.237). Estar vivo, ter consciência, ter/ser um “eu” implicaria cada uma destas dimensões, e não prescindiria de nenhuma.
 
7.O universo do novo mundo, no século VII de N.F. é um já longínquo daquele onde “havia uma coisa chamada cristianismo”(p.58) – uma filosofia que fazia uma apologia de uma certa contenção, o que estava muito bem antes de ser altura da sobreprodução e de não se dever renunciar a nada (atualmente havia-se cortado “a parte superior de todas as cruzes para serem transformadas em T”(p.65); afastado daquele ambiente em que se fazia sentir o “liberalismo” – um conjunto de liberdades que eram tidas como razoavelmente evidentes para associar ao indivíduo; “havia uma coisa chamada democracia” – e quer as liberdades num mundo onde todos estão programados para fazerem o que devem fazer, para gostarem do que são obrigados a fazer (sem saberem que o são), perdem o seu «contexto», o seu «referente» o seu «sentido», o mesmo se diga da democracia quando os Administradores Mundiais estão ali para velar pela felicidade das pessoas. No enredo é possível assinalar actos de censura, por exemplo, quando se pretende editar uma obra que, bem compreendida, coloca em causa os alicerces das pessoas. E, quem não é ortodoxo, pode ter, e efetivamente terá, uma ilha como destino/exílio.
Nesta questão do “liberalismo”, das liberdades individuais, importa sublinhar que, se em nossos dias (de finais da segunda metade do século XXI), o espectro da atomização individual é uma ameaça à existência de um corpo social, ao tempo de Admirável Mundo Novo (1931) ou 1984 (1949), a claustrofobia de um colectivismo que não permite ao indivíduo respirar/existir é absolutamente implacável. A pessoa é apenas uma célula do corpo social e não há que derramar lágrimas porque perdida uma célula muitas outras prosseguirão – eis uma mensagem do novo mundo, em que se inscreve o relato de Huxley (mas o mesmo é válido para Orwell). Ou seja, a dignidade da pessoa, ela mesma, ela individualmente considerada, como ser único e irrepetível, encontra-se completamente espezinhada no mundo do SOCING e do GRANDE IRMÃO e neste outro formatado pelos Administradores Mundiais.
Em um tempo anterior “havia uma coisa chamada Deus” – e não é que Mustafá Monda, Sua Fordidade, não creia na existência de um (e, já agora, antes “havia uma coisa chamada Céu” o que não impedia as pessoas de beberem muito álcool e “havia uma coisa chamada alma” o que não afastava as pessoas de consumirem cocaína: eis uma crítica a uma sociedade que embora tivesse no religioso um importante centro continuava a ter dificuldades em lidar com a angústia, com os dilemas existenciais, com a doença, a morte, uma separação, um corte). Mas a Juventude e a Prosperidade são os momentos em que Deus é esquecido, e no mundo civilizado da nova era ninguém envelhece e ninguém passa privações materiais. Deus torna-se supérfluo, ou, se se preferir ainda, e também nas palavras do Administrador Mundial, Deus manifesta-se como ausência. Esta teologia – bem como, radicalmente, a existência ou inexistência de livre-arbítrio que, hoje mais do que na altura da publicação da obra, se coloca com tanta frequência -, e suas consequências, são aqui bem exploradas: “Digo que é culpa da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. A nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade”(p.232). A civilização, à maneira do admirável mundo novo, não encolheu apenas Deus; para haver felicidade, a grande arte (ou alta cultura desaparece). Sim, sim, afirma Mustafá Mondá, um homem de transição entre o mundo de antanho, que ainda procurava a verdade – que, tal como em 1984, cai; é um valor afastado: “a verdade é uma ameaça” (p.226) -, um cientista, um físico, que buscando a verdade, pagará entre ser afastado para uma ilha ou providenciar como Administrador Mundial a felicidade alheia, “a felicidade nunca é grandiosa” (p.221; aqui a ideia de que a grande arte nasce de um certo sofrimento, ou angústia, ou confronto com certos limites com que esbarramos, neste novo mundo apagados).  Em vez da Verdade e Beleza, pretende-se Conforto e Felicidade no Admirável Mundo Novo. O Belo e o Antigo – tal como sucederá com 1984 – são para desaparecer. A Ciência deve estar amordaçada. Olhando para a sociedade do século XXI, Lipovetsky dirá que preferimos ser felizes a ser sublimes. Provavelmente, não com recurso a químicos, mas a uma sociedade do divertimento que defensores de uma “alta cultura”, como Steiner ou Vargas Llosa, não veriam como menos do que alienantes (de qualquer modo).

8.Do ponto de vista político, ideológico como que nesta obra nos confinamos com uma crítica a uma sociedade industrial, ao produtivismo – para o qual é carreada uma boa dose de ironia; até a principal droga se chama soma, como se estivéssemos sempre a adicionar -, ao fordismo aplicado a todas as dimensões da vida, com um sistema de comando central, autoritário, internacionalista (Estado Mundial). E que se pensa, reitere-se o problema do colectivismo, que “cada um pertence a todos os outros”(p.52). No desenvolvimento deste precipitado, notaremos como, por exemplo, não seria necessária nenhuma “corte” entre homem e mulher; cada um devia tomar o outro e cada um ter vários parceiros ao mesmo tempo; as crianças eram incentivadas a ter relações eróticas entre si. Não se sabia o que era viver em família (também em 1984, a ideia de humanos sem vinculações entre estes e a serem gerados por inseminação artificial era visto como o ideal).

9.O problema da alquimia é que pode gerar monstros. Nomeadamente, para o seu próprio sistema – “o ser diferente condena a uma fatal divisão” (p.141). Bernard Marx terá tido problemas de fabrico (isto é, terá havido erro na sua fecundação-decantação; ele, desde logo, tinha uma altura não completamente idónea à sua casta) e, apesar de ser de uma casta superior, não obedece ao que seria um comportamento ortodoxo. Ele quer observar um luar, ele quer contemplar o mar. Para quê? Quer a paz que advém desses exercícios. Questiona-se como seria livre se não tivesse sido condicionado. Quer ter uma mais apurada consciência do «eu». Quer sentir-se feliz, mas não com uma felicidade à medida de todos. Questiona a sua companheira de viagem Lenina se ela não perde muito ao não ser mãe. Ao não ter a intimidade, e a intensidade da intimidade, que há entre mãe e bebé. Ele não quer tomar soma, em muitas ocasiões. Ele é um primeiro agitador, desestabilizador do regime de fecundação-incubação-condicionamento (um pouco como Winston Smith, em 1984). Todavia, e em simultâneo, ele surge como alguém que gosta muito dos aspectos positivos da liberdade – como somos elogiados por comportamentos, atitudes que tomamos; no caso, sem o concurso de químicos -, mas que se afasta, e parece recusar o outro lado da moeda da humana condição (assumirmos as consequências – no caso, uma espécie de degredo – quando rejeitamos as normas sociais predominantes). Surge como agitador (pela positiva, contra a uniformidade, contra a obediência, o status quo), mas ao mesmo tempo como um cobarde, quando não tolo. Temerário.
São curiosos os nomes das personagens criadas por Huxley. Marx, Bonaparte, Darwin, Lenina (“muito pneumática”, diziam-lhe os colegas, numa espécie de duplopensar avant la lettre, dado que os neo-humanos eram apenas matéria e praticamente não possuíam espírito [pneuma]), Henry Foster, etc., convidando-nos sempre a um segundo sentido por comparação com as figuras históricas homónimas.
 
10.Tomakin, diretor da DIC, fora numa viagem com uma Beta, Linda de seu nome até um lugar distante. Ele perdera a mulher de vista, caíra por uma espécie de ribanceira. O Diretor vai embora e fica, tanto quanto possível, com remorsos. Mas aqui, já o sabemos, isso passa. Viemos a saber, bem mais tarde, a quando de uma viagem de Marx com Lenina, à mesma região que os indígenas a haviam recolhido e que esta dera à luz um filho. Escândalo, uma Beta, criada em laboratório, ter um filho. Clamoroso falhanço científico. John é o seu nome. Este nasce em MalPaís – uma localidade com uma comunidade de indígenas que sobrevivia porque era demasiado dispendioso acabar com elas. O pueblo não lhe permite participar nas jornadas da comunidade, nos seus rituais – é um estranho a eles; mas mais ainda virá a ser quando levado para Londres – uma cidade que possuía três grandes jornais: o “Rádio Horário”, dirigido às castas superiores; “A Gazeta dos Gamas”, verde-pálido; e “O Espelho dos Deltas”, exclusivamente em palavras de uma sílaba -, por parte de Marx – que faz dele um objecto de exibição, “vejam o senhor Selvagem” e com ele são feitas várias experiências – onde não encontra espaço para a solidão. Toda a solidão, todo o isolamento serão castigados (no admirável mundo novo; como será em 1984).
John fizera amizades profundas entre os menos ortodoxos do mundo dito civilizado, amara profundamente Lenina, mas, em todo o caso, um abismo, jogos de linguagem incomensuráveis entre si impediriam uma maior proximidade (Lenina jamais compreenderia a ideia de monogamia, porque assentava/fora programada em pressupostos complemente diversos, como já explicados, do que os de John; entre os 10 Administradores Mundiais dizia-se que “a moral não tem que ser racional”; eles que treinavam as crianças, colocando-as diariamente num hospital para moribundos, para lidarem com indiferença, e portanto sem emoção, com a morte, um mero facto fisiológico).

[a partir da tradução de Mário Henrique Leiria, Mil Folhas, 2003]

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A NORMALIZAÇÃO DA DIREITA RADICAL

HUMANO, AMIGO HUMANO (IRENE VALLEJO)

QUE "POLÍTICA DECENTE"? (MICHAEL WALZER)