SENTIDO DA/NA VIDA (DESIDÉRIO MURCHO E SUSAN WOLF)

 

SENTIDO DA/NA VIDA
Ao contrário do que possa parecer, a procura de sentido na vida é muito comum. Não raramente, estando, por exemplo, alguém, um dia, muito doente, de cama, procurando examinar se esteve bem na sua própria vida - e muita gente faz este exame, procurando, pois, um padrão que vá além da "felicidade" própria, do número de casas ou carros que teve, para realizar o teste - pode, segundo Susan Wolf (a filósofa que mais contribuiu para a teoria objectivista, nesta matéria), pensar em dois critérios fundamentais: a) uma "entrega activa" a b) "projectos de valor".
Não basta ser professor, biólogo, médico, enfermeiro, pai, mãe, avó, voluntário no IPO, político a querer fazer justiça no país - sem dúvida, "projectos de valor"; é preciso que, em ocupando essas profissões, actividades, cargos, responsabilidades haja, face a elas, por parte de cada um que assume esse múnus, uma "entrega activa"; do mesmo modo, por muito que "eu" seja empenhado, entusiasmado, louco, esforçado, em completa “entrega activa” a jogar computador o dia todo, esta dedicação não é canalizada para "projectos de valor" (todos os dias a jogar pc, das 9h às 5h? "Ah, se ele é feliz assim..."; "se ele assim ganha a vida..." diz muita gente…mas a perspectiva que vimos de descrever não subscreve tais considerações como estando, estas, referidas a atividades prenhes de valor).
Ora, o que seriam, então, "projectos de valor"? Seriam sempre projectos que extravasariam o "eu", promoveriam os outros e os exemplos dados - ser professor, médico, enfermeiro, polícia, político, pai, voluntário, acrescentar conhecimento ao mundo -, por excelência, estes. Talvez para surpresa de muitos, caso nos questionemos sobre o sentido da vida, poderemos, pois, encontrar uma resposta objetiva (portanto, não subjectiva; não, pois, propriamente, o "cada um é que sabe"). Na descrição do Professor Desidério Murcho - Desidério Murcho que pode funcionar, aqui, como um dos guias sobre o modo como a filosofia (contemporânea) abordou o problema do sentido da vida (registando o ensaio O absurdo, de Thomas Nagel, como tendo lançado o debate: "o estudo contemporâneo do problema filosófico do sentido da vida começa praticamente" com ele; por sua vez, "o trabalho mais influente sobre o sentido da vida nas últimas décadas do séc.XX, sobretudo nos EUA, foi o último capítulo do livro Good and Evil (1970), de Richard Taylor"), faz notar um sublinhado bem interessante: mesmo os positivistas não defendem a perspectiva de que a pergunta pelo sentido da vida é desprovida de pertinência ("hoje nenhum ou quase nenhum filósofo a defende"), em "Viver para quê?", publicado pela Dinalivro, em 2009, a posição objectivista é hoje a mais aceite no campo da filosofia.
Sintetizando, fazendo um esforço de perceber aquela posição, seria algo como o que se segue: mesmo que se entenda que a Vida, ela mesma, não tem um sentido (Susan Wolf esclarece que com o sentido da vida, as mais das vezes, se pretende encontrar um propósito ou objectivo para a existência humana, uma indagação sobre o porquê de estarmos aqui e, encontrada uma resposta, o que devemos fazer com as nossas vidas; e, neste modo de olhar o sentido da vida, reconhece a autora, tudo depende da existência (ou inexistência) de Deus), podemos encontrar sentido(s) na(s) Vida(s) (não seria o sentido 'da' vida - reservado aos "crentes" -, mas o sentido 'na' vida). Portanto, mesmo no campo estrito da Filosofia - sem referência ao Fundamento de toda a Realidade, à Realidade da Realidade - há quem defenda, e segundo Desidério Murcho é a posição maioritária neste campo do saber, que é mesmo possível medir se uma vida tem sentido (posta, assim, a equação, de coloração puramente secular, a sua resposta incluirá a ideia de satisfação emocional. A ausência de sentido, regista, é percepcionada como ‘sensação de vazio’ e insatisfação. A passividade vaga, uma vida que nunca entra em um nível desagradável da consciência, sem conexões seja com o que for, ou com quem for denota uma vida pouco significativa. O mesmo se diga, porém, de uma actividade inesgotável, mas tola, decadente ou estéril. Para esta professora da Universidade da Carolina do Norte uma vida significativa tem de se entregar activamente a algo, mas não basta entregar-se sem cuidar de perceber a quê (‘seja a que for’), por qualquer razão ou objectivo: as actividades devem dizer algo a quem as faz, identificar-se, minimamente, a pessoa, com o que está a fazer. De contrário, é a nossa condição de alienados – expressão usada por Wolf – que emerge: a pessoa, apesar de estar activa, não se entrega activamente (limita-se, poder-se-ia dizer, ‘a dar a aparência de’; e como isto é frequente (!), sabendo-se, como sabemos, de quantos fazem sem gostarem).
Se o trabalho de Sísifo parece, em si mesmo, absurdo, e imaginamos Sísifo completamente insatisfeito com o que faz, caso, contudo, uma substância lhe fosse inserta nas veias, de modo que agora Sísifo se sentisse satisfeito, feliz ao levar sucessivamente a(s) pedra(s) ao cimo da montanha (depois de estas, de modo igualmente imparável, rolarem dali a baixo para de novo serem conduzidas ao topo), esse mesmo exercício - o de levar a pedra ao cimo da montanha, que rola para de novo ser erguida até ao cume, e assim sucessiva e infinitamente - passaria a ser um bom trabalho? Quem, acerca da realização (no trabalho) de uma actividade/emprego tiver uma concepção estritamente subjectivista poderá alegar que sim: a pessoa está satisfeita com a actividade que desenvolve, pelo que o trabalho se justifica/vale por isso (por esse próprio facto; não há que procurar mais nada, aqui: o que conta é a satisfação com o que se faz, ponto). Todavia, este exemplo, ou experiência intelectual serve, na perfeição, a Susan Wolf para demonstrar o inverso: o facto de, por uma substância nas veias, Sísifo passar a satisfazer-se com aquilo que, manifestamente, é absurdo, em nada retira deste (despropósito), e facilmente compreendemos esse mesmo sem sentido (como prosseguindo/permanecendo naquele labor). Esse sem sentido não se altera porque o sujeito passa a alegrar-se com uma actividade que não o justifica (e quem diz levar pedras ao cimo da montanha para que voltem ao início para serem carregadas de novo, num processo imparável, dirá do fazer sudokus de manhã à noite, do fumar erva, do dedicar-se exclusivamente a jogar computador ou atirar setas - por muito que estas actividades satisfaçam o sujeito e/ou lhe assegurem a sobrevivência material). 
O exemplo de Sísifo permite, pois, com Susan Wolf, reconhecer um certo padrão independente - ou, em realidade, objectivo-subjectivo, dado que se espera que a dedicação a actividades que merecem a nossa devoção, que estão para além (não se esgotem ainda que as não excluam) do nosso perímetro de satisfação, de prazer, nos tragam realização, pelo que ao padrão objectivo se junta, ainda, esta entrega amorosa subjectiva - a uma actividade objectivamente valiosa - que podemos encontrar no tipo de actividades a que podemos dedicar-nos).
Muda a situação com a substância injectada em Sísifo? Muda. Mas para pior: o sujeito, em vez de estar insatisfeito (antes da injecção da substância), é agora uma pessoa que se encontra em um estado de ilusão, ou mesmo em posição de capacidades intelectuais diminuídas - o que é pior para ele.
Descrição feita, somos directamente interpelados: ‘se suspeitamos que a vida que temos vindo a viver não é significativa, não lhe daremos sentido fazendo sessões de terapia psicológica ou tomando um comprimido que nos faz acreditar que a nossa vida tem sentido’).
Se isso passa, pois, por "projectos de valor" ("entrega a activa a"), se a resposta é essa - mesmo que considere que lhe falte a motivação mais funda que podemos ter - haverá razão de esperança numa comunidade robustecida (a resposta é a da entrega a um projecto objectivamente bom. Ora, o que significa, aqui, bom? Não, não estamos no terreno moral – vidas imensas, intensas, que deram tanto ao mundo foram, em inúmeros casos, vidas pouco escrupulosas, em sentido ético.
E quando falamos em algo (verificável) do ponto de vista objectivo o que se pretende afirmar? Anotemos a pergunta de Susan Wolf: ‘Desde que nos entreguemos às nossas actividades, e que estas nos façam felizes, por que devemos importar-nos se essas actividades valem ou não objectivamente a pena?’.
Cito o argumento até ao fim, um argumento que desafia o egocentrismo, relativiza a nossa importância e sugere o altruísmo: ‘A resposta, penso, é que dedicar a nossa vida inteiramente a actividades cujo valor é meramente subjectivo, dedicarmo-nos a actividades cuja única justificação é serem boas para nós, é, numa certa acepção que tentarei explicar, praticamente solipsista. É incongruente com o nosso estatuto de, se quisermos, minúsculas partículas num vasto universo, um universo com inúmeras perspectivas cujo estatuto é igual ao nosso, e a partir das quais a nossa vida pode ser avaliada. Viver uma vida entregue a projectos cujo valor tem uma fonte insubjectiva, e portanto pelo menos parcialmente centrada nesses projectos, é um modo de reconhecer a nossa posição imprivilegiada. Harmoniza-se, ao contrário de uma vida puramente egocêntrica, com o facto de não sermos o centro do universo. A ideia básica é a seguinte: reconhecer a existência independente do universo do qual somos uma parte, envolve, entre outras coisas, reconhecer o carácter “meramente” do nosso ponto de vista subjectivo. Pensar no nosso lugar no universo é reconhecer a possibilidade de uma perspectiva, ou na verdade de um número infinito de perspectivas, a partir da qual a nossa vida é meramente gratuita; é reconhecer a possibilidade de uma perspectiva, ou antes de um número infinito de perspectivas, indiferentes à nossa existência ou inexistência, e portanto à nossa felicidade ou tristeza, satisfação ou insatisfação, realização ou falta dela. Face a este reconhecimento, uma vida que procure apenas a sua própria realização subjectiva ou a sua mera sobrevivência ou que se dedique apenas a objectivos que em nada mais se fundamentam senão a própria psicologia da pessoa em causa, parece solipsista ou tola. Uma pessoa que viva uma vida em grande parte egocêntrica – que dedique, por outras palavras, muita energia e atenção e cuidado a si mesma, que se ocupe mais especificamente da sua satisfação e gratificação, expressa e revela a crença de que a sua felicidade é importante. Ainda que não expresse a perspectiva de que a sua felicidade tem objectivamente importância, expressa pelo menos a ideia de que é importante para si. Dedicar-se somente à sua própria gratificação, consequentemente, expressaria e revelaria o facto de a sua felicidade ser tudo o que importa, ou pelo menos tudo o que importa para si. Contudo, se aceitarmos um enquadramento que reconhece distinções de valor intersubjectivo (e se acreditarmos, como parece razoável, que o que tem valor intersubjectivo não se concentra em especial em nós nem tem connosco uma conexão especial), esta atitude parece difícil de justificar (…) O argumento de Nagel [em The possibility of altruism] convida-nos a ver alguém que, apesar de tentar evidentemente evitar ou minimizar a sua dor, mostra total indiferença à dor alheia – um solipsista prático, no sentido em que, na sua concepção prática, não reconhece nem tem em consideração que é uma pessoa entre outras, igualmente reais. Grosso modo, a sugestão é, ao que parece, que se tivermos em consideração a realidade dos outros, então damo-nos conta de que as suas dores são tão dolorosas quanto as nossas. Se o carácter doloroso da nossa dor é uma razão para tomar medidas para a evitar, então o carácter doloroso da dor dos outros deveria também fornecer razões para fazer o mesmo. Ser totalmente indiferente à dor alheia denuncia, pois, uma incapacidade para reconhecer a dor alheia (isto é, para a reconhecer como realmente dolorosa, do mesmo modo que a nossa dor o é para nós) (…) especificamente, o argumento de Nagel sugere que ter em consideração um certo facto – neste caso, dá-nos razão para encarar as dores alheias como razões para agir. Se Nagel tiver razão, temos razão para nos importarmos com a dor alheia – razão que não se funda nas nossas psicologias (e, mais especificamente, não se funda em qualquer um dos nossos desejos), mas num facto sobre o mundo. A sua sugestão é que uma pessoa que não veja a dor alheia como uma fonte de razão age “como se” a dor alheia não fosse real ou dolorosa. Mas é claro que a dor dos outros é real e é dolorosa. Tal pessoa exibe pois não apenas um defeito moral ou falta de simpatia, mas também uma razão prática deficiente, na acepção em que a sua postura prática não está de acordo com um facto muito significativo sobre o mundo (…) estou a sugerir que podemos ter uma razão para fazer algo ou para nos importarmos com algo que não se baseia nas nossas próprias psicologias, nem especificamente nos nossos próprios desejos, mas num facto sobre o mundo. O facto em questão neste caso é que somos, cada um de nós, minúsculas partículas num universo vasto e repleto de valor, e como tal não temos posição privilegiada como fonte ou possuidores de valor objectivo. A dedicação total à nossa própria satisfação parece-me incongruente’). Para Nagel, acrescente-se, os argumentos de que a Vida, ela mesmo, não tem sentido porque "somos uma pequena partícula no Universo", ou porque a nossa passagem pela Terra "é efémera" não justificam adesão, antes merecendo séria refutação, o que o autor faz nos termos que, respectivamente, se seguem, em duas perguntas retóricas: se a vida não tem sentido porque somos uma minúscula partícula no Universo, porque haveria de ter (sentido) caso ocupássemos o universo quase todo?; se uma vida [na Terra, na dimensão que conhecemos] é absurda por durar 70 anos [80 ou 90 anos], não seria hiper-absurda se fosse eterna [na dimensão tal quale a conhecemos]?
Para Neil Levy, a posição de Susan Wolf é muito razoável e a sua fórmula, entrega activa a projectos de valor, sintetiza, muito bem, a posição de outros pensadores, acerca da matéria do sentido da vida - não sendo este, adverte o autor, o tópico mais vezes surgido nos papers dos filósofos. Quer John Kekes ("para John Kekes, uma vida com sentido é (inter alia), uma vida devotada ao desenvolvimento de projectos com os quais o agente se identifica e que não são destituídos de razão de ser nem são triviais", p.190) quer Robert Nozick ("o sentido na vida resulta de se transcender os limites do eu: uma vida com sentido conecta-se com valores que ultrapassam o eu", p.190) subscrevem propostas segundo as quais para que uma vida tenha sentido tem que ir além do círculo do eu.
Um problema de monta se coloca, em todo o caso, aos ditos projectos (com sentido): a sua realização, pois que a entrega enérgica, com a sua consumação, fica em causa. Levy reconhece este problema, explicitando as razões de depressão apresentadas pelos escritos auto-biográficos de John Stuart Mill. Como resolver este problema? Conseguir, por um lado, avanços nos objectivos propostos nos projectos de valor a que nos dedicamos - se não pudesse haver avanços, o esforço, o projecto, a vida seria em vão (as pedras de Sísifo nunca se amontoam para gerar um templo, chegam ao cimo da montanha e rolam absurdamente); acrescentar, por outro, a abertura aos projectos que os mantenham como trabalho em progresso. Isto sucede, aliás, argumenta o filósofo, em âmbitos de "sentido superlativo", como sejam a dedicação à filosofia, a acrescentar conhecimento ao mundo - na verdade, não se imagina um sistema de conhecimento perfeito e acabado; na dedicação à justiça - no sentido, das teorias de justiça, de conceber e concretizar uma cidade mais justa (nunca se imaginará a justiça perfeita como estando completa na cidade); na arte
O problema, aqui, é outro: a sofisticação necessária a e em quem acrescenta conhecimento ao mundo não é acessível a todos; mesmo a dedicação à justiça (política), aparentemente aberta a todos, remete para um conjunto de pré-requisitos, tempo, preparação, educação que na verdade não são acessíveis a todos. Há como que um certo elitismo nesta configuração: o que é o "sentido superlativo", na verdade, não está acessível a todos. Bom motivo para um empenho e dedicação na justiça (política) para tornar mais democrático esse sentido superlativo

Boa semana.
Pedro Miranda

P.S.: aprender a tocar violonceloescrever um romancetrabalhar como voluntário num centro de apoio infantil ou numa casa de saúderealizações morais e intelectuais (vidas como, no limite, Madre Teresa ou Einstein), actividades que conduzem a elasrelações familiares e de amizadeiniciativas estéticas de criação ou apreciaçãodedicação a virtudes pessoais e práticas religiosas. Eis alguns modos de pensar actividades com valor, não superficiais.

[publicado originalmente na rubrica "reparo do dia", da universidadefm e no jornal I. Aqui em versão integral e desenvolvida]

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