CADERNO DE APONTAMENTOS
Caderno
de Apontamentos
1.Há algo de paráfrase da República
da Roma Antiga – lá, onde o ano não
principiava em Janeiro, mas em Março – nos novos
começos de Setembro. Altura do ano em que o estio cumpriu, já, várias das
suas estações clássicas, do Festival de Teatro de Avignon ao Tour de
France. Lugares clássicos, estes
dois, aliás, curiosamente, nos quais podemos descortinar laços menos óbvios. À espera de Godot, célebre peça do
irlandês Samuel Beckett, que Avignon
poderia sempre convocar, coloca-nos, como se sabe, perante duas criaturas,
junto a uma árvore, a discutirem sobre tudo, dos Evangelhos ao suicídio, à espera de uma personagem-mistério, Godot, que não chega. Na peça, em rigor
“tragicomédia”, Harold Bloom, em O cânone ocidental, assume como central
um ethos permeado pela máxima de Santo Agostinho predilecta do dramaturgo irlandês (pela “forma
maravilhosa” que, a seu ver, nela se contém): “Não desesperes, um dos ladrões
foi salvo; não sejas presumido, um dos ladrões foi condenado”. Peça, de resto,
com uma popularidade a que não são alheios os seus “clowns”, Gogo e Didi e que “vai buscar os seus modelos ao vaudeville, à mímica, ao circo, ao music-hall, à comédia do cinema
mudo e, em última instância, às origens de todos eles; à farsa, medieval e
posterior”, apresentando a mortalidade como fardo.
Malgrado Beckett se afirmar não crente
- e até a sua fuga, juntamente com a da sua futura mulher, Suzanne, à Gestapo, em Novembro
de 1942, de Paris para o sudeste francês, se poder conceber como matéria poética daquele escrito -, desde
sempre sob Godot pairou a hipótese de
Deus. “Mas vocês talvez não saibam a melhor, que é a explicação do título À espera de Godot. God? Não só, mas também. Porque também acontece que o Beckett
estava numa terreola onde ia passar a Volta
a França em bicicleta. Foi ver com o resto da população. Uma hora depois de
parecer terem passado todos os magotes de ciclistas, o grupo continuava à
espera. Como bom irlandês, também se foi deixando ficar. Por fim perguntou a um
dos que continuavam a olhar para a curva distante da estrada:
"Alors?" E esse explicou: «On attend Godot». Godot era um rapaz
local, o orgulho da aldeia por participar na Volta a França, mesmo que só tivesse passado em triunfo solitário
horas depois de todos os outros” (Hélder
Macedo, Pretextos, Caminho, 2024 [crónica de 18-03-2009],
p.42).
2.Na reunião e antologia de múltiplas crónicas oferecidas ao espaço público português nas últimas duas
décadas, podemos ler o decano Hélder
Macedo, à semelhança de diversos congéneres internacionais provindos da área
das Humanidades, a zurzir, com tanta
razão quanta ineficácia (dir-se-ia, face ao ar
do tempo, quase quixotescamente),
o desaparecimento ou a diminuição/o minguar de determinadas disciplinas tidas por inúteis – na lógica de curto prazo de lucro mercantil -, mesmo nas mais distintas e
selectas Universidades mundiais. Assim, o caso da Paleografia, departamento eliminado no King’s College, em Oxford, desde a Grande Recessão (“decisão que o Professor Grafton [catedrático de História
do Renascimento Europeu, em Princeton] considera particularmente nefária
[e] não só por ser uma disciplina fundamental para o estudo da História…”).
Ora, em finais de Junho último, no âmbito do quinto centenário do nascimento de
Luis Vaz de Camões, foram publicadas
as duas mais recentes biografias do grande poeta português, da autoria de Carlos Bobone e de Isabel Rio Novo, respectivamente. Esta última investigadora
indicou, como fontes derradeiras nas quais haurir material diverso do até ao
momento compulsado para o conhecimento de Camões, arquivos inexplorados, mas
ainda conservados, aos quais, contudo, somente com expertise de Paleografia
se poderá colher com proveito: “O mais engraçado é que há imensos arquivos
antigos, em bibliotecas, em arquivos públicos e particulares, com milhares de
manuscritos que estão por examinar. E os investigadores sabem que eles existem.
Não sou paleógrafa e, apesar de ter formação em História, não sou capaz de ler
fluentemente documentos do século XVI” (entrevista à Visão, 06-06-2024).
3.E de Junho, ecoam, ainda, os risos e sorrisos, o humor que
congregou, no Vaticano, com o Papa
Francisco, centenas dos mais reputados profissionais na cena internacional,
artistas desta área tão séria que a comicidade
representa. Sobre a arte do riso,
o poeta romano Ovídio (43 a.C.-17
d.C.), como no-lo indica Irene Vallejo
em O futuro recordado (Bertrand, 2024, p.34), redigiu um manual
detalhado: “Aprende a rir. Quem sabe fazê-lo tem muito encanto”. A filóloga
concretiza as recomendações do bardo de há dois mil anos: “o seu primeiro
conselho é que quando abrirmos a boca sejamos moderados. Se possível, que
apareçam covinhas dos lados, isso fica sempre bem. Devemos treinar para que o
contorno dos lábios oculte o nascimento dos dentes e evite mostrar as gengivas.
É melhor se a gargalhada não sacudir muito o nosso corpo nem torcer a boca, não
convém parecermos perturbados. O riso que não desfigura é favorecedor. O
segredo consiste em irradiar alegria sem espasmos nem asfixiamentos, que
ninguém se possa confundir julgando que estamos a chorar ou engasgados. Também
vale a pena prestarmos atenção ao som. Devia fluir suavemente da nossa boca,
sem ronco nem interrupção. Não deve soar como um zurro. Devemos dar-lhe uma
música íntima, um tilintar agradável que não se ouça ao longe, que tenha o ar
de uma confidência”.
4.Assim, talvez estejamos em condições e
boa disposição para afrontar o marão
de meses de trabalho que temos pela frente – marão que é, recorda A.M.
Pires Cabral, no Volume III da Geografia Literária e transmontana, na
colecção Tellus, na esteira de Pe. Gomes Pereira, compulsado por Leite de Vasconcelos, “Casa Grande”, ou,
pela inversa, “pode dizer-se de uma casa grande [ser esta] um marão”. Um outro
significado de "Marão" é "carneiro".
Quando a janela de casa nos coloca o
olhar no colosso montanhoso, as letras
transmontanas, da sabedoria popular, tomarão, mais do que “para lá do
Marão, mandam os que lá estão”, um melancólico (brado aos céus) “bem grande é o Marão, e não dá palha nem grão”. Nas
Memórias do Cárcere, porém, Camilo Castelo Branco porventura atinja
a (não raro dura) medida do espanto,
do encarar denso e dramático que o confronto com os elementos e o elementar
ali pode ocorrer: “Ao dobrar a serra tremi de ver cruzarem-se os coriscos, e
perto de mim caiu um raio, cuja fenda na rocha eu fui examinar, e da rocha
lascada colhi uma urze queimada, que ainda tenho. No coberto da capelinha da
aldeia encravada no sopé da serra, vi o cadáver fulminado de uma pastorinha, e
mulheres em volta dela, amarelas de terror (…) O que eu vira na serra valia bem
o medo pela sublimidade terrível. Que espectáculo! Que vermezinhos somos em
presença daquilo! Como Deus é grande nas tempestades do Marão, e como o homem
ali se envergonha das tempestades de suas paixões!”.
Boa semana.
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