DAR POUSADA AO REFUGIADO, ARMAS, PALMADAS

 

DAR POUSADA AO REFUGIADO, ARMAS, PALMADAS

1.Sem prejuízo de a Ucrânia ser vizinha; sem obliterar que aquele país tem funcionado como zona tampão de um (potencial) avanço russo sobre outros países próximos; não ignorando que, em função das muitas imagens e informação diária, não é necessária demasiada imaginação moral para compreender como procuram fugir da morte e de torturas milhões de ucranianos; e sem esquecer políticas e práticas de selvajaria para com nacionais de outros países, também eles refugiados de guerra, que vinham de zonas distantes do globo, outra cultura, cor de pele e religião do que as observadas – de modo largamente maioritário – na Polónia – que não raro se quis, na voz do seus líderes políticos, guardiã das mais nobres tradições presentes a Ocidente, o que implicaria a hospitalidade e acolhimento sem distinções e descriminações de tipo nacional, étnico, religioso… -, não deixa, ainda assim, de impressionar que em território polaco tenham sido os particulares, cada cidadão, cada família, em sua casa, a garantir a devida hospedagem a cada refugiado ucraniano. Isto é, os cerca de 2 milhões de ucranianos que fugiram das suas localidades, em função da guerra de agressão da Rússia de Putin, para a Polónia não ficaram em centros de acolhimento, em dormitórios ou recintos propiciados pelo Estado. Foi cada família, cada pessoa a assumir a concreta responsabilidade pelo outro, o vizinho ucraniano cujo nome, passado, identidade eram, até agora, por si desconhecidos. E um acolhimento e hospitalidade não por uma noite, um dia, uma semana. Antes, durante um tempo que se percebe cada vez mais longo e sem data prevista para se concluir. Este muito direto assumir da responsabilidade pelo outro, tomada em mãos pelo povo polaco, merece não apenas sério elogio, como nos desafia e instiga a interrogarmo-nos, cada um e colectivamente, sobre esta disponibilidade de “dar pousada ao refugiado”.


2.A propósito do último massacre, há escassas semanas, numa escola dos EUA, no Texas, tomo nota dos dados apresentados por Fareed Zakaria (num muito recente “GPS”, na CNN): segundo estimativas da Universidade de Washington, a taxa de homicídios armados nos EUA é 8 vezes mais elevada do que a do Canadá; 50 vezes a da Alemanha; 100 vezes a do Reino Unido e 250 vezes a do Japão. Quando se fala em transtorno mental de um indivíduo como causa ou origem para semelhante(s) tragédia(s), importa perceber que, seguramente, não há 100 vezes mais pessoas com problemas mentais nos EUA do que no Reino Unido; ou, quando se alude à hipótese de jogos de vídeo violentos como factor determinante no desencadear de tais homicídios, não existem 250 vezes mais jogadores deste tipo de jogos nos EUA do que no Japão. Os EUA são excepcionais, sim, mas no número de armas disponíveis entre a população. Para 4% da população mundial (que é aquilo que os EUA representam), têm quase 50% das armas existentes no mundo. É muito fácil a um miúdo de 18 anos, nos EUA, comprar uma arma para matar pessoas - no mesmo preciso dia, dez anos antes, em que um massacre desta natureza ocorria nos EUA, também um adolescente na China planeou matar o maior número de pessoas possível, na sua escola, mas não tendo a possibilidade de possuir como arma mais do que uma faca, o pior dano que conseguiu infligir foram ferimentos a outros colegas de escola. Portanto, o controlo de armas não só é necessário como resulta. É o que fazem países como Canadá ou Reino Unido.


3. Em Portugal, o 'Instituto de Apoio à Criança' veio relançar a discussão sobre os castigos corporais, puníveis como crime desde 2007 (no nosso código penal). A campanha, agora iniciada, intitula-se "Nem mais uma palmada". De acordo com os dados, de 2019, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, 75% dos menores com sete anos são vítimas de agressão psicológica e de castigos corporais, nomeadamente bofetada ou palmada. O que não deixa de ser curioso é, depois, o discurso, tantas vezes repetido pela vox populi, de que "ai, hoje em dia não se pode tocar nos meninos!...". Se não se pode tocar, e tocam em 75% deles até aos 7 anos, como seria se pudesse (?)...Na semana passada, o Público trazia mais duas páginas sobre o assunto, escutando psicólogos, magistrados, etc., quase sempre com conclusões semelhantes às que registámos desde há muito em profissionais que se debruçam, aturadamente, sobre estas problemáticas: com tais condutas sobre as crianças, "banaliza-se a violência e mostra-se às crianças que esta é uma forma aceitável de resolver problemas, não só na família, mas com os pares".


Boa semana.


Pedro Miranda


(crónica no programa "Reparo do dia", na rádio universidadefm)

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