OUTROS PRINCÍPIOS (THOREAU)

 

Outros princípios

Em Outubro último, diz Thoreau, esteve um Sol tal, uma maravilha digna de ser apreciada e degustada, e houve tantos episódios nos nossos passeios à beira de casa, que praticamente não demos pelos jornais. Não quisemos saber dos jornais. Tivemos vida interior, histórias para contar, artigos nossos, únicos, próprios (de cada um que soube cumprir-se) que a vida exterior, para o salão de chá, passou ao lado ("quando a nossa vida deixa de ser interior e privada, as conversas degeneram em tagarelice", escreve em A vida sem princípios, Antígona, 2016). Porque se falamos das histórias e notícias do jornal, afinal temos todos as mesmíssimas histórias para contar, banais e repetitivas, o que as torna fúteis. "Penso que a mente pode ser constantemente profanada pelo hábito de prestar atenção a coisas triviais, de tal modo que todos os nossos pensamentos ficam eivados de trivialidade. O nosso próprio intelecto ficará, por assim dizer, macadamizado, e as fundações partidas em fragmentos para as rodas do tráfego lhe passarem por cima; e se quisermos saber o que fará o pavimento mais duradouro, que ultrapasse os calhaus rolados, as tábuas de espruce e o asfalto, temos de perscrutar algumas das nossas mentes que desde há tanto tempo têm sido sujeitas a este tratamento. Se nos tivermos assim profanado - quem o não foi? -, o remédio será, através da circunspecção e da devoção, reconsagrarmo-nos e, mais uma vez, fazer do espírito um santuário. Devemos tratar as nossas mentes, ou seja, nós próprios, como crianças inocentes e ingénuas, que estão à nossa guarda, e ser prudentes quanto aos objectos e aos assuntos que confiamos à sua atenção. Em vez de ler o Times, ler as Eternidades. Os convencionalismos acabam por ser prejudiciais como as impurezas. Os próprios factos da ciência podem conspurcar a mente com a sua secura, a menos que, de certo modo, sejam apagados todas as manhãs ou tornados férteis pelos orvalhos da verdade fresca e viva. O conhecimento não nos chega através de uma acumulação de pormenores, mas de clarões de luz vindos do céu" (p.53). Descontada uma aversão à coisa pública, a política vista como algo de "superficial e desumano"(p.61), este convite, em meados do século XIX, a uma resistência ao fugaz e à dispersão, a urgência de o privado, melhor, o íntimo merecer séria escuta, não deixa de alcançar, no histriónico tempo da rede e de uma parafernália de media à disposição, de notícias de meia hora (de duração) e de tanto supérfluo que engolimos, uma pertinência iniludível ("Eu diria que ler um jornal por semana já é demais. Tentei-o recentemente, mas depois fiquei com a impressão de que há muito que não vivia na minha terra. O sol, as nuvens, a neve e as árvores já não me dizem muito. Não podemos servir dois senhores: é preciso mais que a devoção de um dia para conhecer e possuir a riqueza de um dia", aponta a páginas 46). Pertinente, bem entendido, como contrabalanço. A tanta solicitação exógena. Mas não como confirmação, como um outro absoluto, de uma sedução eficaz de um canto de sereia que desertifica um chão comum e prolonga uma agonia solitária de que este tempo padece. Barroso diz que são Camões e Shakespeare que ficam, mas sem dúvida que o político, de preferência, brilhante, marca e influencia a sociedade (Steiner, de quem Barroso chegou a prefaciar A ideia de Europa, inclui o político num daqueles campos em que a lotaria genética e cultural faz com que alguns cheguem a marcar em bronze uma comunidade). Mas não será, também, que por vezes temos que tomar um dos caminhos, que público e privado nem sempre são compatíveis e congruentes na nossa atenção preferencial? "Será que a mente deve ser uma arena pública onde se discutem os assuntos da rua e os mexericos à hora do chá, ou ser uma parte do próprio céu, um templo hipetro, consagrado ao serviço dos deuses?" (p.49)
De resto, pretender saber dos passeios de Massachusetts e ignorar o que se passa na Europa, fazendo-o, ademais, orgulhosamente, poderia relevar de uma atitude provinciana. Mas o autor contradita bem: "somos provincianos porque não encontramos na nossa terra os nossos padrões; porque não valorizamos a verdade, mas o reflexo da verdade; porque estamos deformados e reduzidos a uma devoção exclusiva ao negócio e ao comércio, à indústria, à agricultura e coisas semelhantes, que são apenas meios e não fins" (p.56). Para o agrimensor, não somos "casca e concha" e quem age como se assim (nos) considerasse vivia "uma vida sem princípios" (de aí o título da conferência publicada em 1863, já após a morte do escritor, na Atlantic Monthly).
Para Henry David Thoreau, verdadeiro ocioso é o que trabalha apenas pelo dinheiro, enganando-se a si mesmo - mais importante -, e àquele para quem trabalha ("temos de ganhar a vida amando aquilo que fazemos",p.28). Mais, "um homem eficiente e de valor faz o que pode, quer a comunidade lhe pague por isso quer não" (p.26) E o facto de quase toda a gente aceitar mudar de emprego, se fosse muito melhor remunerada ou obtivesse maior fama num outro ofício (do que aquele com está actualmente comprometido), diz muito da falta de realizações nas nossas vidas/sociedades ("mais vale um homem morrer de fome do que perder a inocência a ganhar o pão de cada dia", p.40).
Se eu passeasse por aquele bosque, durante uma manhã inteira, apreciando-o, comungando-o, participando da sua pureza e leveza, eu seria um mandrião; mas caso eu especulasse com aquele bosque, arrasando uma inteira floresta, eu seria um empreendedor. Uma vida que aposta tudo na sorte (na exploração do ouro, por exemplo), está já perdida, não se oferecendo a nada ser ("a filosofia, a poesia e a religião dessa humanidade não valem o pó de uma bufa-de-lobo", p.32).
E isto, conclui Thoreau, nesta breve conferência, impede que invistamos no essencial: "Quando queremos mais cultura do que batatas, mais esclarecimento do que guloseimas, então os grandes recursos de um mundo são explorados, e o resultado, a produção principal, não são escravos, nem operários, mas homens - esses raros frutos chamados heróis, santos, poetas, filósofos e redentores" (p.60).

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

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