A CORAGEM DE VER ATÉ AO FIM (DAVID SATTER)
A CORAGEM DE OLHAR ATÉ AO
FIM
1.Em “Quanto menos soubermos, melhor dormimos” (Zigurate, 2022; originalmente publicado pela Yale University Press, em 2016), o historiador e jornalista David Satter – correspondente em
Moscovo, para o ‘Finantial Times’, em diferentes décadas; nos anos de
1976-1982; entre 1990-2013, sendo expulso duas vezes do país – escreve que foi
a entourage de Boris Ieltsin e de Vladimir
Putin quem ordenou, em 1999, em conjugação com o FSB (serviços secretos),
os ataques aos bairros residenciais de Moscovo,
Buinaksk e Volgodonsk (4 prédios de apartamentos explodiram entre 4 e 16 de
Setembro), dos quais resultaram várias centenas de mortos, no intuito de os
atribuir, como veio a fazer, a terroristas tchetchenos e, desse modo, poder
justificar e avançar, como também ocorreu, para a segunda guerra na Tchéchénia
(a primeira acontecera cerca de 5 anos antes). Com índices de popularidade nos
mínimos, com medo de perder as eleições presidenciais de junho de 2000 (que se
esperavam livres) e, até, com receio de - tal o grau de pilhagem, desmando e
injustiça que se atingira na Rússia, prejudicando milhões de pessoas, cuja
cólera fora despertada - as próprias vidas, e de seus familiares, estarem em
risco, os homens-fortes de Ieltsin e
um ambicioso e inescrupuloso primeiro-ministro em ascensão a liderá-los,
Vladimir Putin (inicialmente, e enquanto candidato às presidenciais do ano
seguinte, aparecia nas sondagens, em Agosto de 1999, com 2% das intenções de
voto), lançaram um ataque mortal contra os seus próprios cidadãos,
desencadeando mais um conflito bélico e mobilizando os russos para o mesmo
(subindo, então, Putin, vertiginosamente, nas sondagens, até aos 45% com que se
fez eleger). Para a tese que articula, Satter convoca um copioso acervo de
indícios e evidências (note-se que diferentes jornais russos à época,
especialistas em segurança, peritos em serviços de informação em declarações a
periódicos de referência internacionais, políticos, historiadores depuseram no
mesmo sentido, após investigações que demonstraram, entre outros, a logística,
o grau de preparação, a antecedência necessária da programação, os agentes
envolvidos, a impossibilidade de tchetchenos acederem e movimentarem semelhante
operação, os materiais utilizados; vários agentes, nomeadamente políticos,
incluindo deputados da Duma, que
investigaram o caso acabaram, como sempre, mortos ou exilados) e deixa,
sobretudo, esta conclusão: só por se recusar a acreditar no inacreditável –
isto é, que havia uma clique política
que não tinha pejo em matar os seus próprios cidadãos, para se manter no poder
e ao abrigo de qualquer incómodo – é que o Ocidente se equivocou, desde o momento zero, sobre quem era Putin e
qual a natureza do seu regime. Houve, em termos ocidentais, pois, um
auto-engano, em parte pela incapacidade de assumir aquele pressuposto (o de os
verdadeiros inimigos do povo russo estarem no Kremlin; realmente terrível
constatar dirigentes políticos do próprio país ordenarem matar, de madrugada e
em operações sofisticadas, muitos seus compatriotas…que dormiam; num outro
caso, apanhando-os a meio de um importante jogo de futebol televisionado; isto,
sempre em bairros de operários), em outra medida em falha consciente (os
indícios eram tais que só a absoluta credulidade aceitou a ausência de
aprofundamento da investigação a uma escala internacional).
2.No meio do conjunto de
explosões de bairros, em Setembro de 1999, na Rússia, há um caso em que a
operação falha, as pessoas abandonam, atordoadas, os seus apartamentos, a meio
da madrugada, dormem, com medo de regressar a suas casas, na rua, percebem a
falsidade das (parcas) explicações dos seus líderes políticos para o que se
acabara de assistir (na cave de um prédio, um conjunto de material disposto
para tudo ir pelos ares), e, como se tal não bastasse, um membro da nomenklatura, a muitos milhares de
quilómetros (de distância) no imenso território russo, comentaria, aliás, o
caso - que, evidentemente, se previra ir até ao fim, com o pior dos desfechos
para mais vidas humanas - com dois dias de antecedência, como se aquele já
tivesse ocorrido, dada uma falha do comando burocrático ou do serviço de
informações (na transmissão, ao dirigente, do que se passara). O absurdo toma,
mesmo, conta da vida de um país, e o faz de conta é adoptado, infiltrando-se,
de modo deletério, de forma massiva, entre a população, como se uma trágica
opereta estivesse em marcha, perante a aparente impenetrabilidade do regime, a
impotência do cidadão, o medo à flor da pele, a condenação que a esmagadora
maioria teria por certa em se rebelando, uma história secular de submissões, o
fatalismo incrustado. A isto, contudo, soma-se, se possível, um ‘contrato
social’ especialmente perverso que David Satter não deixa, também, de
denunciar: desde que o nível de vida das pessoas pudesse (possa) ir aumentando,
não importaria (importa) que a cúpula do poder continue a roubar. É neste
ambiente sufocante, de uma mentira permanente e sistemática, sabida e
consabida, praticada e hegemonicamente partilhada, de um beco com saída
dificílima (de arrombar) que, por um lado, não admira que o ensaísta reclame a
necessidade de “uma reforma moral” na Rússia (como ingrediente indispensável
numa mutação “essencial”); por outro, que, já em 2016, apelasse às forças
endógenas – partindo de uma base de 10/15% de democratas, segundo os seus
cálculos, mas a que muitos se iriam juntar, de acordo com o que prevê – e à
combinação cósmica certa – as circunstâncias que fizessem Moscovo, em
definitivo, depor o(s) tirano(s), com Satter a fazer analogia com a situação do
igualmente corrupto e de aparência inexpugnável regime de Ianukovitch, na Ucrânia, cair, num misto de arrojo popular,
indignação pela violência inaudita sobre cidadãos indefesos, leis mal
engendradas em momento crítico pela liderança ucraniana, falta de sagacidade
política e, em realidade, a fechar 2023 permaneçamos com a liderança russa, até
ver, intocada. O diagnóstico de Satter - o retrato do avanço russo para a
Crimeia, os recursos discursivos, as fontes a que, da Rússia, se apelou, os
inimigos inventados, a carne para canhão
do próprio povo, os mortos escondidos, a história manipulada, tudo em 2014 como
em 2022 – afigura-se de particular lucidez – em 2016, o autor registava como
perante uma cleptocracia brutal, corrupta, com todos os meios policiais e
militares à disposição, que atacara, despojando-a dos seus bens, a elite, e
violando e espancando as classes populares, as mulheres, os estudantes…a queda
face, nomeadamente, a multidões que não desarmaram na luta contra tal regime
(mesmo que antes, em parte, muitos sectores possam, ainda assim, ter sido
complacentes e esperado pelo compromisso e entrada na UE; quando Ianukovitch se
afasta desta, então abre, em definitivo, caminho à sua própria derrocada),
Putin compreendeu, imediatamente, que não poderia permitir semelhantes sinais
internos e avançou de imediato para a Crimeia; este, mesmo, argumento, se hoje,
a muitos parece evidente para explicar, pelo menos em parte, (a motivação russa
para) a barbárie da invasão da Ucrânia e a tentativa de decapitar Kiev e a sua
liderança, desde Fevereiro último, e mesmo que sem o conceber como motivação
exclusiva e última (a aspiração de cariz imperial chegou a prometer a ligação
Vladivostok-Lisboa) há oito meses, compulsando-se, largamente, o nosso espaço
mediático, e com excepção de uma entrevista de Anne Applebaum, ao Público,
a escassíssimos dias da invasão – quando os nossos muito particulares especialistas
militares garantiam que aquela não iria ocorrer e muitos viam por detrás desse
acenar outros interesses e potências, mas sem justificar tais cuidados –, não
foi identificado pela não pouco numerosa cadeia de comentadores -, mas, também,
é certo, e por outro lado, um diagnóstico impregnado (desde há seis longos
anos) de uma esperança de uma transformação interna russa que ainda não passou
de uma aspiração e desejo, certamente muito partilhados em várias latitudes.
3.Muitos de nós ainda terão
na memória algumas imagens e/ou um ou outro relato do que foi a tomada de
reféns, por terroristas tchetchenos, no Teatro
Dubrovka, em Moscovo (23 outubro 2002, quando o público assistia ao musical
mais popular na Rússia, ‘Nord-Ost’), ou de uma escola em Beslan (1 de Setembro
de 2004). Este último caso, ao envolver tantas crianças, será, ainda,
porventura, mais pungente e no relato de Satter não somos poupados aos mais
sórdidos dos pormenores – os terroristas colocaram os reféns nas janelas da
escola, mas o estado russo bombardeou tudo e deixou as pessoas serem queimadas
com as granadas que enviou; reféns a terem que beber a própria urina e um homem
ficou vivo, mas sem pernas nem nádegas; durante os dias que durou, este
sequestro de pessoas por terroristas, o estado russo principiou por se recusar
a qualquer gesto de intervenção que pudesse colocar em perigo a vida dos que
estavam na escola, para logo carregar, de forma brutal, sem olhar aos inocentes
que ali se encontravam, arrasando para mostrar uma força implacável que
assegurasse a vigência de um Leviatã que deixara, verdade inconveniente, com
incompreensível negligencia, os sequestradores avançarem até onde uma segurança
interna minimamente credível não teria deixado -, porque eles, diversamente do
sensacionalismo, estão aqui ao serviço de uma ética: a da rejeição do pilar
sobre o qual o putinismo está
erigido, a saber, o desprezo absoluto pelo indivíduo (o único país civilizado
no qual os interesses do Estado estão acima do valor da pessoa, assinala o
historiador Yuri Felshtinsky, que partilha a perspectiva de David Satter quanto
aos acontecimentos, e respectiva autoria, de Setembro de 1999 acima descritos).
4.O título, na edição portuguesa, do livro de David Satter é “Quanto menos soubermos, melhor dormimos” e tal pode remeter-nos para um possível diálogo entre russos face ao regime com que se deparam diariamente – quem souber demasiado, quem quiser saber muito relativamente a algo que, de algum modo, contenda com a “coisa pública” coloca-se, potencialmente, em sérios apuros -, mas também pode interpretar-se como um irónico mea culpa ocidental – o ‘não quisemos ver’ a que este ensaio, incisivamente, aponta o dedo -, divisando-se, ainda, o modo de poder ser pensado como um alerta derradeiro do que pode vir – se soubéssemos que Putin e seus sequazes eram capazes de bombardear bairros residenciais de Moscovo, o que pensaremos do que será capaz de fazer fora do seu país (?)…-, mas, nele, ressoa, ainda, quase inevitavelmente, Celan (sobre o nazismo): sabemos e, mesmo assim, conseguimos dormir. Valha-nos, paradoxalmente, as insónias, - documentadas, amplamente, nos meses iniciais deste conflito -, esses momentos em que o pulsar, a agitação e angústia contra a injustiça (sobretudo, estas) e, segura e naturalmente também, a preocupação pelo expansionismo de Putin, como sinais de resposta interior e rebeldia face ao mal.
Boa
semana.
[hoje, no 'reparo do dia', na universidadefm, e aqui na íntegra]
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