A PROPÓSITO DE "A VIAGEM DO ELEFANTE" - NOS 100 ANOS DE SARAMAGO

 

Do estatuto do narrador. A propósito de "A Viagem do Elefante", de José Saramago

O habitual elefante em loja da porcelana linguística mais convencional e purista está de volta, numa provocação estética e desafio literário de não pouca relevância: é o estatuto do narrador que emerge como repto ao leitor do último “conto” – assim pretende o autor ver classificada a sua mais recente obra – do Nobel da Literatura português.
Habituados a operar com a distinção narrador-autor, com o primeiro a não ser subsumível nem tão pouco diluível no segundo, é com algum embaraço que assistimos à verdadeira osmose promovida por Saramago, entre estas duas “entidades”. Para efeitos de melhor explicitação, pensemos, ainda, na poesia e na análise centrada no “sujeito poético”: não atribuímos os pensamentos, as ideias, os sentimentos ao autor Pessoa ou Cesário Verde, por exemplo, mas referimo-nos ao “sujeito poético”, “sujeito” com o qual, de resto, os autores não têm de concordar ou se aproximar (bom, então no caso de Pessoa e seus inúmeros heterónimos, uma conciliação complexa…).
Mas o homem que gosta de quebrar as demais convenções literárias – a separação do discurso direto do discurso indirecto, com grafia adequada; os pontos de interrogação ou exclamação a concluírem frases que os reclamam; as maiúsculas nos nomes próprios, etc. – vai direto à “falsidade” das máscaras (Pessoal e Transmissível, TSF,03/11/08), um tanto mefistofélicas, que o autor coloca, escondendo-se e escudando-se, cobardemente, no seu “narrador” ou “sujeito poético”, e, pura e simplesmente, elimina o narrador, ficando o nu autor (nu). É, assim, um convite à inquietação, quanto à nossa forma de abordar/pensar o texto, que aqui se expõe.
Claro que incidindo A Viagem do Elefante sobre o já remoto séc.XVI, esta perspectiva sobre o, ou melhor, a ausência do (estatuto do) narrador, permitirá a Saramago proceder a comparações com épocas futuras (nomeadamente, aquela em que vivemos), mostrar quanto mudámos de atitude perante a vida, o mundo e os outros – “as rudes gentes destas épocas que ainda mal saíram da barbárie primeva prestam tão pouca atenção aos sentimentos delicados que raras vezes lhes dão uso. Embora já esteja a ser notada por aqui certa fermentação de emoções na trabalhosa constituição de uma identidade nacional coerente e coesa, a saudade e os seus subprodutos ainda não foram integrados em Portugal como filosofia habitual de vida”, (pág.95) – dar conta da evolução das palavras ou utilizá-las fora de época – “não sabia que entre os subordinados havia dois amantes dos pombos, dois columbófilos, palavra talvez ainda não existente na época, salvo porventura entre iniciados”, (pág.114) – baralhar e voltar a dar, exercendo, com requintado hedonismo a ironia para com os alvos mais comuns na sua obra – por exemplo, coloca na boca de um cura de uma remota aldeia portuguesa, de meados dos seiscentos, a frase dirigida à sua comunidade “lembrai-vos, o povo unido jamais será vencido”, (pág.82) – podendo, ademais, a sua abordagem narrativa, servir os intuitos mais politicamente corretos ainda que entrelaçados com humor, colocando parêntesis na história para se dirigir directamente a quem o lê – “reconheça-se (…) que um certo tom irónico e displicente (…) de cada vez que da Áustria e seus naturais tivemos de falar, não só foi agressivo, como claramente injusto” (pág.175/76).
Há, por vezes, um misto de narrador-contista-ensaísta. Saindo do cânone, a flexibilidade, a elasticidade, a inteligibilidade, a plasticidade, o humor saem, claramente, favorecidos. Mas a quantas vozes se fala, durante toda a obra? E não se objetará, também, que o autor sempre poderá buscar esconderijo no ventre das personagens que compõem a intriga, para não apor a sua assinatura a afirmações pelas quais não pretende vir a ser acusado – para seguir a lógica do raciocínio de Saramago? Não é Saramago, o Saramago narrador, por muito que não goste do substantivo adjectivo, devedor da história que começa por lhe dever, mas a qual já está credora em relação a si na imaginação, na fantasia, nos factos que lhe surgem, por ela propiciados e proporcionados, já noutra “dimensão”? Não fará sentido manter a diferenciação entre aquele que está na história, a vai porfiando e revelando, e o que dela sai, mais frio e racional, exterior, e que ensaia de tudo um pouco?
Bem sei, o autor de O Memorial do Convento dirá que se fundem, e a prova provada serão os seus incontáveis aforismos, ditados populares, frases recônditas da alma abalada no fio da navalha da vida e trazidas agora ao convívio de todos, neste especialmente bem-humorado A Viagem do Elefante.
O elefante do título é verdadeiro. Oferecido por D. João III e D. Catarina ao arquiduque Maximiliano, casado com a filha de Carlos V, e futuro Imperador. Estamos a meio do séc.XVI. O bicho irá até Valladollid, primeiro à guarda (exclusiva) de portugueses – até Figueira de Castelo Rodrigo – com a companhia vigilante de austríacos – entre esta e Valladollid; viajará, depois, para Viena, ladeado pela corte de Maximiliano. Passará tormentas, nunca irá antropomorfizar-se – embora, por uma vez, tenha ficado “triste”, (pág.120), e, por outro lado, se fale, também, na “filosofia do elefante” (pág.54), como que a dizer-nos que a procura da sabedoria não está reservada apenas para os humanos – e falará com o cornaca, seu domador, numa língua inacessível. Despedir-se-á dos humanos – “pela primeira vez na história da humanidade, um animal despediu-se de alguns seres humanos como se lhes devesse amizade e respeito”, (pág.123) - com os quais estabelece ligação, e chega mesmo a tempo de Trento para produzir um milagre (a Igreja Católica é sempre predilecto objecto de recriminação para Saramago). Como “não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante” (pág.65), a surpresa, a acomodação e o deslumbre, os aplausos e as pateadas, o carinho e a rejeição fazem parte da paleta de reacções que temos à pele – e é dessa expedição à nossa “labiríntica” alma – “já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível”, (pág.239) - que nos fala o livro. Que talvez tenha uma moral subjacente. Uma lição sapiencial, se preferirmos. “Assim é a lei da vida, triunfo e olvido” (pág.71). Quando o elefante morre, dois anos após a chegada a Viena – e passados dois anos de ter salvado uma criança da morte – os seus restos são aproveitados, e este transforma-se num…bengaleiro. Recebido em apoteose, aplaudido, com uma corte atrás, vigiado por soldados, com tratador especial, revestido de roupagens fantásticas. E, agora, bengaleiro. Vã glória, metáfora hominídea evidente.
Das classes sociais e do cinismo, das hierarquias glosadas com engenho, do privilégio, implícito, nos seus afectos, aos mais fracos – “que se arranjem como puderem, disse o comandante, recorrendo, à falta de melhor, a uma das frases que compõem a panaceia universal, à cabeça da qual se exibe, como exemplo acabado da mais descarada hipocrisia pessoal e social, aquela que recomendava paciência ao pobre a quem se tinha acabado de negar a esmola”, (pág.113) - da condição militar e suas fraquezas (p.ex., pág.126), dos poderes despóticos (o arquiduque que altera o nome do elefante e seu domador, de forma arbitrária), de Portugal e dos povos ibéricos e da diferença idiossincrática destes com os povos da Europa Central (esperteza e astúcia vs ordem e disciplina), dessa memória de elefante que nos leva do elefante Salomão ao sapiente rei homónimo (pág.97), da função do romancista/ficcionista (pág.226/27), da pequenez humana (págs.155 e 161), da reflexão sobre as palavras (poderá uma paisagem ser descrita por palavras? O que significa a palavra montanha para a própria montanha?, pág.241/242) e da comunidade linguística – um subjectivismo/relativismo que não foi novidade; para nós, “fora das palavras, não há nada” não é asserção válida – da condição humana.
Mais do que ironia, o humor, uma história de milhares de quilómetros que percorremos sem cansaço nem enfado. Todo um triunfo. Para que não haja olvido.
 
Fora das palavras, o mundo ainda

Retomemos o ponto onde ficáramos: Subhro, mais tarde Fritz por mandamento do arquiduque Maximiliano, o cornaca, o indiano domador de elefantes, e especialíssimo companheiro de Salomão, no último conto de Saramago, tem ainda como incumbência filosofar. A reflexão sobre as palavras não é ponto menor no épico narrado. “Isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada”. Não? Talvez o leitor, perpétuo seguidor da intriga, esteta imerso, concentrado na hercúlea viagem para Viena tropece, precisamente, nas palavras, sem disso se dar conta, e ignore o enorme salto que elas – estas em concreto, do passo vindo de citar-nos propõem. E que salto teremos que dar? Ouçamos o autor (narrador): “A verdade, se quisermos aceitá-la em toda a sua crueza, é que, simplesmente, não é possível descrever uma paisagem com palavras (…) Pergunto se vale a pena escrever a palavra montanha se não sabemos que nome se daria a montanha a si mesma”. Fora da nossa linguagem, fora das palavras não há montanhas? Nunca acederemos à realidade em si – númeno – e, sendo esse um dado (será?), não importa perscrutar essa mesma “realidade”, exercício supérfluo e condenado ao fracasso, bastando-nos a apropriação da realidade-para-nós – o fenómeno? Bom, pelo menos é o que defende um pragmatista como Rorty, evocação imediata, reminiscência lendo Saramago. Escreveu o autor de As consequências do pragmatismo: “Não podemos encontrar um guincho celeste que nos eleve para lá da mera coerência – mera concordância – em direcção a algo como «correspondência com a realidade tal como ela é em si». (…) Os pragmatistas gostariam de substituir o desejo de objetividade – o desejo de estar em contacto com uma realidade que seja mais do que uma comunidade com a qual nos identificamos – pelo desejo de solidariedade com essa comunidade”. Comunidade linguística, bem entendido.
A este desafio epistemológico, a esta posição pragmatista, responde com intensidade e brilhantismo Thomas Nagel, erguendo a espada da objetividade face a um redutor subjectivismo e relativismo que é, até, como o filósofo demonstrará em A última palavra, uma contradição nos próprios termos.
Observemos: “os seres humanos que têm crenças científicas ou matemáticas concordam que estas coisas são verdadeiras, sem mais, e que seriam verdadeiras quer acreditássemos nelas quer não – e, além disso, concordam que o que faz que isso seja verdade não é apenas o facto de concordarmos em dizê-lo! A única maneira de lidar com um tal slogan subjetivista é convertê-lo numa asserção específica e substantiva sobre aritmética, física ou seja o que for e ver como se sai” (pág.40). A verdade está para lá, pois, da coerência, da concordância, da solidariedade (de uma comunidade) linguística. Há mundo ainda, fora das palavras. E o exemplo da montanha? Pois, é precisamente na montanha que Saramago se encontra com Rorty, novamente. Escreveu este último: “O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu pensam é que é inútil perguntar se existem montanhas ou se será meramente conveniente, para nós, falar de montanhas”. Vale a pena escrever a palavra montanha (?), perguntara Saramago. Existirão montanhas, ou chamamos montanha a uma realidade apreendida por nós a que entendemos dar esse nome, ignorando – e sendo inútil investigar – se a coisa-em-si – a montanha – existe (mesmo)? Em Does Academic Freedom Have Philosophical Presuppositions? (citado por Nagel), Rorty prossegue: “isto é o tipo de coisa que queremos dizer ao afirmar que é inútil perguntar se a realidade é independente dos nossos modos de falar acerca dela. Dado que é compensador falar de montanhas, como sem dúvida é, uma das verdades óbvias acerca de montanhas é que elas já existiam antes de falarmos delas. Se não acreditarmos nisso, não saberemos provavelmente como jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra montanha. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem nada a ver com a questão de saber se a Realidade, tal como É Em Si, para lá do modo útil como os humanos têm de a descrever, tem montanhas”. Thomas Nagel não desarma: “a ideia de que a objetividade não é senão solidariedade com a nossa comunidade linguística (mesmo que se alargue às coisas que a nossa comunidade linguística afirmaria serem verdadeiras, quer o tenha efectivamente dito, quer não) contradiz directamente as afirmações categóricas de que pretensamente se está a falar – afirmações como as de que há um número infinito de números primos, de que a discriminação racial é injusta, de que a água é um composto, de que Napoleão tinha menos de 1, 80m de altura”. Mas, num exercício de grande rigor (e honestidade) intelectual, Nagel traz sempre à colação o pensamento ao qual se opõe, e à exposição mais conseguida, dentro desse outro paradigma. Do ponto de vista da linguagem, é Wittgenstein quem destaca, com uma doutrina que afirma - descreve Nagel - “que, apesar da verdade do solipsismo não poder ser afirmada, se manifesta no facto de o mundo ser ainda descrito na minha linguagem, por mais que eu o descreva de modo impessoal. Não posso em verdade dizer nesta linguagem que o mundo é o meu mundo porque na minha linguagem isso é falso: o mundo existia antes de mim e teria existido ainda que eu nunca tivesse nascido, por exemplo. Mas tudo isto está a ser dito na minha linguagem, e isso mostra que, num sentido mais profundo, o mundo é o meu mundo, apesar de isso não poder ser dito”. E, no entanto…se existissem pensamentos não subjetivos, alguém teria mesmo assim de os pensar (pág.46). É a primeira resposta, breve, de Thomas Nagel, antes de desmontar o raciocínio e argumentação de Wittgenstein. É já na parte final do terceiro capítulo de A última palavra – cuja epígrafe é, precisamente, Linguagem – que o faz com inegável eloquência: “eu formularia o paradoxo dizendo que o pensamento de que as minhas palavras têm um significado qualquer é um pensamento cartesiano – um pensamento do qual não posso duvidar sem descobrir imediatamente que essa dúvida é ininteligível. Tal como não posso duvidar da minha existência, não posso ter dúvidas se todas as minhas palavras têm significado, porque, para eu duvidar disso, as palavras que uso ao fazê-lo têm de ter significado. Em essência, o argumento convida-me a concluir que talvez eu não esteja a pensar – o que constitui claramente a negação de um pensamento cartesiano. Não é impossível descobrir que algumas das palavras que estou acostumado a usar não têm significado; mas para pensar isto tenho de usar outras palavras, como palavra, que significam efectivamente qualquer coisa. No entanto, o argumento a favor do paradoxo de Wittgenstein é perfeitamente geral: se funcionar, não deixa nada de pé, incluindo ele próprio. Logo, não pode funcionar” (pág.58). Conclusão: é a lógica que exige linguagem; não o inverso; é a substância do que pensamos que reclama palavras; olhá-las, indiferentes ao seu conteúdo, à substância que nelas habita e que estas expressam é um exercício torpe. Assim, acompanhamos Thomas Nagel quando afirma que “a ordem da explicação é a inversa da presente na interpretação (errada) habitual de Wittgenstein: as práticas de seguir regras da nossa comunidade linguística só podem ser compreendidas por meio do conteúdo substantivo dos nossos pensamentos – por exemplo, dos pensamentos aritméticos. Caso contrário, serão rituais impotentes. Não conseguimos compreendê-las se as encararmos como itens de história natural” (pág.67).
Os que nos garantem, fervorosamente, que a razão é incapaz de alcançar a verdade e a objetividade fazem-no, curiosamente, por meio da razão e os que afirmam que a subjectividade é o único caminho, estão a decretar um dogma que é uma ratoeira em que facilmente se despenham. Se tudo é subjectivo, como chega a razão a tal asserção (objectiva)? Se a afirmação “tudo é subjectivo” for (apenas) uma manifestação subjectiva, que força tem ela para nos impelir a acreditar no que diz (pág.23)?
Na verdade, “não podemos criticar algo com coisa nenhuma” (pág.30). Resta-nos, deste modo, um caminho de não desistência, de resistência, trabalho, procura. A avaliação deve ser permanente e o conselho com que o filósofo nos deixa implica-nos na busca da verdade e da objetividade: “é ao avaliarmos o que é conjuntural, perspectívico, subjectivo, culturalmente relativo, que se impõem certos pensamentos como inevitáveis e correctos”; “a ideia de razão emerge da tentativa de distinguir o subjectivo do objectivo” (pág.34).
Ora, neste quadro de confiança na possibilidade da razão alcançar a objetividade e a verdade – exigindo, é certo, muito de nós – e evitando que caiamos no nada subjetivista/relativista, convém sublinhar que tal não implica uma ingénua adesão a uma pretensa omnipotência desta (da razão), sobretudo quando fechada à cultura e profundamente imanente, recusando perguntas maiores que uma certa razão considera perigosas. É precisamente por aí que Thomas Nagel não vai, e é por essa razão aberta e não dogmática que, mesmo quando discordamos, vale a pena percorrer A última palavra.

[publicado em 2009 no Boletim Cultural do Liceu Camilo Castelo Branco]

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