Cordialidade
e dúvida
1.Repete-se, à saciedade,
sobre a democracia o que dela disse Winston
Churchill: «o pior sistema, à excepção de todos os outros». Victoria Camps, sem o contradizer (bem
pelo contrário), olha-a, contudo, pela positiva: a democracia é a mais adequada
forma de governar - porque, humanos, somos seres ignorantes e de conhecimento
limitado. Em assim acontecendo, “não há homens nem mulheres suficientemente
sábios a quem confiar [em exclusivo] o governo com a convicção de que o
exercerão bem” (“Elogio da dúvida”, Edições
70, 2021, p.53). Em realidade, pode, mesmo, inverter-se, a máxima, sobre a democracia, mais vezes
repetida no nosso espaço público: a democracia, apesar de ser “o melhor dos
regimes possíveis”, “é medíocre”: “porque as decisões são confiadas às opiniões
de intelectos limitados, que estão longe de ser omniscientes” (p.66).
2.Cordura,
sensatez, boas-maneiras, sobriedade, amabilidade, ponderação, moderação,
prudência, reflexão, companheirismo, urbanidade, paciência, diálogo, escuta do
outro, razoabilidade, capacidade de ver as coisas do ponto de vista do outro.
Por vezes, parece que a simples contemplação destas palavras, seu significado
chão e as atitudes para que remetem – mesmo conceitos abstractos não nos
permitem interpretações arbitrárias (p.79) - nos dá o imediato acesso ao
espelho invertido do ambiente cultural e, nele, tão frequentemente, dos modos
de (não) relação política que estabelecemos, atualmente, na(s) (nossas) cidade(s).
As
recentes eleições brasileiras são disso apenas o mais próximo dos exemplos:
discussões de armas em punho; actos de culto (religiosos) interrompidos por
explosões emocionais atinentes à controvérsia de campanha eleitoral; sucessão
de impropérios em (supostos) debates televisivos entre os principais candidatos;
assassinato, inclusive, de quem discordou de um determinado olhar sobre a polis (ou da escolha de um candidato).
Como já no século XVI reclamava Sébastien Castellion, “matar um homem não é
defender uma doutrina, é matar um homem” (p.24).
3.No
caso do Brasil, aliás e ademais, como no rescaldo da primeira volta das presidenciais
escrevia o cientista político Marcus
André Melo (Professor da universidade Federal de Pernambuco e ex-professor
visitante da universidade Yale), nem da defesa de uma doutrina, sequer, para
muitos dos espíritos mais inflamados nelas participantes nas ruas brasileiras,
se tratou. O paroxismo da “personalização” (um tão pobre “mito”) da política
encontra, pelo menos em parte, no Brasil uma expressão perturbadora, como se
precisássemos de confirmação das trágicas consequências de uma
política-espectáculo e da derrota do pensamento como advertência, ainda, para o
que aí vem: “a polarização afetiva vertebra a política no país. Ela impactou
não só a forma da disputa eleitoral—o tom belicoso e adversarial — como o seu
conteúdo, que se esvaziou programaticamente. Não houve discussão de políticas
públicas pelos seus protagonistas (…) A polarização é fundamentalmente afetiva,
em um padrão comum a outros países. Ela expressa-se na rejeição do rival, para
além de qualquer conteúdo programático. A individualização da contenda também
impactou na forma das eleições legislativas, enfraquecendo, ainda mais, a
escassa identificação partidária. As siglas partidárias virtualmente
desapareceram das campanhas, sendo substituídas pela referência ubíqua aos
protagonistas da polarização, não aos seus partidos (…) O resultado líquido é
um cartel de partidos sem partidários (para roubar o famoso mote de Dalton e
Wattenberg), a não ser os seus próprios candidatos e detentores de cargo. Para
muitos analistas, trata-se da receita para perpetuar atitudes antissistema (…) A
ausência de discussões programáticas impacta o processo de formação de governo
e o potencial futuro de responsabilização. (…) Eleição sem conteúdo equivale a
cheque em branco.” (“Folha de São Paulo”, 03-10-2022, p.A2).
4.A
filósofa Victoria Camps, para este tempo, propõe que retomemos “Antígona” (anti-gona: contra o nascimento), para fazer a apologia da irmã da personagem
central da tragédia de Sófocles, Isménia: ela “está ciente da injustiça
do seu tio, Creonte, que proíbe o
enterro de Polinices, quer lidar com
ela, mas entende que não é bom abordá-la com o ódio e veemência de Antígona”
(p.21). Se a filosofia – ou o melhor ensaio, na medida em que Camps retoma aqui
algumas das apropriações, ao longo dos séculos, que o exaustivo trabalho de George Steiner, sobre esta tragédia de
Sófocles, expôs detalhadamente - tem o dom de encostar à parede os nossos favoritismos e o olhar enclausurado que,
eventualmente, possuamos sobre as coisas, as ideias, personagens e
personalidades, eis aqui o desconforto, assumido na primeira pessoa, face a
esse olhar sobre a voz que continua a ecoar enquanto obstinada – adjectivo que
se me oferece melhor sopesado – defensora dos “valores eternos”. Não
precisamos, contudo, de negar Antígona
para aceitarmos o repto de olhar de novo o rosto de Isménia: sendo nós,
humanos, limitados e finitos, a dúvida é-nos constitutiva. Daí, nenhum
comprazimento nela se realizar: “por isso, a personagem dubitativa que é
Isménia passou à história como uma figura medíocre, ‘uma exata medida da
normalidade, do ordinário’, como a descreve Eckerman” (p.30). Contudo, A
Antígona de Hasenclever “atribui
um peso moral às advertências de Isménia” (‘com uma nova injustiça não se
elimina a velha/insensatamente promoves eterna calamidade’) e na de Anouilh aquela “representa a sanidade
mental, a reflexão e a cordura”. Já em Hegel, a irmã de Antígona é “uma
personagem inteiramente feminina que exibe a debilidade corporal e o sentimento
compassivo quando se avizinha a catástrofe” (pp.31-32).
5.Em
tempo de extremismos, antagonismos e confrontos, a moderação (dir-se-ia
enquanto método) não é atrativa, as
nuances acarretam demasiado esforço, o dubitativo afigura-se como titubeante,
fraco, medroso; os meios termos foram
excluídos. Duvidar, contudo, é assumir a fragilidade e a contingência e recusar
a espontaneidade do primeiro impulso (p.34); a dúvida é o motor da mudança em
todos os âmbitos; a democracia implica contrastar opiniões ou perspectivas; uma
ética global deve basear-se na moderação “como virtude básica, porque o saber é
limitado e ninguém tem o exclusivo da razão” (p.15).
Contra
a dúvida, a falsa segurança de uma armadura pela qual não entra uma réstia de
ar, pletórica de posições simplificadoras e reconfortantes, a aspiração a um
pensamento único, não raro, mesmo, a pura fraude: “a indeterminação (…) é um
terreno propício à filosofia, não ao indivíduo comum que anseia por certezas.
Por isso prosperam os livros de autoajuda, em detrimento dos ensaios
filosóficos” (p.45). A razoabilidade
(Rawls) – “ser razoável significa
estar disposto a limar as posições extremas, a reduzir os antagonismos a um
equilíbrio de forças em que todos os agentes se reconheçam como parte da
solução acordada e em que nenhum deles se identifique inteiramente com o
resultado acordado” (p.61) – tem sido colocada de lado.
6.Recuperemos,
em definitivo, uma figura maior do século XX, Albert Camus, um rebelde
não revolucionário, um partidário dos
que não estão seguros de terem razão, um homem que inquire “‘o confronto entre
a necessidade humana e o silêncio não razoável do mundo’. A rebeldia reage
contra o absurdo da existência, [contra] a incoerência entre a irracionalidade
do mundo e o desejo humano de clareza (…) O rebelde vai à procura de uma
unidade que resolva o caos. Mas a singularidade dele é que permanece na busca,
porque a rebeldia é apenas um ponto de partida, não o fim da história (…) Camus
rejeitou (…) o rótulo de existencialista.
Não era partidário de ir descobrindo essências, uma vez que pensava que
unicamente na existência é possível estas serem reconhecidas (…). É o encontro
com homens e mulheres de carne e osso, o encontro com condições de sofrimento e
de injustiça, o que nos aproxima do significado dessas palavras imensas (…).
Mas, se as essências não são nada, Camus também não acredita que sejamos apenas
existência (…). Os valores pelos quais julgamos a História estão sempre fora
dela. A rebeldia consiste precisamente na ‘recusa de sermos tratados como
coisas e reduzidos à mera História’. Além do que a História possa fazer com o
ser humano, este aspira a ser algo mais, algo que não é passível de ser
redutível nem previsto pela História”.
A
ética de Camus seria a da moderação, afirmando que “não pode haver moral sem
realismo, dado que a virtude pura é inumana”. Devemos procurar não cair, como
indivíduos e enquanto comunidade, no desespero e, assim, evitar que aquele nos
arraste para a desmesura política. As transformações políticas a operar,
far-se-iam, desejavelmente, tendo em conta a “beleza e a criatividade de algo
tão contingente e criativo como a arte, porque ‘os grandes reformadores tentam
construir na História aquilo que Shakespeare,
Cervantes, Moliére, Tólstoi
souberam criar: um mundo sempre pronto a saciar a fome de liberdade e de
dignidade que está no coração de cada homem’ (pp.69-70). Exorta Victoria Camps: “desconfiemos dos que
pretendem (…) falar em nome da verdade” ou do “povo”: “o populismo acaba por
ser a forma actual de cair na demagogia, o que para os Gregos antigos era sinal
evidente da deterioração da democracia” (p.13).
Boa
semana.
[No "reparo do dia", da passada segunda-feira, na "universidadefm"]
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