DIÁRIO DE UM SEM-ABRIGO (JORGE COSTA)

 

JORGE COSTA. DIÁRIO DE UM SEM-ABRIGO

Num momento em que Portugal tem cerca de 9 mil pessoas em situação de sem-abrigo (mais 800 do que em 2020), Jorge Costa dá rosto e relato, duro mas urgente, á selva das ruas

1.Como chegou Jorge Costa à condição de sem-abrigo? Técnico administrativo, numa empresa de contabilidade que declarou insolvência, viu-se, sem indemnização – três anos depois, por decidir em tribunal -, no desemprego. Tornar-se-ia, sucessivamente, operador de uma gasolineira e trabalhador da construção civil, depressa trocado por gente mais nova, encontrar trabalho depois dos 50 é, muitas vezes, ‘um suponhamos’. Já sem pais, família escassa, os amigos a evitarem-no em percebendo as dificuldades por que passa – e ele evitando, também, contar, a outros dois ou três amigos mais próximos, a situação a que chegara -, aos três meses sem conseguir pagar renda, deixou a casa de mansinho. A vida tinha-o posto na rua.

2.Barba feita, calças de ganga, t-shirt com evocação de um artista, um telemóvel sem saldo, últimas moedas no bolso para uma água e um café e a definitiva imersão, por um período superior a oito meses, em uma “situação surreal”: estar todo o tempo na rua; roupa suja em permanência; poucos banhos ao longo de meses; deixar o adquirido, não ter as coisas mais simples e banais que todas as pessoas possuem. Nada ter como seu. Impedido de entrar, pelo aspecto, numa pastelaria. Saber das notícias apenas pelas ‘gordas’ dos jornais nos quiosques (telemóvel sem saldo e sem internet). Exposto a tudo e a todos (“quando comemos, quando dormimos, quando nos lavamos”), sem privacidade. Dormir numa lixeira (p.64). Levar, deitado e impotente, com um temporal em cima. Ser posto fora de um banco de um parque, porque este último é privado. Ter por companheiro um cão que lhe urina na manta (que o cobre). Tomar duche nos quartéis dos bombeiros, quando calha. Passar fome (e “quando passamos fome, até nas redes sociais nos bloqueiam”, p.31). Pedir moedas, arrumar carros, ter que levar com o olhar – de pena? reprovador? de medo? – dos transeuntes – “sentia-me mal por já ter olhado assim para os outros” (p.54) -, roubar comida em desespero (agradecer o esparguete azedo, o sumo fora do prazo, o pão que o diabo amassou); ter, por fim, uma nota de 20 euros e enfrentar o dilema de trocar o casaco, absolutamente coçado, que traz consigo, na feira mais próxima, ou seguir, por uma vez, o olfacto e o pecado (do prazer) de uma comida boa e quente (quando sente fome tantas vezes). Ter vergonha da pobreza (própria). Habitar, talvez com um cigarro, talvez com vinho – “porquê o vinho? Porque é o mais barato” –, únicos confortos (psicológicos), a angústia permanente: “o que vai ser agora da minha vida? Onde comer? Onde dormir? Nunca passara pela angústia de precisar de um banho” (p.38). Depender de casas de banho públicas em que o papel higiénico acaba. Viver como um animal, uma barata talvez - “‘achas um exagero? Já reparaste como vivem as baratas? Sem habitat, rastejando diariamente às cegas, sem destino, à procura de alimento? E enfiando-se no primeiro buraco que encontram, para evitarem ser esmagadas? Nunca te sentiste a rastejar, Jorge? Não tens medo de ser pisado?’ Sim, todos os dias…” (p.153). Sobreviver, não viver.

3.Jorge Costa encontrou-se sem abrigo em Lisboa, nos idos de 2019-2020 e viria, já alojado de novo, em Alfama, a escrever 14 crónicas, remuneradas, para o jornal “Mensagem de Lisboa” (dando, agora, origem ao livro “Diário de um sem-abrigo”, Oficina do Livro, 2022), descrevendo a “selva” das ruas, dando voz e rosto, vizinhança e ombro aos que vivem sem tecto. Se o problema da existência de pessoas em situação de sem-abrigo não é apenas pessoal, mas coletivo, é, igualmente, uma voz que supere o individual que Jorge Costa pretendeu legar. Para que ser tratado como humano não tenha que se constituir como um sonho longínquo. Aos 55 anos, e com cancro na pele adquirido nas ruas, Jorge Costa morreu, em abril deste ano.

4.Em Lisboa, para as pessoas em condição sem-tecto todos os caminhos vão dar à Gare do Oriente (o “gueto dos sem-abrigo”): é onde estão as casas de banho, local a que aportam os carros de apoio com alimentos e, por vezes, roupa, nele se encontram as salas de espera para poderem carregar os telemóveis, os cinzeiros com as beatas grandes e atraentes para fumar, a rede wifi gratuita da Carris. (p.65). Mas é ali, e ainda, que Jorge Costa pôde constatar uma das mais duras realidades com que travou conhecimento na condição última que atravessou: “outros prostituíam-se nas casas de banho”: “as pessoas que usam a estação para apanharem os seus comboios não se dão conta de que existe uma espécie de prostituição organizada nas casas de banho da Gare, mas qualquer sem-abrigo que as use frequentemente se apercebe disso. Fechando a porta do cubículo sanitário, vê-se no seu lado interior as inscrições a caneta, com números de telemóvel com os respectivos textos convidativos e até os preços. Era um mundo-cão, pensava eu. Exploração total da pobreza. Depressa reparei, à saída das casas de banho, em homens que passavam discretamente junto à máquina do café. Homens com bom aspecto e com dinheiro…E, olhando para quem saía do cubículo, mais tarde soube que existia uma meia dúzia de sem-abrigo que ‘fazia’ assim o seu dinheiro diário. É a triste realidade da pobreza: onde há miséria, há sempre abutres” (p.66). Jorge Costa, de novo em situação de equilíbrio e reflexão sobre o que passou – mas sempre acentuando que, porventura, da rua pode sair-se, mas aquela, tudo o que nela lhe foi dado experienciar, não mais sairá dele – confessa à jornalista Catarina Reis: “estive perto de aceitar fazer aquilo” (p.19). Segundo o testemunho deste homem, há leis próprias das ruas. A moral e a coerência deixam de existir (p.65).

5.O Zé, sem-abrigo já há muito nessa condição, vem apadrinhar Jorge Costa, vendo-o às voltas na estação, no primeiro dia na rua (“não és como eu? Então és como quem?” (p.55), pergunta-lhe José, numa interrogação que, percebemos, nos é devolvida, cortante, de passagem). Passam (como que) a viver juntos. Nem sempre há amizade entre as pessoas que vivem na rua, pelo que grupos de pares ou de três pessoas tendem a juntar-se (como escudo mútuo). E o certo é que, apesar de algum natural e momentâneo desentendimento, “havia sempre minutos de boa disposição entre dois homens [Jorge e Zé] que partilhavam a miséria” (p.59), o que era decisivo para se manterem à tona, apesar de tudo. Na rua não se chora, não se pode dar parte de fraco, se se quer sobreviver. Daí que não se conte, sequer, a mais do que um (quando muito), as piores humilhações. Como a daquele dia em que Jorge Costa, sozinho, vê um jovem-adulto como agora se diz, perto dos trinta anos, abeirar-se dele para lhe roubar o telemóvel. Cabeçadas, pontapés no peito, pé em cima deste…” Podia ser teu pai…Pois podias, mas não és”. E seguiu com o telemóvel, garoto, com o cinquentão sem abrigo prostrado no chão (pp.79-80).

6.A burocracia, e nela a Segurança Social, nem sempre funcionam como o rosto humano compassivo (que esperávamos que fosse) em nome da comunidade – “o período do meu Rendimento Social de Inserção (RSI) chegara ao fim três meses antes. Quando recebera o último pagamento, ainda não me encontrava na condição de sem-abrigo. Quis, por isso, tentar fazer a renovação, mas, para tal, teria de falar com um assistente social. Agendaram-me uma entrevista para cerca de um mês mais tarde, pois teriam de fazer uma reavaliação da minha situação social. Reavaliação? Eu disse que não tinha casa e dormia na rua. E a resposta foi que era precisamente por isso que tinha de ser feita uma reavaliação da minha situação e ser-me atribuído um assistente social. Fiz a marcação, ficando a aguardar resposta pelo correio ou por SMS. Disse-lhes que era melhor ser por SMS, pois, para ter acesso a correio, é preciso ter casa” -, tal como na maior parte das vezes, não havia sequer, para Jorge Costa e os que na mesma situação estavam, uma instituição a distribuir pequenos almoços. “Nos últimos dias, a comida fora muito má. O arroz vinha cru, as massas cozidas em água sem sabor nenhum, a carne também má e, às vezes, inexistente. Houve um dia em que até serviram peixe com molho azedo, devido talvez ao calor dentro dos carros. O que escapava era o pão e a peça de fruta. Por vezes, era só o que comíamos” (p.68)
Todavia, e em simultâneo, há gente que se interessa pela condição das pessoas que passam pela situação de sem-abrigo, que se esforçam e se empenham para melhorar a sua vida, dar um giro, uma volta, uma transformação que ajude o próximo. Por vezes, são devotos da política, assessores de vereadores, gente com empatia para quem a causa pública é um múnus sagrado e, neste, o interesse pelos que mais urgentemente carecem de ajuda prevalece em absoluto. Jorge Costa dá-lhes nomes, também: Teresa Bispo, assessora de um vereador da Câmara Municipal de Lisboa, acima de todos, mas também gente como Madalena Múrias ou Dina Nunes. Uma leitora das suas crónicas fez-lhe chegar um computador.
 
7.Um dia, um homem passa por Jorge Costa, toca-lhe no ombro e diz-lhe: ‘deixou cair este dinheiro’. Era uma nota de 5 euros, era o preceito evangélico levado à letra – “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita” (Mt 6:3) -, era o maior acto de dignificação (do outro) que aquela pessoa tivera até então (p.17).
Contudo, Jorge permanecia nas ruas. Certo dia, passa perto da barbearia onde sempre cortara o cabelo. Estamos em plena pandemia, as ruas (de Lisboa) desertas, menos moedas a arrumar carros, menos possibilidades de uma esmola. O (agora) sem-abrigo adivinha que o barbeiro está com os olhos pousados em “ABola”. Do vidro, recebe um olhar repente. Aquele mesmo que, de imediato, baixa, para continuar a perscrutar o periódico desportivo. Mas eis que aquela fronte, a do sr. António, de novo se ergue: e pára, contempla, espanta (-se). “Sr. Jorge, o que é que lhe aconteceu?...” (p.141). António senta o cliente (sem notas ou moedas) na cadeira, o melhor preparo, o corte de cuidado ínfimo. No final: “você não precisa de roupa?”. E, por entre a vergonha, a hesitação, a raiva tantas vezes calada de Jorge…responde pelo próprio interlocutor: “claro que precisa, caralho!”. Envia-o a casa da irmã, que o enche de novas vestes: “Nessa noite, readquiri a esperança. Nessa noite, voltei a acreditar na vida e no meu semelhante. É tão fácil sentir empatia, não acham? Não estou a dizer com isto que eu, como indivíduo, mereça a empatia ou a generosidade de alguém. O que estou a dizer é em nome de todos os sem-abrigo. Aqueles que já foram e já não são, aqueles que ainda o são e ainda sofrem nas ruas e aqueles que eventualmente ainda cairão neste flagelo que ninguém merece, esperando eu que a nossa sociedade ponha um ponto final nesta condição de viver sem um teto. É essa empatia de que falo. Empatia social. Essa empatia significa não permitirmos que um outro ser humano viva onde nós não conseguimos viver. Não permitirmos que um outro ser humano sobreviva de uma forma indigna que nós não toleramos na nossa vida. Seja quem for” (p.145).

A Câmara Municipal de Lisboa, por fim – três meses, por exemplo, passam a voar a quem tem uma vida que se reveste de um módico de comodidade ou conforto, mas trata-se de uma eternidade para quem está na rua; “ninguém se sente digno sem higiene”, destaca de novo -, quase nove meses depois, encontra uma casa para Jorge. O homem que coleciona argumentos de Quentin Tarantino está, na noite em que redescobre um colchão e quatro paredes, eufórico. Mas nunca deixa de lavar, desde então, a roupa a(os) sem-abrigo, e de dar, a quem se encontra em tal abismo, o dinheiro que, tantas vezes, lhe (fazia) falta.

Boa semana.

[crónica integral do "reparo do dia", hoje, na universidadefm]

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