BENTO XVI - MAGNO

 

BENTO XVI - MAGNO
1.A última encíclica de João Paulo II data de 2003. Para acedermos, porém, à penúltima carta encíclica do Papa polaco necessário é recuarmos 5 anos, a 1998. Nos últimos anos de vida e do seu pontificado, João Paulo II surge, já, muito debilitado, mas a Igreja vê no seu labor um testemunho em favor da plena humanização de todos os enfermos, da integração humana do sofrimento, da revalorização da velhice e dos doentes, sendo saudado, sempre, com grande afecto, por incontáveis multidões.
Quando um novo Conclave, com vista à eleição de um novo Papa, se dá, na Primavera de 2005, a imprensa produz e relata um imenso jogo de palpites e apostas: geografias a considerar na escolha do Sumo Pontífice; tendências doutrinárias a sopesar; cor da pele, inclusive, a ponderar. Entre os nomes incontornáveis, o do cardeal Ratzinger.
Sobre ele recairão, nas semanas que se seguem à escolha do novo Papa, um conjunto de epítetos de pendor, claramente, negativo: “o rottweiler de Deus”, “pastor alemão”, etc., etc.
2.Apresentado como a frente avançada de um conservadorismo extremo, Bento XVI começa por se revelar, a meu ver, na encíclica “Deus Caritas Est”: aí, onde combina uma elegante escrita, com um apuro filosófico, uma clareza de ideias e conceitos que desagua numa valorização do corpo e do eros que deixa boquiabertos os que se haviam guiado, exclusivamente, pelo periódico do dia anterior. Carlos Amaral Dias, um não crente, nota, entre nós, justamente, esse ineditismo, em texto cristão, de um pontífice católico, de semelhante afirmação - do reconhecimento do valor positivo do eros. Em Paris, Fernando Gil lê, com e para a mulher, a encíclica onde se desnudam as várias formas de amor, historicamente conhecidas, incluindo a radical novidade do agapê – e lê, também, porque a um espírito atento e curioso não é a moda moderninha de não atender a alguns lados de onde o espírito sopra que conta; é, justamente, onde quer que o espírito sopre que (se) vai escutar.
A segunda parte da dita encíclica ficará, igualmente, como importante registo que o tempo se encarregou de impor, a revisitar, das relações caridade/solidariedade.
Quando, mais tarde, em Auschwitz, Bento XVI assume a coragem imensa de perguntar “porque SilenciasTe?”, aí, um dos “vencidos do catolicismo”, esse marcante poema geracional (português), João Bénard da Costa escreverá, nas páginas do Público, que “nunca o vigário de Deus na Terra tinha ido tão longe”.
Se o texto da Deus Caritas Est causara alegria entre os doutores, essa nota de exigência intelectual, de busca da verdade, do bem e do belo repousaria, igualmente, com grande impacto, no Discurso no Colégio dos Bernardinos, na visita a França, onde as “questões últimas” eram relançadas – já de si, verdadeiramente, um feito, em época de apatia (de novo estilo) e entorpecimento - em termos racionais e razoáveis, credíveis ao humano do séc.XXI.
O mundo da cultura e da arte receberia, aliás, de Bento XVI, um contínuo convite para um diálogo vivo, com vista ao confronto com o grande código da cultura ocidental que, aliás, durante séculos, havia sido de uma eloquência, e deixado um fruto, de grande envergadura, a benefício do humano – o encontro com os artistas, na capela Sistina, em Novembro de 2009, é, a esse respeito, paradigmático.
Preocupado com a liturgia, esse espaço, ambiente único e essencial de respiração vital, Bento XVI dedica-lhe a Exortação Apostólica "Sacramentum Caritatis" que, como muitos documentos e posições, ao longo da história, na Igreja, levará tempo até chegar a cada recanto.
3.A marca de grande exigência em dar razões de fé, a necessidade do porta a porta, o fundamental do regresso a uma compreensão da Igreja que suplante o sociológico, eis outros tantos traços que, depois, por exemplo, desembocam na nova consciência de apostar em mais e melhores acções de formação dos crentes; em criar uma mais forte Pastoral da Cultura, visando-se o diálogo com referentes culturais diversos; na urgência de ir para além do piedoso e do meramente espiritual, com resubstancialização dos motivos de adesão e pertença a uma dada tradição.
Este, a meu ver, talvez o grande contributo de Bento XVI: o abanar, abalar o adormecido, o letárgico e fazê-lo como algo sedutor: como podeis deixar no hábito, na rotina, no meramente ritual o mais importante?, foi como se nos perguntasse, e o fizesse com um tal ardor e beleza que, quem o leu e/ou escutou, não pôde ficar indiferente.
Recuperou, ainda, tópicos que, talvez, julgássemos superados, ou destinados a serem evitados: “os justos não se sentarão à mesma mesa do que os carrascos”, escreveu, em âmbito escatológico, na encíclica “Spe Salvi”, na qual mostrou onde está ancorada a verdadeira esperança, sobre que esperança pode assentar uma vida que se queira e determine com sentido. Rochoso e sólido sentido.
Houve espaço, igualmente, para a abertura para as questões mais próximas que preocupavam o mundo: ninguém, enquanto Sumo Pontífice, havia ido tão longe na questão dos contraceptivos (como Bento XVI na entrevista a Peter Seewald, “Luz do mundo”; de resto, tida como a primeira grande entrevista dada por uma Papa); em um momento tão angustiante do ponto de vista económico-social a Ocidente, deixou um documento tão importante como “Caritas in veritate”, à luz da qual os organismos da Igreja com o múnus social, detalharam como a mundividência cristã vê/lê a economia e, ainda, à luz da qual Bento XVI voltaria a ser contundente, na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2013, na denúncia e recusa “da ideologia liberal e da tecnocracia”, onde os direitos dos trabalhadores e o Estado Social possam ser sacrificados no altar de interesses alheios à pessoa humana e à sua dignidade. O contributo de Bento XVI em âmbito de justiça – e o modo como corrige uma leitura mais conservadora do “Compêndio da Doutrina Social da Igreja” – foi, de modo muito feliz, captado pelo Professor de Lovaina, Johan Verstraeten, em artigo na “Concilium”. Outro dos grandes sublinhados que merece este Pontificado.
Provações? Claro que as houve e de que modo, desde a pedofilia – o maior dos escândalos, para a Igreja, em décadas -, passando pelos documentos furtados pelo mordomo do Papa e o jogo de poder que, a certa altura, pareceu tomar conta de círculos importantes, até uma procura de unidade da Igreja que nem sempre correu bem – com situações muito delicadas na procura de recuperação da unidade com os grupos mais “fundamentalistas”, de extrema direita, no interior do cristianismo (não correu bem, com os lefebrevistas, como reconheceria Bento XVI, em “A luz do mundo”).
Empenhado na paz, no ecumenismo, na procura do diálogo interreligioso, a visita a espaços geográficos civilizacionais diversos do seu (de origem) foi outra das suas preocupações, como se demonstrou na ida à Turquia. Mas sem abdicar da afirmação do que ao seu espírito se impunha como verdade, como se viu em Ratisbona. O académico esteve quase sempre presente (na sua acção) e deixou uma inesquecível “lectio magistralis”, para La Sapienza, onde foi impedido de ir, por um laicismo ignorante de uma densa e revisitada “razão pública” (Rawls).
Na visita à Alemanha, em 2011, a dimensão filosófica no seu discurso estaria, de novo, muito presente, por exemplo, na ida ao Reichstag, lá onde falou de uma natureza humana, dos direitos (humanos) anteriores e superiores a qualquer Estado, inerentes ao humano, pela sua imanente e eminente dignidade. Todavia, neste âmbito, questionou-se, da (im)possibilidade de, a partir desse olhar sobre o humano, se conseguir, sem mais, deduzir e concretizar, do mesmo modo e em todas as culturas, em razões mediadas (culturalmente), o que conseguimos ler e exigir universalmente para o humano (partindo de uma razão mediada por esta cultura/tradição/história em que nos inserimos). Do mesmo modo, por vezes, não deixaram de surgir reparos da Academia à sua obra sobre “Jesus de Nazaré”, em particular ao volume sobre a infância, onde o literalismo chega, em algumas ocasiões, a impressionar, vindo de alguém com posições tão modernas quanto aquelas que havia tomado quanto aos milagres – em “Deus e o mundo”, p.ex. -, ou acerca da “Bíblia e interpretação na Igreja” (1993), ou no comentário à experiência de Fátima, da Irmã Lúcia e à questão do “terceiro milagre”. Sendo um intelectual de envergadura, um filósofo-teólogo, procuraria, igualmente, unir razão e fé (sendo que considerando estas – razão e fé – como unidades distintas, não chegando ao ponto de propor a fé como uma razão, algo que não deixa de estar, hoje, em cima da mesa, como algo que importa apreender).
Em matéria cultural, das chamadas questões fracturantes ou de costumes, manterá a linha prosseguida pelos anteriores pontificados e, bem assim, não se alterarão as coordenadas das questões disciplinares no que ao sacerdócio diz respeito (se conservou, foi nestes âmbitos, essencialmente, que Bento XVI o fez).
Bento XVI surge numa Europa em acelerada secularização e descristianização, com uma Igreja minoritária e sem privilégio, como, de resto, antecipara (várias décadas antes) em “Fé e futuro”.
Dialogar, mas sabendo das suas próprias razões para entabular conversa, dirá, num esforço de robustecimento que, em rigor, confronta, sobretudo, a Igreja – tal como era necessário (na Alemanha perguntará o que nos distingue de não crentes ou ateus, afinal, tal o nosso dia-a-dia; país no qual dirá que a organização da Igreja é óptima, mas falta relação, testemunho humano e que precisamos do testemunho do outro para a nossa própria fé; em Portugal, corajosamente, ainda no avião que o traria a Lisboa, afirmará que os grandes problemas para a Igreja não nascem de adversários exógenos a esta, mas, bem mais, do pecado da própria Igreja; mesmo no livro que relata muitos testemunhos errados, Fréderic Martel, nesta década, apresenta um Joseph Ratzinger absolutamente incorruptível).
Durante a visita a Portugal, em Maio de 2010, tive o privilégio de ouvir, ao vivo, Bento XVI, no Centro Cultural de Belém. Durante esse encontro, ele deixaria uma frase que poderia bem ser um epitáfio ou uma exortação que congregasse o essencial da sua exigência: “fazei coisas belas, mas, sobretudo, tornai as vossas vidas lugares de beleza”.
4.Na última entrevista de Bento XVI publicada em Portugal – “Bento XVI. Conversas finais com Peter Seewald”, D. Quixote, Lisboa, 2017 -, o Papa Emérito dizia ter o prazer da contestação – “Sim, ele está cá, o prazer da contestação, é verdade.” (p.79) -, faz uma autocrítica – “Provavelmente, não estive de facto muito no meio das pessoas” p.58 (num magnífico documentário que a RTP2 passou sobre Bento XVI, ainda durante a fase mais aguda da pandemia covid19, alguns autores remetiam-no a uma dimensão platónica, ao gosto de viver no mundo das ideias (puras) -, fala do seu sucessor - "uma lufada de ar fresco na Igreja, uma nova alegria, um novo carisma com o qual as pessoas se identificam; de facto, é algo bonito" (p.60); “a sua forma, por um lado, de rezar e, por outro, de falar ao coração das pessoas acendeu imediatamente a centelha", (p.54); “é certamente também um Papa da reflexão. Ao ler a exortação apostólica Evangelii Gaudium ou ainda as entrevistas, constato que é uma pessoa meditativa, alguém que trabalha intelectualmente as questões modernas" (p.57) -, de uma Igreja que escolheu um Papa que veio da América do Sul - "Significa que a Igreja se mexe, é dinâmica e aberta e nela estão em curso novos desenvolvimentos. Significa que ela não ficou cristalizada num qualquer modelo. Antes pelo contrário, há sempre qualquer coisa de surpreendente a acontecer, ela tem uma dinâmica que a pode renovar constantemente. Admirável e encorajador é o facto de precisamente também no nosso tempo acontecerem coisas de que não estávamos à espera e que mostram que a Igreja está viva e cheia de novas possibilidades. Por outro lado, era de esperar que a América do Sul tivesse um papel importante. É o maior continente católico e, ao mesmo tempo, o mais sofredor e o mais problemático. Possui de facto grandes bispos e, apesar de todo o sofrimento e todos os problemas, também conta com uma Igreja muito dinâmica. Nessa medida, de alguma forma, era também a hora da América do Sul, sendo que o novo Papa é simultaneamente interior entre o antigo e o novo mundo, bem como a unidade interior da História (...). É evidente que a Europa já não é o centro da Igreja Universal. Pelo contrário, a Igreja surge agora verdadeiramente na sua universalidade, tendo o mesmo peso em todos os continentes. A Europa mantém a sua responsabilidade, as suas tarefas específicas. A fé na Europa tem-se enfraquecido de tal maneira que isso, só por si, faz com que apenas de forma limitada ela consiga ser a verdadeira força impulsionadora da Igreja Universal e da fé na Igreja. E vemos também que, através de novos elementos (por exemplo africanos, sul-americanos ou filipinos), há uma nova dinâmica que entra na Igreja e renova um pouco o Ocidente cansado, volta a dinamizá-lo, desperta-o mais uma vez do cansaço, do esquecimento da sua fé.” -, escolhe “Deus Caritas Est” como a encíclica por si subscrita de que mais gosta (p.237; encíclica que o teólogo Tomás Halík dirá “a mais bela encíclica” de sempre”) e conclui em chave de ouro sobre as representações de Deus:
"Peter Seewald: Faço-lhe agora a pergunta que repetidas vezes nos tem ocupado: onde está na verdade esse Deus de quem falamos, do qual esperamos ajuda? Como e onde podemos localizá-l’O? Hoje em dia, vemos sempre cada vez mais longe no universo, com os seus muitos planetas, os incontáveis sistemas solares, mas até onde quer que seja que tenhamos conseguido ver até hoje, em lado nenhum há aquilo que poderíamos imaginar ser o céu, no qual Deus supostamente reina.
Bento XVI: (Ri) Sim, porque não existe tal coisa, não existe esse lugar onde Ele reina. Deus é, Ele próprio, o lugar dos lugares. Quando [você] olha para o mundo, não vê nenhum céu, mas por toda a parte vê os vestígios de Deus. Na constituição da matéria, em toda a racionalidade da realidade. Do mesmo modo, onde vê pessoas, encontra vestígios de Deus. Vê o vício, mas também a bondade e o amor. Esses são os lugares onde Deus Se encontra aqui.
É preciso libertar-se totalmente dessas noções antiquadas de espaço, que já não são bem-sucedidas, quanto mais não seja porque o universo, embora não sendo infinito na acepção rigorosa da palavra, é tão vasto que nós, os seres humanos, podemos designá-lo de infinito. Além disso, Deus não pode estar algures dentro ou fora, a sua presença é inteiramente outra.
É realmente importante renovar o nosso pensamento em muitos aspectos, eliminar por completo essas questões do espaço e compreender de novo. Tal como entre as pessoas existe a presença anímica – duas pessoas que estejam em continentes diferentes conseguem tocar-se, porque esta é uma dimensão diferente da espacial -, também Deus não Se encontra num lugar determinado, Ele é a realidade. A realidade que suporta todas as realidades. Para essa realidade eu não preciso de nenhum «onde», porque este «onde» já é uma delimitação, já não é o infinito, o Criador, que é o universo, que atravessa todos os tempos, mas Ele próprio não é tempo, cria-o e está sempre presente.
Creio que é preciso mudar muita coisa, tal como também se alterou toda a nossa imagem do ser humano. Já não são 6000 anos de história, segundo a imagem dada pelo calendário bíblico, mas não sei quantos mais. Deixemos em aberto essa questão desses números hipotéticos. Seja como for, com este conhecimento, a estrutura do tempo e da História é hoje diferente. Antes de tudo a teologia tem aqui de pôr mãos à obra e trabalhar mais profundamente para dar mais uma vez às pessoas possibilidades conceptuais. Neste aspecto, a transposição da teologia e da fé para a linguagem de hoje ainda é imensamente deficiente; é preciso criar esquemas conceptuais, ajudar hoje as pessoas a compreenderem que Deus não deve ser procurado num lugar determinado. Há muito a fazer. (…) Ser amado e amar os outros de volta é algo que fui reconhecendo cada vez mais como fundamental para poder viver; para podermos dizer sim a nós próprios e aos outros. Finalmente, foi sendo para mim sempre mais evidente que Deus, Ele próprio, não só não é, digamos, um governador poderoso e uma autoridade distante, mas também é Amor e ama-me, e que a vida se deve por isso organizar a partir d’Ele, dessa força que se chama Amor." (pp.268-269 e 272).
P.S.: Agostinho da Silva costumava dizer que “nem ortodoxo, nem heterodoxo: paradoxo”. Vieram-me estas palavras à mente, hoje, também, ouvindo algumas reacções de espanto e elogio pelo gesto final de renúncia, do Papa Bento XVI - que tantas vezes foi dito de transição, mas que se percebe perfeitamente que teve um valor próprio muito elevado -, que há séculos não se via. Um gesto que está de acordo com a exigência de um pontificado que alguns quiserem traçar a priori, insistindo em uma grelha de leitura que, tantas vezes, a realidade - os gestos, as palavras, as acções de Bento XVI - infirmaram. A disponibilidade para sermos surpreendidos, porém, devia ser uma das nossas capas. Voltaremos a ouvir falar do "humilde servo da vinha do Senhor" quando a objectividade do bom se sobrepuser ao "relativismo" das preferências pessoais (nem sempre devidamente sustentadas).

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