O BUSCADOR APAIXONADO E EM VIAGEM PERMANENTE: SÃO PAULO, POR JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA

 

O buscador apaixonado e em viagem permanente: São Paulo, por José Tolentino de Mendonça

Uma das mais importantes figuras da história e cultura do Ocidente, “um dos homens mais inovadores e que mais ideias trouxeram ao mundo”, Paulo de Tarso, São Paulo, exerce, ao longo dos séculos, um fascínio e influência consideráveis em domínios como o filosófico, o da ciência política, o religioso/teológico, provocando os maiores espíritos – para nos ficarmos pelos últimos cento e cinquenta anos, os de Nietzsche, Heidegger ou Karl Barth - a estudá-lo e a entrarem em diálogo com ele. José Tolentino de Mendonça, em “Metamorfose necessária. Reler São Paulo” (Quetzal, 2022), aporta um balanço da exegese contemporânea sobre Paulo e, nela, como (seu) timbre de uma Igreja em saída, sopesa, também, propostas de leitura/interpretação, daquele “autor fundamental do património espiritual da humanidade” e seus escritos, vindas de pensadores que, por assim dizer, se entenderiam menos “canónicos”, como Badiou, Zizek ou Agamben. Em tempos sombrios – da pandemia à barbárie da guerra, do regresso da fome -, Tolentino de Mendonça, ainda, neste seu excurso, retoma um ensaio sobre o cariz que, hoje por hoje, a esperança pode adquirir – uma fisionomia que não pode recusar passar pelo fogo da desesperança e que apenas poderá assumir os contornos (paulinos) de “uma esperança contra toda a esperança” -, e delineia, desde logo a partir do título escolhido para esta sua obra, o perfil que, tomando o extraordinário exemplo de Paulo, assume/assumirá o (autêntico/consciente) cristão católico do tempo que habitamos: “[um cristão] é um sujeito crente em construção; é uma escolha de viver, em estado de processo, ao mesmo tempo a plenitude e o inacabamento, o tesouro e o barro, a esperança e a experiência. Um cristão (…) nunca é um assunto arrumado, resolvido de uma vez por todas; é aceitar habitar uma tensão, um fazer e refazer permanentes, sabendo que a nossa fé é frágil e incompleta” (p.150). Paulo “democratiza” a mística, requerida enquanto transformação permanente (daquele nómada que tateia e vive o combate interior, o “crente cristão”), antecipando a situação na qual um dos maiores teólogos do século XX, Karl Rahner, nos encontrava: “o cristão do futuro ou será místico, isto é, uma pessoa que experimentou alguma coisa, ou não será cristão”.
 
1.No mais breve escrito do Novo Testamento, a Carta a Filémon, Paulo cura do caso de Onésimo, escravo foragido (ao seu “senhor”, destinatário da sua epístola), a quem o direito romano cominava, desde logo, a flagelação (perda patrimonial e dano reputacional para o dono, a ser, assim, corrigida/retribuída em aquele em fuga sendo, evidentemente, encontrado/capturado), exortando-o, a partir da antropologia cristã acabada de nascer, a tratá-lo, seu servo, de ora em diante, com/em real fraternidade; a tratarem-se, senhor e escravo, como irmãos – profunda alteração de visão das relações de convivência social fundada no seguimento de Cristo.
Se o Ocidente quisesse conhecer as suas razões; se a revalorização mútua das fontes de inspiração de cada cidadão e interveniente no espaço público fosse uma prioridade; se a preguiça e a iliteracia quanto ao advindo da tradição judaico-cristã não prevalecesse, então, e entre outros adquiridos, reconhecer-se-ia o “campo religioso como responsável por ideias que “objetivamente” fizeram avançar o mundo” (p.11).
 
2.Para Jacob Taubes, filósofo e rabino, catedrático em Berlim e em Columbia, o tema central do pensamento paulino é a construção de um novo povo (ou de um novo conceito de povo que supera a exclusividade judaica, sem deixar de a incluir, mas agora ao lado dos pagãos). Para lá da comunidade étnica e a ordem imperial romana, a “genialidade” de Paulo consistiria na invenção de uma nova filiação (“vós não estais mais subjugados à lei, mas sob a graça” (Rm 6:14). Esta declaração, para Taubes, representa uma “verdadeira teologia política”, uma “declaração de guerra dirigida aos césares. Nada será, por isso, como dantes” (p.19). Alain Badiou, por seu turno, instiga todos (os cidadãos) a redescobrirem a figura do “pensador-poeta do acontecimento”. Paulo é a figura do “militante”, numa época que precisa de repensar a militância. Em vez dos particularismos fechados próprios do nosso tempo, a restituição do universal.  Conexão entre um Sujeito sem identidades – não há judeu nem grego – e uma lei sem suporte (a lei, no seu antigo imperativo, não é mais sustentável). O filósofo francês propõe-se pensar, em Paulo, as condições para que “a verdade apareça como interrupção e rutura, pois o acontecimento (nos textos paulinos identificado como a ressurreição de Cristo e em Badiou descrito como dimensão aleatória) deve propiciar a reinvenção de todos os modos de viver, pensar e agir”. Já Giorgio Agamben devolve às cartas de Paulo o seu estatuto de textos messiânicos fundamentais do Ocidente. Para Slavoj Zizek, “o legado cristão é demasiado precioso para ser abandonado”, definindo-se o pensador esloveno, de resto, como um “materialista paulino” – e registando as comunidades paulinas como um modelo de distanciamento da ordem atual, nomeadamente da tendência contemporânea para incorporar uma espécie de lei que incita à sua própria transgressão. Stanislas Breton acentuará o carácter grego do pensamento paulino, representa-o mais como filósofo do que como profeta, ligado às correntes do estoicismo popular e às preocupações deste de como viver aqui e agora.
Confirma-se, pois, desta sorte, como vimos de compreender, o papel interdisciplinar que o pensamento de Paulo contém: “faz sentir-se no plano da filosofia e da ciência política [sobre as relações com o Império Romano, de um lado, a teologia joanina e o Livro do Apocalipse, “passível de ser lida como libelo contra Roma”; do outro, a teologia paulina, que “alberga crítica às autoridades, mas ao mesmo tempo reforça as condições de uma coexistência pacífica com elas”. Interpretações diversas desta última são passíveis, hoje, divisar: vai protagonizar acordo de cristãos com o Império, argumentam certos hermeneutas; vai minar, com o seu pensamento, as estruturas do próprio império, sustentam outros intérpretes], na eclesiosfera e no espaço público” (e sem que se pretenda que Paulo seja exatamente um nosso contemporâneo, susceptível de responder a todas as questões que em nosso tempo emergem). Um dos méritos maiores de um destes “reabilitadores” da “obra” paulina para lá do espaço eclesial, desta forma, portanto, extensível a todo o espaço público, o filósofo italiano Agamben, foi ter mostrado que “o discurso de Paulo é paradoxal, o único que serve à revelação messiânica. Paulo leva a linguagem ao paroxismo, o pensamento até ao limite. Todas as diferenças suplantadas por uma equivalência igualitária”. O messiânico não é o fim do tempo, mas o tempo do fim. Todos procuravam um caminho, uma forma de endereçar a viagem humana. “Paulo também apresenta um caminho, mas é um caminho hiperbólico, que ultrapassa todos os itinerários possíveis: a via agápica, isto é, a radical afirmação do amor oblativo – que não depende do equilíbrio da reciprocidade, mas aceita ser dádiva pura -, aceita tornar-se um amar por amar, aceita ocupar o lugar da fraqueza e esvaziar-se diante do outro.” (p.29).
 
3.Paulo, Saulo – ou até ambos (num): como fontes diretas para a reconstrução da biografia de Paulo temos i) as cartas paulinas e ii) os Atos dos Apóstolos. Na classificação de John Knox, fonte primária, as cartas; fonte secundária, os Atos - que servem para complementar as informações das cartas, nunca para as corrigir (“a imagem de Paulo, apresentada pelos Actos dos Apóstolos, está fortemente marcada pelas intenções do seu redactor – Lucas – e pelas representações da comunidade do tempo pós-apocalíptico, não coincidindo totalmente com as cartas autênticas de Paulo. As informações dadas pelos Actos dos Apóstolos devem ser tomadas com uma certa reserva”, escreve o teólogo católico Hans Kung, no capítulo dedicado a Paulo, em “Os Grandes Pensadores do Cristianismo”, Presença, 1999, p.20). Ao nível das fontes indiretas, os estudos sobre o judaísmo (contemporâneo de Paulo), com toda a sua contextualização social, económica, cultural, religiosa representam um contributo de inquestionável valia (José Tolentino de Mendonça destaca, neste âmbito, a importância da investigação de E.P. Sanders e da revisão da prioridade da Aliança relativamente à Lei, ao contrário do que se teria julgado durante muito tempo). Nessa revisitação, valeria, por certo, ainda, com N.T. Wright (“São Paulo. A biografia”, D.Quixote, 2019), que foi Professor em Cambridge e Oxford, de Novo Testamento, matéria de que é especialista, continuando hoje a leccionar em St. Andrews, sendo também bispo anglicano, recalibrar problemas como o do dualismo antropológico – “nunca ocorreu aos meus amigos nem a mim que, se esquadrinhássemos o século I à procura de gente que estivesse à procura de que a sua «alma» deixasse para trás o presente mundo material e «fosse para o Céu», descobriríamos platónicos como Plutarco, não cristãos como Paulo (p.22) (...) Às incertezas perplexas da «Academia», os sucessores de Platão (...) estavam a dar lugar, nalgum ensino mais novo, a uma visão de um mundo escada acima/escada abaixo, como no quadro esboçado pelo biógrafo e filósofo Plutarco na geração a seguir à de Paulo. Para Plutarco, o objectivo do jogo era acabar por se deixar o malvado domínio do espaço, do tempo e da matéria e encontrar um caminho para um «céu» do qual as almas puras tinham sido temporariamente exiladas e ao qual regressariam numa perene bem-aventurança. (Se isto se parece muito ao cristianismo ocidental moderno, o problema é nosso. Não era certamente nisso que acreditava Paulo)” (p.91) -, do modo de aproximação aos “milagres” – “nós, no mundo moderno, não acreditamos muito em «milagres». Mas quando somos confrontados com acontecimentos que parecem não caber em qualquer outra categoria, falamos dos milagres como se fossem causados por um poder «sobrenatural» de fora do mundo, que «invade» a cadeia das «causas naturais». Pode às vezes parecer isso. Mas um relato mais bíblico reconheceria o estranho, constante trabalho de Deus no seio também das chamadas causas naturais, de forma que um novo acontecimento súbito e chocante se manteria no âmbito de uma continuidade de causa em última instância divina (p.71) (...) Devemos ter cuidado, diga-se de passagem, quanto ao uso da moderna palavra «milagre» em relação a isto. As pessoas pensam muitas vezes nos «milagres» como uma «invasão» da ordem natural por uma força que lhe é exterior. Não era assim que os primeiros cristãos o viam. Para eles, as curas espectaculares e de outra maneira inexplicáveis eram vistas como provas de uma nova Criação, do próprio Criador a operar de uma maneira nova (p.141)” -, ou a entendimentos “privatistas” de “religião” - «judaísmo» não significa, à maneira de uma certa concepção ocidental moderna, algo separado do resto da vida, quase um hobby à parte, mas uma forma de vida que tudo, e todos os sectores de actividade e existenciais, permeava. Em concreto sobre Paulo, e nomeadamente a sua perspectiva sobre a condição feminina, importará reler Alain Badiou (“São Paulo. A fundação do universalismo”, VS, 2018, pp.149-153: “No que diz respeito às mulheres, é também completamente falso, embora muitas vezes afirmado, que Paulo seja o fundador de uma misoginia cristã (…). Mas, afinal, é absurdo fazê-lo comparecer perante o tribunal do feminismo contemporâneo. A única questão que importa é saber que Paulo, tendo em conta a época, é mais progressista, ou antes, mais reactivo no que diz respeito ao estatuto das mulheres. Em todo o caso, um ponto decisivo é que Paulo, à luz do enunciado fundamental que afirma que no elemento da fé «não há homem nem mulher», aceita realmente que as mulheres participem nas assembleias de fiéis e que possam declarar o acontecimento. (…) Não tinha nenhuma vontade de se privar da presença ao seu lado de «Pérsida, a bem-amada, que muito trabalhou para o Senhor» (Rom, 16:12), de Júlia, ou da irmã de Nereu (…). Concederemos, num primeiro momento, que ninguém está naquela época pronto para pôr em questão, por exemplo, que o marido tem autoridade sobre a mulher. Daí a expressão: «A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido.» (Cor.I.7:4). Horror! Sim, mas, para que se introduza implicitamente a lembrança de que o que importa é o devir universal de uma verdade, vamos, por assim dizer, neutralizar a máxima desigualitária através da menção, num segundo momento, da sua reversibilidade. Pois o texto continua, e é absolutamente preciso também citar essa continuação: «e, igualmente, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher» (ibid.). No fundo, o que Paulo leva a cabo, e que é justo considerar, no fim de contas, como uma invenção progressista, é ‘fazer passar o igualitarismo universalizante pela reversibilidade de uma regra desigualitária’. O que lhe permite ao mesmo tempo não entrar em controvérsias sem saída quanto à regra (que ele assume desde o início) e dispor a situação global de tal forma que a universalidade possa ser restituída às diferenças particulares, nesta circunstância, a diferença de sexos. (…) Paulo começa evidentemente pela regra desigualitária: «Ordeno […] que a mulher não se separe do marido.» (Cor. I.7:10). Mas, na sequência: «[…] e que o marido não repudie a sua mulher.» (ibid.). (…) No relato do Génesis: «O homem não foi tirado da mulher, mas a mulher foi tirada do homem» (…) [Paulo] lembrando oportunamente que todo o homem nasce da mulher, reconduz toda esta construção desigual a uma igualdade essencial: «Todavia, no Senhor, a mulher não é sem o homem, nem o homem sem a mulher. Pois, da mesma forma que a mulher foi tirada do homem, da mesma forma o homem existe por causa da mulher.» (…) [Para Paulo] o que importa, homem ou mulher, judeu ou grego, escravo ou livre, é que as diferenças ‘carregam o universal que lhes ocorre como uma graça’. E, inversamente, não é senão reconhecendo nas diferenças a sua capacidade de carregar o que lhes advém de universal que o próprio universal prova a sua realidade. «Se os objectos inanimados que dão um som, como uma flauta ou uma harpa, não dão sons distintos, como reconheceremos o que é tocado na flauta ou na harpa?» (Cor.I. 14:7). As diferenças dão-nos, como o fazem os timbres instrumentais, a univocidade reconhecível da melodia do Verdadeiro.”
 
Permanece em aberto a possibilidade de Lucas ter conhecido, sido testemunha ocular do último período da vida de Paulo (ou, diversamente, ser seu colaborador, ou apenas simpatizante). As cartas de Paulo são os primeiros escritos cristãos que chegaram até nós. A evolução, ao longo de uma década e meia, da forma das suas epístolas – primeiro, cartas simples; depois, ofício literário, com o uso, por vezes magistral, dos recursos retóricos - vai a par com a do seu pensamento (sucessivamente mais elaborado, sendo, não por acaso, considerado o primeiro teólogo cristão). Paulo escreve sempre na primeira pessoa (e com as entranhas), não raro em estilo confessional, com abundantes traços autobiográficos.
Ora, se não sabemos o nome completo, quando nasceu e as circunstâncias exatas da morte que teve, sabemos, todavia, mais de Paulo do que de qualquer figura do cristianismo primitivo e de grande parte das figuras da Antiguidade Clássica. O autor das cartas apresenta-se sempre como Paulo. Nome importante, atente-se, da patronímica romana. O apóstolo, aliás, nomeia-se desta forma por nada menos do que 19 vezes. Só Lucas lhe atribui o nome semítico de Saulo, transcrição grega de Saul (nome do primeiro rei de Israel, da tribo de Benjamin, da qual Paulo descende e sobre o qual aquele terá refletido, citando, em certo ponto, a passagem sobre a escolha do rei Saulo por Deus e aplicando-a à sua própria vocação), nome raro entre os judeus da diáspora, mas frequente na Palestina. Possivelmente, o apóstolo teria um duplo nome, o que era recorrente entre os judeus da diáspora. Paulo, dentro de tal aproximação, seria o seu nome civil; Saulo, nome utilizado entre parentes e amigos. Paulo pode ter sido, ainda e porém, uma criação de uma “correspondência semítica”, por banda de Lucas (de facto, na perspectiva subscrita por Hans Kung, “menos provável é a proverbial mudança de nome, de Saulo para Paulo, em consequência da sua conversão, uma vez que «Paulus» deve ter sido, desde o início o correspondente helénico de «Saulo»”, “Os grandes pensadores do cristianismo”, p.20). Paulus, contracção de paululus, significa “pequeno”, “mínimo”, “minúsculo”. De entre as hipóteses que se colocam relativamente ao nome (completo e/ou o usado, desde sempre) do Apóstolo, N.T. Wright assinala que “alguns têm especulado que ele pôs de parte deliberadamente o seu nome, com a sua ressonância de alto nascimento, a fim de usar a palavra grega ligada ao adjetivo paulos, «pequeno, minúsculo» - um sinal, talvez, de uma deliberada humildade, «o último dos apóstolos» (…) Outros têm suposto que ele escolheu o nome pela simples razão de ser um nome mais conhecido no mais largo mundo não-judaico (…) Vale a pena notar também, todavia, que em Aristófanes, conhecido da maioria dos estudantes do mundo grego, a palavra saulos era um adjetivo que significava «afetado», como de um homem a andar de maneira exageradamente efeminada. Podemos compreender que Paulo não desejasse ostentar esse labéu no mais amplo mundo de língua grega” (“São Paulo. A Biografia”, D.Quixote, 2019, p.134). Paulo vem de uma família de fiéis judeus e orgulha-se disso. Foi um fariseu – ainda que aqui se tenha que sublinhar a revisão da imagem tradicional dos fariseus como praticantes intransigentes da lei; sobre essa revisão e flexibilidade na interpretação/acomodação e prática da lei, bem como a imagem dos fariseus aos olhos da demais população do seu tempo, e contrariando, porventura, as representações mais tradicionais e enraizadas, leia-se “A verdadeira história de Jesus”, E.P.Sanders, Editorial Notícias, 2006 -, e fiel a essa condição ao longo da vida: “no Paulo apóstolo persistem muitas características do Saulo fariseu” (p.43).  Paulo não diz porque persegue os discípulos de Jesus, mas é, certamente, por declararem como Messias um maldito, um homem morto na cruz (p.43).
Quem foi, afinal, Paulo de Tarso? “Não tanto um judeu que rompeu completamente com o judaísmo para se tornar cristão (tese da rutura), mas um judeu que acreditou em Jesus, persistiu em muitos aspectos dentro da mundividência judaica, mesmo se com fundamentais transformações (tese da continuidade transformadora)” (p.34).
 
4. As origens do Cristianismo e a tentativa de separar Paulo – como se se tratasse do criador do cristianismo - de Jesus, para muitos a vexata quaestio no que concerne a Paulo de Tarso, revelam-se artificiais (p.13). Como com contundência, assinalara Hans Kung: “é completamente errado apresentar Paulo como o verdadeiro fundador do cristianismo, como Nietzsche fez. A fé em Cristo é anterior à viragem de Paulo, isto é, antes dele já havia discípulos judeus a fazerem a experiência de Jesus crucificado como o Messias de Deus (Cristo). Por conseguinte, Paulo não é responsável pela viragem fundamental ocorrida na comunidade, a saber, de uma fé jesuânica para uma fé em Cristo. Esta viragem é da «responsabilidade» da experiência pascal de Jesus ressuscitado” (“Os grandes pensadores do cristianismo”, p.22). Neste contexto, o que é, então, que distingue Paulo? Fundamentalmente, “o facto de ter sido o cristianismo, e não judaísmo helenista, a tornar-se uma religião universal, apesar de este último constituir igualmente um monoteísmo universal e de, já antes de Paulo, se ter ocupado da missionação dos pagãos. O que nem profetas nem rabinos tinham conseguido, conseguiu-o Paulo: a universalização da fé no Deus de Israel”. Para José Tolentino de Mendonça, para além da experiência pascal do ressuscitado, o genericamente chamado Concílio de Jerusalém (48-49 d.C.) é muito relevante na medida em que “reforça visão universalista e integradora da proposta cristã”.
Se José Tolentino de Mendonça, à semelhança de diferentes exegetas, vê Paulo centrado no Cristo da fé e menos preocupado com o Jesus da história – se a um pólo desta tensão complementar e sem cisão nos ateríamos nos seus escritos -, já para Hans Kung tal posicionamento não será absolutamente isento de controversão: “Paulo está mais interessado no Jesus da história do que alguns teólogos, na sequência de Karl Barth e de Rudolf Bultmann, gostariam de admitir. É certo que Paulo não quer saber de um «Cristo segundo a carne» (…) Esta forma opunha-se àquela que ele (depois da sua conversão) tinha encontrado e que consistia num conhecimento pneumático, iluminado pela fé, «espiritual»! Portanto, não se trata de uma desvalorização do Jesus histórico, mas sim de uma relação completamente nova com ele, uma relação no Espírito”. Mais: nos escritos paulinos autênticos contam-se cerca de vinte passagens em que ele “se refere à tradição evangélica de Jesus” (“Os grandes pensadores do cristianismo”, p.25).
Com Paulo, o cristianismo passa de oral (e campesino) a escrito, marcado pelo aramaico a cosmopolita, transfronteiriço; pela primeira vez na sua história, torna-se urbano. Paulo fez, deste modo, a tradução cultural da mensagem cristã. Oferece uma nova consciência de si a cada um e uma solidariedade e pertença simbólica comuns.
O apóstolo não se compreende sem se observar, devidamente, a realidade globalizada que o império romano oferecia (Paulo vive, em realidade, entre três mundos: o judaísmo do ponto de vista religioso-cultural; o helenismo em termos linguístico-cultural; o império romano, a nível político e jurídico, p.49). Filósofos, pregadores, pensadores aproveitavam, pois, as estradas para divulgarem a sua mensagem (que caía num mundo circundante feito, politicamente, de oligarquias e em que apenas cerca de 10% das populações tinham direitos, mas onde a hospitalidade era uma regra sagrada). 

5.Paulo terá nascido entre os anos 5 a 10 d.C. (de acordo com a datação proposta por N.T. Wright). Era 10 anos mais novo do que Jesus de Nazaré (p.45) - mas não temos notícia de qualquer encontro presencial seu com aquele que reconheceu como o Cristo: nem nas suas Cartas, nem nos Atos dos Apóstolos, nem sequer na literatura apócrifa (p.86). Nasce em Tarso (segundo a indicação, exclusiva, de Lucas), capital da província romana da Cilícia, atual Turquia, importante ponto de encontro entre Ocidente e Oriente, centro poliglota, multicultural e multiétnico. De acordo com N.T. Wright, em “São Paulo. A biografia”, a cidade natal (paulina) teria, então, cerca de 100 mil habitantes, integrando grandes rotas de comércio na direcção da Ásia Menor e Egeu. Nas suas planícies, abundavam cereais, vinhedos e linho, empregado na maior indústria da região: a produção de tecidos. Paulo, que terá sido “uma criança excepcionalmente dotada” e constituir-se-á como um homem emotivo, apaixonado, visceral, polémico era, justamente, na senda das suas origens (natais), em termos profissionais, artesão, fabricante de tendas, sejam elas de pele ou tecido (neste sentido, não sem o risco do anacronismo e por analogia, Kung chamará a Paulo “padre-operário”). Correspondia ao ideal da cultura hebraica juntando o trabalho espiritual ao manual; contraria, então, muito do mundo greco-romano, que desprezava o trabalho com as mãos (sobre o modo como Jesus, na esteira de José, será tekton, construtor, e como tal reivindicará esta dimensão manual do trabalho face a modelos que a sugerem própria, apenas, de homens não livres, releia-se a encíclica Laborem Exercens, do Papa João Paulo II, de 1981). Paulo não dependia de comunidades ou do patrocínio de ricos para o seu sustento. Via o trabalho como um peso que carregava por amor. Diga-se, a este propósito, que o cristão «típico» da época de que vimos falando, começou por ser o artesão livre e o pequeno comerciante, gente que, em qualquer caso, podia viajar e contar com alguns outros sinais de bem-estar económico (p.57). 
Lucas, nos Atos, refere-se a uma irmã e um sobrinho de Paulo, a residirem em Jerusalém. Paulo falará a língua grega, o hebreu utilizado pelos judeus da diáspora (o grego simplificado, koiné, mas também será capaz do grego erudito, segundo os filólogos), o aramaico e, inclusive, o latim. Terá tido uma boa e sólida formação. No dizer de N.T. Wright, ao nível do domínio dos textos religiosos, “parece ter engolido” as escrituras, tal a sua proficiência – ele que nas suas cartas cita 90 vezes passagens do Antigo Testamento (à maneira dos autores rabínicos). Jerusalém constitui, desde cedo, a sua âncora. 
Inicial zeloso perseguidor de cristãos – o escândalo da cruz que virá, depois, a reivindicar -, e mesmo que, possivelmente, não tenha chegado a eliminar fisicamente nenhum daqueles (p.44), tem uma “revelação” (“visão”), “experiência mística” na estrada de Damasco. Muita da representação, por diversos pintores, o mais conhecido, porventura, o quadro de Caravaggio, desse passo memorável da vida do Apóstolo, coloca Paulo a cair de um cavalo – que o texto bíblico não menciona, mas é possível ter existido na sua viagem (…sem regresso ao estádio anterior). A luz perante a cegueira projectada, na tela, por Caravaggio acabou por ser tão marcante na cultura ocidental que se entranhou e se deslocou para qualquer âmbito em que alguém apresente uma radical conversão, mudança, assuma uma diversa vocação da que até aquele instante mantivera (ex: “C. teve a sua estrada de Damasco”). Embora se discuta a cidadania romana de Paulo, o certo é que “Tarso gozava do estatuto de «sociedade livre» (libera urbs) e os seus cidadãos, recenseados e tributados, eram legalmente cidadãos romanos”; Hans Kung observa, sem prejuízo do que se vem de dizer que, provavelmente, sendo Paulo cidadão romano teria sido poupado a não poucos tormentos pelos quais passou (muitas das prisões e dos açoitamentos poderiam, nessa leitura daquela biografia, ser evitados).
Aos 50 anos, Paulo, se alguma vez possuiu um vínculo dessa natureza, não se encontra ligado a nenhuma mulher; exorta os seus interlocutores a viverem livres do matrimónio - e dá-se, a esse propósito, como exemplo; permanece, em termos de ética da sexualidade, na manutenção da diferença sexual (ordem da criação) e anuncia a igualdade da condição do homem e da mulher (ordem da redenção). (p.53).
Nómada, na geografia interior e exterior, não foi um navegante solitário, estabelecendo, ao invés, uma densa rede de homens e mulheres, seguidores de Cristo e missionários.
Tolentino de Mendonça propõe a seguinte cronologia atinente aos marcos mais importantes da biografia de Paulo de Tarso: conversão de Paulo: entre os anos 35 e 37 (N.T. Wright sugere que a revelação a Paulo na estrada de Damasco se possa ter dado no ano de 33). Evasão de Damasco entre 37 e 39. Incidente em Antioquia: entre 43 e 44. Primeira viagem missionária: entre 45 e 48 (N.T. Wright sugere apenas os anos de 47-48). Assembleia em Jerusalém: entre 48 e 49. Segunda viagem missionária, com longa estadia em Corinto: entre 49 e 52. Terceira viagem missionária em Éfeso e uma estadia de três meses em Corinto: entre 53 e 55. Cativeiro em Cesareia: entre 57 e 60. Cativeiro romano: entre 60 e 64. Morte de Paulo: entre 64 e 68. Paulo, com grande plausibilidade, morre em Roma, por decapitação, modo de execução dos cidadãos romanos que recusavam o culto ao Imperador.

6. Não sabemos exatamente quantas cartas Paulo escreveu. No cânone do Novo Testamento, são-lhe atribuídas 13. Destas, há um consenso entre os investigadores em atribuir-lhe 7 (p.62). Se para o Cardeal José Tolentino de Mendonça as cartas de Paulo têm uma “invulgar extensão” (p.65) – e, louvando-se em Randolph Richards, compara-as, para sufragar tal qualificação, com as de outros autores de referência da Antiguidade (as cartas e Cícero variam entre um mínimo de 22 palavras e um máximo de 2530, com valor médio de 295; as de Séneca vão de um mínimo de 149 a um máximo de 4134, as cartas de Paulo têm um mínimo de 335 palavras e um máximo de 7094, média de 2495 palavras) -, já N.T. Wright faz uma observação partindo de um ângulo diverso: “as cartas de Paulo, numa tradução moderna normal, ocupam menos de oitenta páginas. Mesmo tomadas no seu conjunto, são mais curtas do que praticamente qualquer dos diálogos de Platão ou dos tratados de Aristóteles. É possível apostar com segurança que essas cartas, página por página, geraram mais comentários, mais sermões e seminários, mais monografias e dissertações do que quaisquer outros escritos do mundo antigo” (“São Paulo. A biografia”, p.16). George Steiner, seguramente ratificado por ambos os autores vindos de citar, dirá que poucos homens, na história da comunicação humana, acreditaram tanto no poder da palavra como Paulo (p.71).

7.Regressemos a Onésimo. Nome que, em termos etimológicos, significa “útil”. Nome comum entre os escravos. Nome daquele que, foragido do seu “dono”, Filémon, servirá Paulo que sem, em momento algum, da epístola dirigida a este último, se referir a qualquer arrependimento do “servo” quanto à fuga ao seu “senhor” (único modo eventualmente aceitável para os padrões culturais comuns vigentes naquele espaço-tempo, de pedir um tratamento brando a um “dono”, perante um “escravo” em fuga), reclamará, em nome da comum experiência pascal do Cristo ressuscitado, que Filémon o trate/compreenda/pense/sinta como irmão. Em um magnífico e erudito abeirar, literário, da carta, em uma interpretação detalhada da mesma, o poeta e cardeal observa, com efeito, que “na Carta a Filémon, [Paulo] é claro: com um ousado inconformismo social, subverte os esquemas históricos, dizendo que o dono e o escravo se devem reconhecer como irmãos” (p.109). Conclui, interrogando: “Paulo ativa uma alteração de paradigma cheia de consequências que, naturalmente, não se limita a este caso concreto, mas nos obriga a perguntar: o que significou para Paulo construir a fraternidade nas comunidades disseminadas pelo império? Que riscos se propôs correr? Qual era o motor da sua liberdade de visão e de discurso?”.

8.Voltando, em parte com as mesmas exatas palavras ainda que sem reprodução integral do que então escreveu sobre o tema da Esperança (no breve livro-ensaio “Esperar contra toda a esperança”, Universidade Católica Editora, 2020), Tolentino de Mendonça considera que a crise contemporânea é, também, uma crise da esperança (p.129). Ao mesmo tempo, recusando idealismos ou embelezamentos, com o peso da história em cima (bastando recordar a última centúria) e dos acontecimentos do presente (da pandemia de 2020 à guerra bárbara na Europa com a invasão da Ucrânia) sinaliza que a esperança, olhada em densidade e agora, não pode ser uma esperança fácil: “tornou-se insuportável o discurso de uma esperança isenta, empolgada, ligeira, fácil, imediata” (p.129). A esperança, se quer ter conteúdo, se quer ser levada a sério, se não é um produto kitsch, não pode ser fácil; tem que passar pela porta de fogo da desesperança e tem que ser uma esperança depurada, crucificada, ou, em termos paulinos, “uma esperança contra toda a esperança” [na linha de desenvolvimento desta abordagem, “O meu Deus é um Deus ferido”, de Tomás Halík é leitura que importa ter presente]. Justamente, com Paulo percebemos que “não é a expectativa imediata e utilitária de realizar isto ou aquilo, mas é a grande esperança, a que dá sentido e razão, a que finaliza a vida” (p.131; um passo que nos remete muito, note-se, para a reflexão/elaboração de Bento XVI, na encíclica “Spe Salvi”, de 2007, referenciada no breve livro-ensaio, originalmente publicado em 2020, pelo autor, inclusivamente, como um dos raros textos dos decénios mais recentes, capazes de se ater e procurar redespertá-la - à esperança). Em Paulo encontramos, na peugada da esperança, uma tensão, um desejo, um «esperar que»: “por um lado, ele descreve uma espera em Deus, colocando-nos na expectativa de um horizonte de sentido meta-histórico (…); por outro, refere um perseverar e um suportar, na linha da virtude da constância, ligando-se ao modo como os crentes devem, em tensão criativa, viver o presente (espero que). (…) [A esperança] Tem uma onda longa, pois está referida ao futuro de Deus e ao cumprimento escatológico da história (…) mas não deixa de estar referida ao presente em marcha, em processo, em aberto, pois, com o mistério pascal de Cristo (…) a metamorfose está em curso no aqui e no agora, no ordinário e no quotidiano na vida” (ou como o próprio José Tolentino de Mendonça diria em conferência em tempo pascal, na última década, precisamos muito, desde logo, da “ressurreição dos vivos”, sabendo nós como a ressurreição de Cristo, o Cristo vivo, é um mote decisivo do pensamento paulino: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé”).
Na leitura de Badiou, em Paulo a esperança é “uma «fidelidade provada»; uma tenacidade que o amor encontra na prova»; uma espécie de fidelidade à fidelidade» e não a imediata representação do seu resultado ou de uma recompensa futura”. No dizer de José Tolentino Mendonça, a esperança “não é uma exalação imaginária, uma ficção que nos separa do curso da existência. Pelo contrário, está tatuada no presente mais escaldante, exercita-se na tribulação, aprofunda-se na paciência, alarga-se na capacidade de resistir ao mal e ao sem sentido. Somos todos experiência do inacabado, indagação no incompleto, dureza e opacidade da pedra. A esperança não nega ou contradiz. Trata-se de uma gestação espiritual que ocorre precisamente nessas circunstâncias. É ela que entreabre, que faz ver, para lá das duras condições, possibilidades ainda escondidas” (pp.132-133). 
 
9.Para Hans Kung, inspirador é o Paulo que compreende que “só Cristo crucificado é imagem da vontade divina, o rosto de Deus que os sem-Deus procuram, escândalo permanente para os piedosos e os moralistas, para os legalistas e para aqueles que estão presos às normas, e bênção para toda a criação, para este mundo caído e perdido (…) Ele não era nenhum asceta excêntrico, que tivesse renunciado a todos os bens do mundo. No entanto, cada um deve «discernir qual a vontade de Deus: o que é bom, agradável e perfeito. De facto, quem crê em Jesus Cristo não precisa de alcançar a perfeição pessoal, nem precisa de se refugiar numa comunidade de perfeitos. Pode e deve cumprir a vontade de Deus no meio do mundo profano. Não precisa, de maneira nenhuma, de prescindir de todos os bens do mundo. Só não deve entregar-se-lhes (…) Paulo compreendeu que nenhum cristão precisa de deixar o mundo. A questão está em não se deixar vencer por ele” (pp.29 e 37).
Na síntese final de José Tolentino de Mendonça, podemos e devemos guardar de Paulo a noção de que não nascemos cristãos, não somos espontaneamente cristãos: fazemo-nos cristãos (um pressuposto em que a teologia e a pastoral, se e quando o não fazem, têm de atentar urgentemente); a Igreja, com Paulo, é sempre referida a Cristo, muito mais do que a si mesma (não podemos ter uma Igreja autorreferencial, virada para si, a falar para dentro, mas a servir todos); Paulo estabeleceu uma série de ligações, em múltiplas viagens e escritos, com comunidades, com pessoas, com gente, dessa maneira urdindo uma rede de uma vivência comunitária da fé (frente à individualização da vivência desta, nossa contemporânea, ou a projectos isolados, Paulo mostrou a força daquelas redes); para Paulo, ser cristão é viver em estado de recomeço (o processo permanente, o inacabado da fé, a noção da fragilidade da mesma, do combate interior permanente e, se quisermos, o nomadismo interior e exterior de Paulo, talvez tenha aqui a possível inclinação, dentro dos diálogos contemporâneos acerca do religioso e modos de inscrição nele, para a necessidade de permanecermos, nos termos hodiernos, seekers, buscadores, que é também o mesmo que dizer não idólatras, não rígidos, não inamovíveis e fechados em bunkers, não em espírito de seita, acomodados, sem o menor ardor de fé).

Pedro Miranda

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