PROTECÇÃO SOCIAL NO PORTUGAL DEMOCRÁTICO. RUI BRANCO

 

PROTECÇÃO SOCIAL NO PORTUGAL DEMOCRÁTICO. RUI BRANCO

O ensaio de Rui Branco ("Protecção social no Portugal democrático"), Professor do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, surge em plena discussão e debate sobre a rede de protecção social em Portugal em um contexto fortemente inflacionista.

O livro dado à estampa com a chancela da FFMS oferece uma visão panorâmica de como aquela malha evoluiu no Portugal democrático: foi já com os “trinta gloriosos anos” (1945-1975) superados, época dourada do capitalismo, que Portugal, em um tempo pós-crise petrolífera internacional portanto, entra, com densidade, na construção de um Estado Providência com robustez bastante; em se legitimando, em boa medida, em essa necessidade de cimento social a (novel) democracia portuguesa, o crescimento da despesa e alcance desse Estado Social serão, em poucas décadas, imensos e impressionantes; a perspectiva global, sobre tal estado da arte, propiciada pelo doutorado no Instituto Universitário Europeu (Florença), nesta investigação, oferece, outrossim, às novas gerações um compêndio de adquiridos sociais que não recuam mais do que a 1976 (do salário mínimo, ao 13º mês das pensões, passando por um rudimentar subsídio de desemprego); este estudo, principia por um enquadramento dos debates sobre a liberdade – e do modo como, nestes, se insere a sedimentação de um 'Estado de bem-estar'; relativamente aos anos do período de presença da 'troika' em Portugal, esta obra permite, igualmente, revisitar o que estava, e não estava, plasmado no memorando de entendimento do Estado português com as instituições internacionais - dos cortes das pensões aos agravos ao SNS, respectivamente -; elenca as áreas sociais a que é alocado o grosso da despesa social portuguesa (velhice e saúde); identifica lacunas, ainda assim prementes, ao longo dos anos e no presente, na realidade social portuguesa (maxime, habitação); evidencia como, no últimos 20 anos, independentemente de quem presidiu aos governos no nosso país, as mudanças efectuadas em âmbito de legislação laboral redundaram, em permanência, numa maior facilitação dos despedimentos e em um padrão de direitos laborais que sistematicamente minguaram (incluindo os valores e duração do subsídio de desemprego); pode funcionar, este retrato e elaboração, como mote para a conversação pública sobre o futuro português quanto à protecção social.

1.Enquanto uma certa concepção do liberalismo político sustenta que a melhor forma de proteger a liberdade individual passa por fortes entraves à acção do Estado e com regulação dos mercados à protecção social - «liberdade negativa», (para) agir sem obstáculos, constrangimentos ou interferências de terceiros ('freedom from') -, uma outra tradição, desta mesma corrente política, considera, ao invés, que a prossecução da liberdade entendida como autodeterminação, quer do indivíduo, quer do colectivo, implica a intervenção pública ou estatal - «liberdade positiva» enquanto possibilidade de agir no mundo de forma autodeterminada e orientada para a realização própria ('freedom to'). Neste último enquadramento, “a protecção em relação à doença é liberdade, porque não se é livre para iniciar um negócio quando deixar um emprego anterior significa perder a protecção na saúde” ou “educação é liberdade, porque sem qualificações escolares não se é livre para garantir segurança material através do emprego na economia de hoje” . Se, ao longo das últimas décadas, a definição de liberdade enquanto «liberdade negativa» tem prevalecido, tal não se afiguraria, bem pelo contrário, uma evidência, desde o pós-II Guerra Mundial até meados dos anos 70. Durante os «30 anos gloriosos» (1945-1975) - de crescimento económico e pleno emprego (masculino), Bretton-Woods e Guerra Fria -, a noção de protecção social como liberdade (e não como entrave à mesma; como factor emancipatório e não factor/fomentador de dependência), “arena onde se negoceia a tensão entre liberdade e igualdade”, “forma pacífica de partilhar a prosperidade”, modo de derrotar os “cinco gigantes (necessidade, doença, ignorância, pobreza e desemprego), “assunção pública das políticas de saúde e pensões” – desde logo, apontadas no relatório do membro do partido liberal britânico, William Beveridge, “insuspeito de socialismo”, no seu célebre Relatório de 1942, solicitado por um Governo liderado por Winston Churchill -, em suma, esta ideia de Estado Providência foi “apoiada por um amplo compromisso de classes, sustentado por sociais-democratas e democrata-cristãos na Europa Ocidental”. Os choques petrolíferos (1973) e a estagflação durante a década de 1970 fizeram com que “o que parecia incontroverso” passasse a ser “um dos principais temas do debate democrático” (p.9). A partir, pois, daquela data o Estado-Providência entra em “uma fase de recuo ou retração que, para alguns autores, se prolonga até à actualidade” (p.11).
Em Portugal, onde, no essencial, a afirmação de uma rede de protecção não ocorre enquanto o Estado-Providência se encontra em fase de expansão na generalidade da Europa (se muitos referenciam a origem genética do mesmo nas primeiras medidas sociais de Bismarck, no final de oitocentos, outros situam, inclusive, o alívio da dimensão social da pobreza na 'Lei dos Pobres', de 1601, no Reino Unido), a assunção de mais profundas responsabilidades por parte do Estado no âmbito da protecção social será um dos principais traços distintivos do regime democrático face ao experienciado durante o Estado Novo: “se algo distingue o regime democrático de Abril é, a par de direitos de cidadania civis e políticos, a criação de uma relação nova entre Governo e cidadãos através da protecção social, saúde e educação” (p.9).

2.De acordo com a tipologia proposta por Gospa Esping-Andersen, três são os modelos prevalecentes de configurar as instituições e políticas de protecção social (consoante factores como “desmercadorização”, “estratificação social promovida por um dado regime”, agente de provisão e financiamento do bem-estar): a) 'regime anglo-saxónico ou liberal' (Reino Unido desde os anos 1980, EUA, Austrália, entre outros) que prima em países nos quais as políticas (económicas) liberais dominam, “na ausência de uma influência política ou sindical forte de tipo social-democrata ou democrata-cristão, ou da Igreja Católica na sociedade civil. O regime liberal confere ao Estado responsabilidades residuais no domínio da protecção social e encoraja o indivíduo a procurar soluções no mercado (…) ou a obter a protecção através do empregador, estabelecendo rígidos critérios de elegibilidade para os programas sociais existentes”; b) 'o regime escandinavo ou social-democrata' (inclui os países do Norte da Europa) e que “resulta do longo domínio dos partidos social-democratas, bem como de um movimento sindical forte e unificado, redundando num vasto leque de responsabilidades públicas, conferindo prioridade à igualdade social através do acesso universal à protecção”, sustentado, em termos históricos, “por uma coligação entre trabalhadores industriais urbanos e agrícolas e, posteriormente, por uma coligação interclassista, das classes trabalhadoras industriais às classes médias urbanas e profissionais”. Neste modelo, “a provisão pública de bem-estar financiada por impostos prevalece em detrimento do mercado e da família; c) o 'regime continental ou corporativo', comum na Europa continental fora da Escandinávia (Alemanha, Áustria, França, Bélgica, etc.) parte do legado bismarckiano, combina longos períodos de governação democrata-cristã em competição com a social-democracia. Aqui, “o seguro social público obrigatório e de base ocupacional é o instrumento de uma segurança social que diferencia segundo categorias socioprofissionais, reproduzindo diferenças entre ocupações, de classe e de género. Tem impacto redistributivo reduzido, uma vez que as prestações pecuniárias são proporcionais aos descontos dos trabalhadores e empregadores”. Apresenta um nível moderado de desmercadorização.

3.Relativamente à inserção portuguesa em um destes modelos, alertar-se-á para um certo carácter 'sui generis', híbrido, do nosso Estado Social – “desenvolveu com o tempo uma arquitectura híbrida. A raiz ocupacional corporativa foi transformada pela revolução social e ímpeto constituinte de expansão da cidadania social, e depois continuamente reformada” (p.10). Em simultâneo, de um modo mais geral, autores há que mapeiam, politicamente, os países do sul da Europa como “regimes continentais subdesenvolvidos”, sendo que são, sobretudo, o resultado de “um desenvolvimento económico capitalista tardio e dependente, e de uma atrasada modernização social e política. Cresceu e consolidou-se apenas desde os anos 1970, uma geração após a expansão e maturação dos congéneres na Europa Ocidental” (p.15). É-lhe peculiar “uma organização híbrida que combina elementos social-democratas, como os serviços nacionais de saúde, com um sistema de segurança social público de base ocupacional. Assim, o modelo de protecção social é mais fragmentado do que o dos regimes continental e escandinavo, deixando grandes segmentos da população mal protegidos e remetendo o preenchimento dessa lacuna para a família” (pp.15-16).

4.Embora no final dos anos 1960, Marcello Caetano avançasse a ideia de “Estado Social”, procurando ser factor de desenvolvimento económico e pacificação do mundo industrial e rural, assenta, no dizer de Rui Branco, em “um pacto social artificial”, “pois não envolveu a participação autónoma dos destinatários principais, os trabalhadores, e visou, não harmonizar capitalismo e democracia, mas dispensar a democracia num «capitalismo corporativo autoritário». O Estado Social referido por Caetano era um «Estado Corporativo», manifestação de uma terceira via que rejeitava tanto o “Estado Socialista” como o “laissez-faire» republicano”, «esse ambiente [dirá Caetano em discurso à Assembleia Nacional em 1968] individualista que reinava antes, a concorrência desregrada entre as empresas, a insegurança e a desprotecção dos trabalhadores…» (p.30). Nas vésperas da revolução de 1974, Portugal apresentava a menor esperança de vida da Europa ocidental; a maior taxa de mortalidade infantil; a mais desigual distribuição de rendimento; a maior iliteracia e desigualdade no acesso à educação; a maior população activa na agricultura e a menor industrialização; e, ainda, a menor cobertura da segurança social (p.28). Em 1965, os serviços médico-sociais chegavam a 2,6 milhões de portugueses (em 1954, acediam a estes apenas 35 mil nacionais); em 1975, seriam, já, 7,3 milhões. Em 1970, apenas 56% da população ativa estava coberta; em 1976, já rondava os 100%, 9/10 pelo futuro SNS (pp.29-30). Em percentagem do Produto Interno Bruto, os gastos em Saúde, em 1970, correspondiam a 1,9%, sendo, à época, a média europeia a de 2,9%.
O regime democrático legitimar-se-ia na reversão das desigualdades herdadas do regime anterior, através da protecção social, saúde e educação. A partir de Maio de 1974, os Governos adoptaram medidas como: criação do salário mínimo; protecção na invalidez, orfandade, maternidade e primeira infância; criação de um sistema universal e integrado de segurança social, incluindo a assistência social; «13º mês» das pensões; aumento do abono de família; pensão social (primeira prestação pecuniária não contributiva do sistema de protecção social); subsídio de desemprego rudimentar; separação dos serviços médico-sociais das caixas de previdência e sua entrega a administrações regionais de saúde; nacionalização dos hospitais das Misericórdias (mais tarde, estas recuperaram parcialmente a posição anterior, “como compensação pelas nacionalizações de hospitais e rendas pagas pelo SNS”, p.38); direito à greve; liberdade sindical; supressão dos organismos corporativos; proibição do despedimento sem justa causa; férias pagas; subsídio de desemprego; redução do máximo horário de trabalho semanal; generalização do subsídio de Natal e proibição da descriminação com base no sexo (p.35).

De acordo como cientista social e politólogo Pedro Magalhães, “a Constituição de 1976 estabelece o Estado-Providência como suporte de uma cidadania democrática substantiva e de uma economia mista. Em termos europeus, é a que maior importância dá a objectivos de política social e a que mais extensivamente reconhece direitos de protecção social” (citado a p.35).  Todavia, e dado que “o ponto de partida português é o mais baixo (e desigual)” no que concerne à despesa social, nos anos de 1980 o sistema de protecção “era ainda subdesenvolvido” e não apenas em relação à restante Europa ocidental, mas também por comparação a Espanha e Itália (em 1980, a despesa em protecção social em percentagem do PIB em Portugal era de 9,7%, enquanto a média da UE-15 se cifrava nos 18,6%, em Itália atingia os 18,2% e em Espanha 15%; em 1990, tais percentagens eram, respectivamente, de 12,4%, 21%, 22% e 19,2%; em 2000, 18,9%, 22%, 23,8% e 19,5%; em 2010, 24,7%, 26,8%, 28,4% e 24,7%; em 2018, 24,6%, 24,6%, 27,9% e 23,7%). A partir desta década, e durante os 30 anos posteriores, a despesa social teria, em Portugal, um crescimento de 367%, mais do dobro do crescimento médio europeu (134%). Se assim sucedeu até à Grande Recessão (no pós queda do Lehman Brothers, em 2008), a partir dessa crise na viragem da primeira década do século assistiu-se à estagnação estrutural na despesa social portuguesa – tal como na restante Europa do Sul – enquanto na média europeia houve uma subida de 5,7% per capita. Observada a composição da despesa social, verifica-se que, no nosso país, a esmagadora fatia, sempre crescente, dos recursos centram-se na protecção na velhice e cuidados de saúde (de 68%, em 1980, para 80% em 2015; a média europeia, nas mesmas datas, estabilizou nos 66%). Diferentemente, o país regista “défices históricos de desenvolvimento na rede de mínimos contra a pobreza (habitação e exclusão social) e nos programas dirigidos às famílias e crianças” (p.43). Entre 2010-2015, ditos “anos troika”, e embora o 'Memorando de entendimento' celebrado entre o Estado português e as instituições europeias e internacionais não contivesse qualquer reforma estrutural das pensões, o sistema em que estas se integram “foi sujeito a significativos cortes na despesa e aumento da fiscalidade”. Já no que diz respeito ao SNS, “o Memorando impôs duros cortes, pelo que o seu peso diminuiu para um valor abaixo da média europeia” (p.44). Tanto em Portugal como em Espanha, foram, ainda, executados cortes na “rede de mínimos, exclusão social e família”. Finda aquela meia década, “estamos perante um dispositivo de protecção social [em Portugal] em que as pensões têm mais peso”, o pilar universal da saúde está “enfraquecido” e há menor atenção “aos novos riscos sociais”. Até ao dealbar do século XXI, a regulação do mercado de trabalho tendeu a proteger (segurança do emprego) aqueles que possuíam trabalho permanente ('insiders'), mais do que a protecção individual no desemprego ou atenção aos que possuíam contratos temporários ou atípicos ('outsiders'); nestas últimas duas décadas, assistiu-se a uma liberalização (leia-se facilitação dos despedimentos e contratações) do mercado de trabalho, com certa compensação na melhoria das condições para os que se encontram em situação de desemprego (mas não para os 'outsiders').  Em 2003, a reforma então aprovada diminui a protecção no emprego, aumenta a duração dos contratos a termo certo para 6 anos; é abolido o princípio do tratamento mais favorável (permite-se que a convenção coletiva se desvie para pior face à lei geral). Em 2009, nova revisão do código de trabalho restringe esta última permissão introduzida pela reforma anteriormente citada: horário de trabalho, trabalho nocturno, períodos de descanso e feriados são casos em que fica excluído desvio em convenção colectiva, para pior, relativamente ao trabalhador, do que o estatuído na lei – mas já assim não acontece quanto ao trabalho extraordinário e à contratação de trabalhadores temporários. Esta mesma reforma favoreceu a descentralização da negociação colectiva para o nível da empresa, com poderes de negociação dados a comissões não sindicais em empresas com mais de 500 funcionários, sob licença sindical. Os procedimentos de demissão facilitados para os contratos permanentes e no plano do horário de trabalho temos, igualmente, uma flexibilização ou liberalização assente em banco de horas individual, horários concentrados, adaptabilidade individual, etc. A duração máxima dos contratos a prazo foi reduzida para três anos. Por esta altura, ainda assim, comparativamente, Portugal apresenta protecção no emprego com certa densidade para os 'insiders', mas pior protecção para os 'outsiders'; no campo da protecção do trabalhador em situação de desemprego, depois de uma expansão da cobertura com melhoria do rendimento, houve viragem com certa desvalorização da reposição do rendimento, em favor da exigência de busca ativa de emprego, formação profissional, etc. Entre 1980-2010, o subsídio de desemprego cresce 60% (o crescimento dá-se até 1990, essencialmente). Em 2006, as mudanças a este nível foram no sentido de restringir o acesso ao subsídio (aumento do prazo de garantia, duração variável em função dos descontos prévios). No dizer de Rui Branco, “as reformas do mercado de trabalho antes de 2010 foram descritas como «flexigurança» (…) Porém, entre 2007 e 2009, a protecção contra o despedimento individual diminuiu para contratos permanentes e temporários, embora mais para os segundos” (p.48). O 'Memorando de Entendimento' com a troika “receitava liberalização e descentralização” do mercado de trabalho e, em termos práticos, de nova revisão do código de trabalho resultou: i) facilitação do despedimento individual de contratos permanentes; ii) redução da duração e valor do subsídio de desemprego; iii) flexibilização de horário; iv) corte na compensação por trabalho extraordinário (p.62). A negociação coletiva foi limitada e inversão do princípio mais favorável com prioridade aos acordos de empresa sobre os sectoriais. O número de convenções coletivas caiu a pique; apenas 241539 trabalhadores estavam, em 2013, cobertos por novos acordos – o mais baixo valor em democracia. Quanto ao subsídio de desemprego, cortou-se a taxa de reposição (face ao rendimento prévio, anterior à situação de desemprego), a duração caiu para metade e o valor máximo (perda de 17%, mais 10% após 6 meses). Em 2013 e 2014, é cobrado um imposto de 6% sobre subsídios acima dos 419 euros. O rendimento dos desempregados caiu 25% entre 2010 e 2013. Para os menores de 30 anos com menos de 15 meses de descontos, a duração do subsídio passou de 270 para 150 dias. Os trabalhadores temporários não melhoraram a sua situação (p.63). Numa palavra, “a reforma laboral degradou significativamente a situação dos 'insiders', mas sem melhorar (pelo contrário) a situação dos 'outsiders'. No final, a dualização continuou, mas a um nível mais baixo de segurança e protecção – um padrão de «liberalização dualizada» ou «recalibração negativa». É verdade que a diferença entre uns e outros diminuiu, mas não porque os 'outsiders' tenham ficado em melhor posição, antes porque os 'insiders' pioraram a sua situação. É lícito concluir que a retórica do Memorando sobre a necessidade de complementar a liberalização pro-outsider se revela vazia, ou pelo menos falhada” (p.69).

5.Já em democracia, é criado o SNS: pela lei 56/1979 são substituídos os seguros de base ocupacional (caixas de previdência) pela lógica «social-democrata» de prestação pública universal financiada por impostos. Este modelo, em parte, foi alterado desde o início da década de 1980; com o tempo, “a centralidade do Estado enquanto prestador e financiador dos serviços de saúde deu lugar a um papel mais amplo do sector privado como prestador no quadro de um Sistema nacional de saúde” (p.38). Em realidade, “o SNS nunca alcançou uma forma completa, universal e geral, ao invés dos congéneres da Europa do Sul, como o espanhol (criado em 1986), ou o italiano (em 1978), mas de forma similar ao grego (criado em 1983)” (p.87). Na última década, o 'memorando de entendimento' com a 'troika' implicou menor despesa social com medicamentos, com custos operacionais e de medicamentos, com  pessoal, congelamento de progressões e contratações, cortes na rede hospitalar e no financiamento dos subsistemas (p.91). Todavia, após a superação desse período de assistência financeira, o país voltou a fazer um amplo investimento no SNS (reforço dos cuidados primários, extinção das taxas moderadoras, aumento de contratações, nomeadamente médicos de clínica geral para procurar reduzir o número de portugueses sem médico de família), ainda assim não o bastante – ou a gestão desse investimento não suficientemente bem sucedida – para superar um conjunto de défices que permanecem na área da saúde em Portugal. Houve aumento dos 'numerus clausus' em Medicina, em 2021 foi aberta a primeira faculdade privada de Medicina no país, houve a necessidade de mudar a “composição relativa, pois o SNS estava demasiado centrado nos médicos e pouco nos enfermeiros” (p.93).

6. Com a emergência da pandemia, as respostas sociais então emergentes beneficiaram muito da cooperação governo-oposição e, em particular, do posicionamento (construtivo) desta última, um “caso invulgar na Europa do Sul” (p.98). Esperava-se, entretanto, pela aplicação e efeitos benéficos – e, desejavelmente, de cariz estrutural – na economia portuguesa, do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Este Plano expunha, exemplarmente, o significado da “europeização das políticas sociais: oferece recursos materiais e cognitivos, capacitando o executivo para executar reformas”. Entre outros, o PRR propunha-se ou propõe-se, para nos ficarmos pelo âmbito das políticas de Saúde, “descentrar o SNS dos cuidados hospitalares e de urgência para os cuidados ambulatórios e crónicos; recrutar mais médicos de família, enfermeiros e técnicos; corrigir desigualdades sociais e territoriais de acesso; racionalizar a gestão dos hospitais públicos, integrar melhor cuidados primários, continuados, paliativos, de saúde oral e mental” (p.99).  Entretanto, emergiu uma brutal guerra de agressão da Rússia de Putin à Ucrânia, uma guerra de conquista territorial como a Europa não assistira desde a segunda guerra mundial. A inflação que já aí estava, em níveis superiores às últimas décadas, no pós pandemia (poupança reforçada durante dois anos, injecção de recursos económico-financeiros dos Estados junto de famílias e empresas, entre outras causas apontadas por diferentes economistas; a nível internacional, ficaria célebre, neste Verão, o reconhecimento, no The New York Times, da parte de Paul Krugman, de que havia errado quando um ano antes, em entrevista à Bloomberg, considerara que os estímulos estatais à economia não gerariam pressão inflacionista, afirmando agora que os padrões de consumo se haviam alterado, o gasto das poupanças fora imediato, mas também o lockdown na China como responsáveis pela situação fortemente inflacionista), avançaria até aos valores mais elevados dos últimos 30 anos (entre Julho de 2021 e Julho de 2022, os preços de bens alimentares e bebidas não alcoólicas subiram 13,9% e os preços dos transportes subiram 12,9%, a habitação, água, electricidade, gás e outros combustíveis ficaram 16,6% mais caras). Em Portugal, as primeiras medidas de apoio às famílias avançadas - pense-se na transferência de 125 euros para todas as famílias cujos rendimentos mensais fossem até 2700 euros brutos; nos 50 euros transferidos, para cada família, por cada criança/jovem até aos 24 anos; no pagamento imediato de meia pensão a cada pensionista -, pelo governo, a 5 de Setembro último, geraram como principal pomo de debate, quanto ao paradigma de concepção do estado social português – e para lá da discussão mais vocal quanto ao cumprimento da lei que atualizaria as pensões em função dos valores da inflação que seria, agora, obliterada ou alterada em face a tão elevados índices de inflação, tidos como incomportáveis para a Segurança Social portuguesa, mesmo com números divergentes entre si, colocados em cima da mesa pelo Governo face aos que nos dias mais recentes disponibilizou -, o modo como estavam calibradas para visarem a universalidade dos portugueses – “no conjunto de medidas de apoio às famílias que o governo apresentou na segunda-feira, é particularmente relevante a sua universalidade (…) As medidas aprovadas pelo governo mudam o paradigma das políticas de emergência no apoio aos rendimentos e passam a incluir todos os portugueses”, escrevia o deputado do PS Marcos Perestrello a 7 de Setembro (CM, 7-09-2022, p.2), ou como deviam, antes, privilegiar  - o que não estariam a fazer devidamente - os grupos mais desfavorecidos da população portuguesa, devendo centrar nestes as suas atenções e recursos (Susana Peralta, Professora de Economia, defendeu este último ponto de vista em “É ou não é?”, RTP1, 06-09-2022; para esta economista, poderia calibrar-se, por exemplo, o valor percentual a dar cada pensionista, com os que recebem pensões mais baixas, por exemplo, a receberem um reforço de 90 ou 100% da mesma, enquanto os que possuem mais elevadas pensões ficarem por uma aumento de 10% ou mesmo residual). Se, no início de Setembro, esta questão da universalidade ou, inversamente, da concentração de recursos nos grupos sociais mais desfavorecidos assomava, ela trazia consigo uma discussão suscitada acerca do estado social português que a precede, claramente, no tempo - e em que vale a pena atentar. Num livro publicado em 2015, Pedro Adão e Silva e Mariana Trigo Pereira, “Cuidar do futuro. Os mitos do Estado Social português” (Clube de Autor) sustentavam que, mau grado o excelente desempenho no combate à pobreza por parte do Estado Social, este não foi, historicamente, criado com essa finalidade precípua, antes visando, em grande medida, integrar a classe média, fornecendo seguros sociais - sendo que esta, a classe média, vislumbrava benefícios (para si) na existência desse mesmo Estado Social. De aí que reduzir o Estado Social a uma tarefa de combate à pobreza e destinado, exclusivamente, aos mais pobres pudesse enfraquecer o apoio de outros sectores sociais a esse mesmo Estado Social e, assim, em última instância, colocar este em causa (isto é, no limite e paradoxalmente, a ausência de universalidade no Estado Providência português prejudicaria, de acordo com este argumento, os mais desfavorecidos, porque o apoio estado social, ele mesmo, de que os excluídos dependem mais do que qualquer outro grupo social, da maioria da população vacilaria ou diminuiria na sua intensidade). Os níveis de desempenho desse Estado Social haviam, de resto, contribuído para fortalecer o apoio/legitimação ao sistema democrático que, na opinião daqueles autores, poderia, desta sorte, de alguma forma, fraquejar. Além do mais, enquanto amortecedor de crises, o papel económico desse mesmo Estado Social, cujo modelo é descrito como afastado do assistencialismo, não seria menos relevante. Esta abordagem quanto ao papel, função, destinatários do Estado social português não fez demasiada escola de 2015 até aos nossos dias, ou, então, fê-la, mas a la carte e sem que se perceba, com clareza, no horizonte político-partidário nacional, quem com ela tendencialmente está de acordo, ou quem dela discorda com assertividade, pois, tanto ao nível nacional quanto local, diferentes dirigentes de forças partidárias que tendem a situar-se, por antonomásia, mais próximas de ideias ditas economicamente liberais ou mais aconchegados em referências sociais-democratas, respectivamente, adoptam e criticam severamente, à vez, propostas e programas políticos que visam a universalidade (da entrega de manuais escolares a passes para mobilidade em transportes públicos), entregando-se a uma casuísta e oportunismo políticos bastante ostensivos. Sublinhemos, uma vez mais, que Marcos Perestrello, no início de Setembro falava, mesmo, em um “novo paradigma” de políticas sociais, assente na “universalidade”. Mas chegou Outubro e, com ele, um quadro mais amplo de compreensão da protecção social a adoptar nos anos vindouros, com o Orçamento de Estado apresentado. Aqueles de entre os pensionistas e funcionários públicos com rendimentos mensais mais minguados recebem, com efeito, aumentos que significarão a ausência de perda de poder de compra por parte destes (caso se confirmem as previsões de inflação). Já o grande grosso dos trabalhadores portugueses terão em 2023 acentuadas quedas de rendimento – que o governo se propõe colmatar, em recuperação do poder de compra, em anos seguintes, ainda que com muito optimistas previsões para os valores de inflação, segundo a generalidade dos analistas. Face à proposta de orçamento de estado apresentada, a discussão centrou-se no significado da “prudência” que no mesmo se inscreveria: o orçamento, visto, não raramente, na opinião publicada, como conservador, compensaria pelo lado da poupança nos juros da dívida – na diminuição acelerada desta, a quarta maior  redução de dívida pública do mundo entre 2020-2023 – o que não entregava, ao nível da ajuda ao rendimento, mais, de imediato, a mais gente – mesmo aceite, por todos, o pressuposto de que o Estado não possui os recursos bastantes para evitar uma grande perda de poder de compra em 2023, por banda da maioria dos portugueses, juntando-se às perdas, já irrecuperáveis de resto, de 2022, no que “a prudência” teria de positivo; diversamente, o entendimento de quem considera que uma ausência de um maior apoio a mais portugueses, sem uma obstinação tão acentuada com aquela do ritmo de redução de dívida pública, redunda em imprudência quanto aos efeitos que tal virá a causar na economia (por exemplo, a posição do Professor de Economia Ricardo Cabral, 'Público', 17-10-2022, p.9).


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