ACELERADOR DE CURIOSIDADE (JORGE CALADO)

 

ACELERADOR DE CURIOSIDADE

1.Embora não sendo o maior dos amantes de fado, tinha em “Barco Negro”, cantado por Amália Rodrigues, o meu favorito. Fico, agora, a saber, através da leitura de “Mocidade Portuguesa” (Imprensa Nacional, 2022), de Jorge Calado, que a canção fora introduzida em Portugal por Maria da Conceição, embora sob outro título (“Mãe preta”) e letra diversa (centrada na denúncia do esclavagismo). Prossegui, curioso, o novelo da música e percebi que, originalmente, “Mãe Negra” foi composta por dois poetas brasileiros, Caco Velho (Matheus Nunes) e Piratini (António Amábile), em 1938, tendo sido estreada, do outro lado do Atlântico, pelo “Conjunto Tocantins”, em 1943. Uma canção sertaneja, transposta para fado na década de 50, com a censura, no nosso país, a não permitir que a letra original permanecesse (com a existência de colónias, durante esse lapso de tempo), acabando por dar origem a “Barco Negro”, letra de David Mourão-Ferreira na voz de Amália (desde logo, no filme “Amantes do Tejo”, de 1955, que projectaria a grande fadista para reputados palcos internacionais). De entre as sugestões maiores do melómano, no que a fados diz respeito, fico(-me) - David Mourão-Ferreira, com Alain Oulman/Amália Rodrigues -, com “Abandono” (“Por teu livre pensamento…”).

2.Se a tia Maria, nos idos de 80, nos cantava o “Vai-te embora, ó papão/De cima deste telhado/Deixa dormir o menino/Um soninho descansado”, noto, agora, que (pelo menos) já na década de 1940, muitas crianças adormeciam, país fora, escutando as mesmas palavras. E, em se falando em canções de embalo, registe-se que foi um género “cultivado por muitos compositores, de Johannes Brahms a Richard Strauss”, sendo, aqui, a proposta maior a do prestigiado compositor catalão Xavier Montsalvatge (1912-2002) e a sua “Canção de berço para adormecer um pretinho” (com letra do uruguaio Pereda Valdés), incluída nas “Cinco Canções negras”, que podemos, ainda, escutar nos registos que chegaram até nós de Teresa Berganza, Montserrat Caballé ou (a nossa) Elisabete Matos.

3.Professor no Instituto Superior Técnico, Jorge Calado irá fazer o Doutoramento em Química-Física em Oxford. À sua espera, além de um supervisor científico, um tutor moral (para ajudar a resolver problemas pessoais). No “New College” (um dos 39 Colégios de Oxford), descobriu “pessoas não formatadas; pelo contrário, eram surpreendentemente multifacetadas, com interesses vários, todos levados muito a sério (…) O sul-africano louro a especializar-se em engenharia tocava trompa; o inglês graduado em geografia falava russo e dedicara-se ao estudo das óperas feéricas de Rimsky-Korsakov; o australiano a doutorar-se em matemática era chefe (‘cox’) da equipa de remo do colégio (…) No grupo do meu supervisor de doutoramento, todos os estudantes tocavam um instrumento musical; um deles era mesmo considerado um especialista da serpente, um instrumento de sopro inventado no século XVI, antepassado distante da tuba” (pp.529-530). Por sua vez, os debates na “Oxford Union” – sociedade estudantil de debates fundada em 1823 – tinham tal qualidade (argumentativa) que eram televisionados. O ano académico, em Oxford, desdobra-se em três períodos de 8 semanas cada, ou seja, vinte e quatro semanas de estudo e tutoriais, e vinte e oito de «férias»: “explicaram-me então que o calendário refletia as necessidades medievais do trabalho no campo. Após oito semanas de estudos, os alunos regressavam às terras para ajudarem as famílias nas fainas agrícolas. A norma perdurou até aos dias de hoje” (p.538). Ao longo de décadas, o (também) crítico cultural (que teve coluna no “Times Literary Supplement” e escreve para o “Expresso” desde 1986) fez questão de dizer que os melhores alunos são da Universidade de Oxford, porque “o ensino em Oxford é praticamente individual, feito em tutoriais de três ou quatro estudantes, e talhado à medida de cada um. Um sistema de ensino demasiado caro para poder ser generalizado” (p.532). Foi, igualmente, ali – onde passou os três anos mais felizes da sua vida – que assistiu a uma tendência que vimos observando estabelecer-se com crescente força em várias partes do mundo (a da relação entre formação académica numa determinada área não corresponder exatamente, porventura, aquilo a que a maior parte suporia, ao nível da atividade a desempenhar, depois, profissionalmente, por cada pessoa): “lembro-me de me ter apercebido com espanto que um colega acabado de se doutorar em química tinha arranjado emprego como arquiteto paisagista! Quando o questionei, respondeu-me com o ar mais natural deste mundo: «Mas eu sempre gostei muito de química e de jardins!». Depressa também percebi que algumas saídas óbvias para quem se formava em literatura inglesa eram os mundos da banca, finança ou economia. Conheço um distinto Q.C. (Queen’s Counsel), uma espécie de advogado de alto gabarito, que se formara em literatura. Aliás, ainda hoje nos EUA ninguém vai para medicina sem ter primeiro completado outro curso nas ciências ou nas artes” (p.532). Fundamentalmente, a partir do lema do seu colégio – “Manners Makyth Man» -, em Oxford reteve “a afirmação (…), à época, revolucionária: não é o nascimento ou a fortuna, dinheiro ou propriedade que definem as pessoas, mas sim as suas maneiras e comportamento” (p.534).

4.Filho da média-alta burguesia de Lisboa (pai professor de Liceu, escrevendo manuais para serem adoptados em todo o país, mãe professora primária mas dando sucessivas explicações de várias disciplinas, com um irmão com necessidades especiais a nível mental), nascido em 1938, aquele que viria a ser professor catedrático de engenharia química na Universidade de Cornell, nos EUA, e galardoado com o 1º Prémio Ferreira da Silva da Sociedade Portuguesa de Química (1982), é, desde cedo, um cinéfilo inveterado (nas décadas de 1940-1960, ir ao cinema era quase “como ir à missa”, como que uma “obrigação religiosa” a cumprir estritamente, assinala). E, nesse âmbito, surpreende-nos com os apupos monumentais – que, em conjunto, realiza - a meio de filmes que, com os amigos, vê em cinemas de Lisboa -  o cinema São Jorge foi inaugurado em 1950, com 1900 lugares, então o maior cinema da Europa. Atuação do organista Gerald Shaw durante os intervalos; uma grande parte dos cinemas de Lisboa levava nomes da antiguidade clássica e eram projectados por alguns dos maiores nome de arquitetura do país -  e nos quais se apercebe (m) dos inúmeros cortes que a censura neles havia promovido (e como isso estragava as películas), ou, ainda, com a existência de filmes soviéticos que por cá passam, apesar de estarmos em pleno Estado Novo e de Portugal estar, então, sem relações diplomáticas com a URSS (entre os reparos que J. Calado faz ao nosso país, o da eletrificação, entre nós, ter ocorrido apenas 30 anos depois do verificado na URSS). Em concerto de Maria Callas em Lisboa, em 1958, os camarotes não só estavam lotados, como continham o dobro das pessoas face aos lugares disponíveis. Emocionado com a atuação da diva, Jorge Calado baixa ao camarim e a cantora promete – e virá a cumprir – enviar-lhe foto autografada a partir de Milão.
O deslumbramento com Shakespeare uma constante nos seus escritos de memórias, recordando-nos como expressões, frases, léxico que  se tornaram um património comum, por tantos usado, radica em obras do genial poeta: “«admirável mundo novo» (A Tempestade), «o som e a fúria» (MacBeth), «o inverno do nosso descontentamento» (Ricardo III), «o que está feito, está feito» (MacBeth), «um homem só morre uma vez» (Henrique IV, Parte II), «nem tudo o que luz é ouro» (O mercador de Veneza), «cegos guiados por um louco» (Rei Lear) [“como acontece ou aconteceu recentemente em tantos países, dos EUA, ao Brasil e às Filipinas…”, p.355]. Shakespeare inventou mais de 1700 palavras, mas ainda hoje não existe uma tradução para português das suas obras completas (Jorge Calado traduziu “Noite de Reis”).
 
5.Conheci testemunhos diretos e li muitos outros de quem vivenciou um período da vida nacional em que imensa gente, pela penúria de condições materiais, andava descalça no seu dia a dia e, por exemplo, meninos assim iam para a escola, mesmo no pico do inverno. O que não sabia, e que fiquei a saber por esta auto-biografia de Jorge Calado, é que, no final dos anos 20, nas cidades foi proibida - e a partir de 1947, dava direito a multa - a existência do pé descalço. Por outro lado, como esgotos só vieram a existir em meados do século XX, a higiene e segurança das pessoas que atravessavam as ruas ficava, não raro, do Portugal profundo à capital, à mercê de um balde despejado da janela. D. João VI, observo agora, impôs o aviso (gritado) “água vai”, acometido a quem fosse proceder a tal situação, para evitar que o transeunte fosse atingido. Mas a lei (qualquer lei, digamos assim), em Portugal, não costuma ter um cumprimento propriamente obstinado, pelo que muitos terão sido aqueles que sofreram os rigores pestilentos de épocas insalubres.
Na meninice de Jorge Calado (“cresci mimado num mundo feminino”, p.248), na qual não havia creches nem infantários (era frequente, nas lojas, ser-se atendido por crianças de 7 ou 8 anos; Charles Dickens que, nos seus livros, denuncia o trabalho infantil fora, ele próprio, obrigado a trabalhar aos 12 anos, com o pai e restante família presos por bancarrota), o padeiro passava em casa duas ou três vezes ao dia para o pão estar fresco – e, hoje, muitos franceses mantém o costume de ir à padaria duas a três vezes ao longo da sua jornada diária, refere. Como os frigoríficos ainda não se tinham generalizado, era, de igual sorte, preciso comprar alimentos quase todos os dias (dias, diga-se, de “racionamento”, em função da Segunda Guerra Mundial, os dos primeiros anos de vida de Jorge Calado – rarefacção de oferta alimentar que no Reino Unido só terminaria em 1954). E, sem excessivos recursos em quase todas as famílias, tudo, uma grande variedade de objectos, ia para compor (em Nova Iorque, as casas de reparação continuam a ter, em nossos dias, grande clientela, anota o autor destas memórias). Durante a década de 1940 e nos dois primeiros anos de 1950 não havia televisão, “mas a rádio era uma obsessão colectiva” (e em Portugal, sublinhe-se, chegou a existir uma rádio de propaganda nazi, a “Rádio Luso”, p.68). Naquela época, arroz de pombo era prato disponível nos menus dos mais variados restaurantes, sendo dieta prescrita a quem sofria de colite. O primeiro restaurante chinês de Lisboa data de 1957. Pensava-se, por aquela altura, que a radioatividade curava - e Portugal fazia gala de possuir as águas mais radioativas do mundo (p.281). A maior parte dos estabelecimentos comerciais fechava quinta-feira à tarde e abria aos Sábados de manhã.
Jorge Calado, colega de carteira de José Duarte (um dos homens que mais promoveu o jazz entre nós), pouco prolixo relativamente à vida política - entusiasmou-se com Sá Carneiro, mas nem PSD nem PS hoje lhe “dizem nada” -, chega à universidade já “sem praticar a religião”. O homem que, após assistir no Jamor a um 0-10 de Portugal frente a Inglaterra, se desligara de vez do futebol (ainda que em Oxford seja cumprimentado pelos colegas pelo desempenho da selecção no Mundial de 1966, em Inglaterra, o primeiro a ser transmitido em direto pela televisão), acredita que “a amizade é mais forte e longa do que o amor”, nos últimos anos, organizou mais de 30 exposições de fotografia em diferentes países europeus e nos EUA, concluiu o terceiro ciclo do ensino básico com 19 valores (em época em que as classificações, neste nível de ensino, eram de 0 a 20 e não de 1 a 5, como atualmente; “sempre gostei de estudar e de aprender”, gostava de ir à escola, confidencia), tendo tido uma professora da terceira classe que, filha de um ferrenho republicano, se chamava, justamente, Aurora Democrata (em 1950, o ensino liceal tinha 22 mil alunos; hoje, 2º e 3º ciclos tem próximo de 800 mil). Aprendeu a ler, sozinho, aos 4 anos, por causa do cinema e, aos 12, ia, sem companhia, à ópera (época em que era obrigatório traje a rigor, casaca ou smoking), “tetrasou” Romeu e Julieta, passando, então, a saber monólogos e duetos de cor. Expressa a sua “preferência ultrarromântica” por narrativas que acabam mal, mas é com Tim-Tim que ganha um companheiro de vida, com quem aprende a conhecer o mundo (em plena Guerra Mundial, Hergé vai pedir para ser pago em géneros alimentícios; o irmão de Hergé será preso pelos nazis, na Alemanha; de entre o mundo não-francófono, Portugal será o primeiro a adoptar e publicar Tim-Tim. Seria o padre Abel Varzim, que se viria a afastar dos ideais do regime do Estado Novo, a contactar Hergé). Grande amigo dos bichos, J. Calado conta-nos que os lepismas, «peixinhos-de-prata», são os mais antigos insectos do Universo, com cerca de 400 milhões de anos, regista o “costume bárbaro” com que se deparou na sua infância de “extrair os olhos aos pintassilgos porque se dizia que assim cantavam mais e melhores”, aduz que apenas nos anos 60/70 se estabeleceu o hábito de comprar o peru pelo Natal e diz que conhece melhor, hoje por hoje, os cães dos vizinhos do que estes (fundamentais, ao invés, na formação da pessoa, nas primeiras décadas da sua vida; agora, “só conheço uma pessoa da minha rua”). Leitor apaixonado e compulsivo – “foi através dos livros que apurei o meu sentido estético”; “não conheço melhor maneira de armazenar o pensamento” do que o livro e este faz rolar ideias, “é espírito feito papel”; “quando fiz 8 anos, pedi, como prenda, para ler um romance a sério”; falava e lia francês desde os 6 anos -, sem dicionário suficiente para encontrar sinónimos em todas as palavras de “Mestre Aquilino”, colecionaria tudo – selos, moedas, recortes de jornais, programas de concertos e espectáculos, discos, livros, fotos autografadas de cantores de ópera - com fervor e mostrar-se-ia sempre surpreendido por não haver classificação de cheiros, “como há com as cores do arco-íris e com o paladar, irmão do cheiro. Afinal, é voz corrente que se come com os olhos e com o nariz! Há 7 cores e cinco sabores que são doce, amargo, azedo, salgado e umami ou saboroso, como o queijo (…) Descobri que três reputados cientistas americanos tinham publicado em 2013 uma tentativa de classificação de cheiros, arrumando-os em dez qualidades: fragrante, lenhoso/resinoso, frutado, químico, mentolado, doce, pipocado, citrínico, pungente e podre, sendo estes dois últimos cheiros desagradáveis” (p.438).

Boa semana.


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