CONTORNOS E AMBIGUIDADES DE UMA ERA SECULAR (I) (CHARLES TAYLOR)

 

contornos e ambiguidades de uma era secular

De que tonalidades se faz um tempo? Não se furtará este a delimitadas fronteiras que procuram captá-lo (capturá-lo) com absoluta nitidez? E não avançamos, nós, também, para ele, para o tempo (furtivo), com categorias e esquemas rígidos de classificação (pré-formatados)? De resto, estaremos nós, habitantes deste tempo, em condições bastantes para o cartografar, seja porque gostaríamos de nos afastar para que a sua imagem refulgisse com insuperável transparência (e contingente é a nossa condição), seja porque procedemos a comparações que implicam colocarmo-nos em tempos remotos, épocas nas quais nos adentramos, necessariamente, com certa timidez, prudência e cautela? E será, este, ainda, um tempo uniforme, ou, como raramente sucedeu em universos menos interdependentes, temos a exata noção de como vivemos, à escala global, tempos diferentes, penetrados por colorações de sentido divergente?

            A demanda de esboçar um acervo de referências que tornem o nosso tempo inteligível, afinal uma impreterível necessidade (de racionalidade), não pode deixar de constituir-se como ambicioso móbil, enxertado que se encontra na precaridade de certezas absolutas que, ademais, vêm sendo abaladas pelos próprios enunciadores de leituras sem adversativas. No que à presença do religioso, em nossas sociedades, diz respeito, já se afirmou tudo – a morte de Deus, o desencantamento do mundo, uma secularização absoluta e irrevogável – e o seu contrário – a dessecularização, o regresso de Deus, o reencantamento do mundo. Mais: houve já quem, fixando-se, em uma aproximação inicial, em um dos pólos, no interior deste tipo de enunciados/descrições, tivesse feito mea culpa (epistemológico/metodológico) e caminhado para o seu exacto oposto. Há, adicionalmente, modos outros de matizar conclusões, de rever problematizações, de mitigar perentoriedades, e constroem-se, frequentemente, novos instrumentos analíticos, critérios de aferição que são reivindicados como mais pertinentes - do que aqueles que os precederam - para sistematizar a realidade.

            Conscientemente, como que seguindo a pegada de sólidos investigadores, tomamos/damos nota do que sugerimos serem os (possíveis) contornos e as (inevitáveis/inescapáveis) ambiguidades de uma estação humana (necessariamente complexa). Uma era secular? Sim (e cabe explicar porque “sim”), mas (e cumpre elucidar porque “mas”).

 

1.1.  Da semântica da secularização

 

Sendo a secularização, segundo Giacomo Marramao, um dos principais topos do debate político, ético e filosófico contemporâneo[1], esta, enquanto vocábulo, parece derivar, etimologicamente, de saeculum (de secus ou sexus) e conectar-se, de um modo ainda não totalmente explorado, a expressões como sexo, geração, idade do homem, tempo de governo, duração da vida, período máximo de cem anos, etc., e, outrossim, surgir, enquanto conceito, da confluência de várias tradições, a saber: a que resulta do diálogo entre herança greco-romana e o cristianismo (plasmada no direito canónico que separa o clero dos fiéis seculares, ou leigos); a que se impõe pela diferenciação entre o domínio político e o espiritual, fundada em argumentos de índole jurídico-política; a que se baseará em asserções historicistas e beba, directamente, no legado da Revolução Francesa. Claro está que o que aqui, em termos teoréticos, em esta contextualização, se delineia de modo claro e distinto “frequentemente se miscigenou nas suas histórias específicas”[2].

Em um conspecto cronológico, observaremos que o termo “secularizar” terá sido cunhado, em 1586, em um ensaio teológico-literário de Pierre Crespet e, ainda, nos escritos de Jean Papon e Pierre Grégoire “para qualificar a mudança do estado de clérigo regular para o de secular”[3], enquanto a palavra “secularização” terá surgido, em 1559, “aplicada ao arresto de bens da Igreja por parte da coroa”[4], alcançando especial eco após o duque de Longueville, enviado francês, no final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), às negociações da Paz de Vestefália, o ter utilizado como sinónimo da pactada transferência de terras episcopais para mãos régias.

Já no século XIX, poderemos assinalar que a entrada para “secularização”, no dicionário inglês de Oxford (1851), referenciava “uma moral que se devia basear no bem-estar da vida presente, excluindo todo o critério tirado da crença”[5], indício, claro, da oposição, já latente, entre o espiritual e o secular – como universos implicitamente separados ou opostos -, sendo que a ideia de progresso, muito presente à época, aplicada à natureza humana, fazia crer que a um estádio de necessidade do religioso para regular a vida (pessoal/colectiva), outro se sucederia impreterivelmente, em que a religião devia ser superada. Este transcurso “não poderia deixar de começar por ser compreendido, sobretudo do ponto de vista da Igreja Católica Romana, como uma agressão a direitos há muito estabelecidos”[6].

 

Efectivamente, após a influência, omnipresente, de religião, teologia, Igreja - característica da Idade Média -, o Iluminismo empreende uma verdadeira revolução cultural – com a filosofia e as ciências físicas[7] a já não partirem de pressupostos dogmáticos e a historiografia a deixar de ser um ramo da retórica e da ética, autonomizando-se por completo; o direito natural fundando a tolerância religiosa e a liberdade de crença; emergindo ideias como a de Estado de direito, ou a abolição dos privilégios de nobreza e clero a generalizarem-se; revalorização do indivíduo e codificação dos direitos naturais do Homem, confiando-os à protecção do Estado[8] -, visando “libertar todo o pensamento humano das autoridades de que ele dependia até aí”, minando-se o “cristianismo até aos alicerces”[9]. Para se referir a esta problemática, e tendo em consideração a indelével marca cristã que, durante cerca de dois milénios, se impôs a Ocidente, o sociólogo das religiões Jean-Paul Willaime fala no fim da “cristianitude” (uma expressão de Émile Poulat): “a ‘cristianitude’, quer dizer, esta formatação, esta forte impregnação das estruturas socioculturais das sociedades ocidentais operada pelo cristianismo, está desconstruída”[10]. Do que se trata, bem entendido, entendido, não é apenas do “fim dos laços entre a política e o cristianismo, mas também do fim das relações privilegiadas entre a cultura englobante e o cristianismo”[11].

            O processo de secularização, assim manifestado, traduzir-se-á, em suma, por uma afastamento da sociedade em relação à Igreja e por uma descristianização alargada: “alteração total da cultura em todos os sectores da vida [que tende] a explicar o mundo de modo imanente com todos os meios de conhecimento à nossa disposição e a ordenar racionalmente a vida ao serviço de fins práticos universais”[12] (Ernst Troeltsch). Se, originalmente, se concebe a secularização como a transferência do património eclesiástico para os homens e os Estados, a fim de que lhes dessem um uso profano, todavia buscar-se-á, bem mais fundamentalmente, subtrair ao religioso, à Igreja, à teologia


“todos os sectores importantes da vida humana – ciências, economia, política, direito, Estado, cultura, educação, medicina, assistência social -, para os confiar à responsabilidade e à disposição directas do homem, de ora avante ele próprio racional, maior, ‘secular’, profano. O mundo humano tornava-se assim, por seu turno, um mundo profano, ‘secularizado’”[13].

Por outro lado, a exigência de emancipação, colocada, pela Ilustração, ao humano como obrigação indeclinável, implicava, agora, não apenas que o filho se libertasse da tutela do pai, ou o escravo do amo, mas que todos os humanos se autodeterminassem, em vez de se deixarem resolver e, muito especialmente, veio a adquirir o significado de recusa de uma obediência cega face a um poder não legitimado.

Em um horizonte historicamente mais amplo, registava-se que


no decurso de um processo de ‘desmitificação’ complexo que se estenderá ao longo de séculos (…) o homem chega assim a tomar o poder sobre si mesmo: as experiências, os conhecimentos, as ideias originariamente procedentes da fé cristã (…) estão de ora avante postos à disposição da razão humana. Os diferentes sectores da vida são cada vez menos percebidos e ordenados a partir de um mundo de cima. São compreendidos em si mesmos, explicados a partir das suas próprias leis imanentes”[14].

 

Discípulo do socialista utópico Robert Owen, Jacob Holyoake cria, em 1846, a London Secular Society em prol da luta contra os poderes temporais da religião e em favor da secularização, chegando, em esse contexto, a forjar uma nova expressão – que é todo um programa ou ideologia: o “secularismo”, isto é, a (imposição e o inculcar de uma) interpretação e regulação da vida “prescindindo tanto de Deus como da religião”[15]. Em suma,

“não se errará muito se se defender que o conceito de secularização passou a conotar a perda, nas sociedades modernas ocidentalizadas, da posição-chave que a religião institucionalizada ocupava na produção e na reprodução do elo social e na atribuição de sentido”[16].

 

No século XX, porém, a questão da secularização passa, ainda, por “uma tentativa particular de compreensão da história Moderna, a partir da qual esta deveria ser entendida por referência a uma era anterior marcada por uma cultura cristã que, entretanto, se tornara problemática”[17], quer dizer, na caracterização da história moderna a partir da história do cristianismo, essencialmente contrapondo-se, a uma representação circular (pagã) da história, uma outra, linear[18], fundada na ideia cristã da encarnação de Deus e na marcha da história para a sua consumação futura: “queríamos com isso dizer nada mais nada menos que não é a tradição clássica, mas a tradição bíblica que inaugurou a visão do futuro enquanto horizonte de uma plenitude de sentido adveniente – primeiro para além, e finalmente dentro da existência histórica”[19] (Karl Lowith). Em esta leitura, a modernidade radicalizaria uma tendência que se encontrava no cristianismo:


“uma tal secularização consistiria, no essencial, numa imanentização histórica do fim da História: se o cristianismo ainda se teria de caracterizar a partir da alusão a um Reino de Deus que permaneceria transcendente à História, a modernidade basear-se-ia numa secularização deste mesmo Reino através da concepção da história como um percurso linear, imanente ao qual se encontraria um final que constituiria a sua redenção e sentido”[20].

 

Para Eric Voegelin, a secularização em causa não é, exclusivamente, da visão cristã da história, mas contém elementos, inclusive, da “hybris gnóstica pela qual se procuraria – anulando a salvação trazida pela transcendência, ou seja, nesse sentido, assassinando Deus – atribuir ao homem as condições da sua própria salvação”[21].

Diversamente das interpretações vindas de concatenar, Hans Blumenberg recusa a perspectiva da modernidade como derivação do cristianismo e sustenta a “auto-afirmação” desta: a modernidade representaria a definitiva ultrapassagem da gnose, completando-se, com ela, o labor que o cristianismo ortodoxo deixara por finalizar.

 

1.2.Da laicidade como forma de secularização

 

Realidade não absolutamente coincidente com a da secularização – a laicidade é sempre uma secularização, mas a secularização nem sempre redunda em laicidade[22] ou, sobretudo, em laicismo -, a laicidade tem, ao nível da etimologia, no radical laos (povo; do indo-europeu lei) a sua génese, reenviando-nos para um contexto de sociedades guerreiras, em que o povo, comunidade guerreira, era armado e dirigido por um chefe; palavra que passou, posteriormente, a designar “gente do povo” e dela derivando, pelo grego tardio, laikós, leigo e laico, em contraposição do clérigo, na hierarquia da Igreja (segundo alguns autores, laikós terá surgido, pela primeira vez, pela pena do Papa Clemente, no ano de 96, para se referir a um fiel, por oposição a diácono ou padre, mas, ainda no século XIII o seu uso não passaria a esfera dos eruditos, popularizando-se, contudo, a partir do século XV; no Oxford English Dictionary a entrada laic teve a sua estreia em 1562) e postulando, na modernidade, para a organização social e o Estado, em particular, obrigações de faccere e não apenas de non faccere, características positivas e não de neutralidade ou mera abstenção (como requeria a – as teses da - secularização), no moldar de um mundo (afastado/afastando-o do religioso): pretende-se, pois, laicizar a sociedade, isto é, “criar-se as condições (culturais, político jurídicas e sociais) necessárias à concretização das promessas emancipatórias do indivíduo-cidadão”[23].

Embora se possa definir laicité como “operação pela qual a instituição Estado se separa das igrejas, reconhecendo a liberdade religiosa e colectiva nessa separação implicada e, do mesmo passo, reconhecendo ao Estado o direito de impor limitações à prática religiosa que transcenda as liberdades de consciência e de cultos”[24], e, por conseguinte, “a laicidade não é, pois, anti-religiosa de modo explícito e necessário”, ela “não exclui esse antagonismo”[25] (embora aí, seja preferível designá-la de “laicismo”).

Se, até ao século XX, quase não se encontram, em Portugal, referências ao Estado laico ou a laicismo – a primeira ocasião do seu uso remontará a 1885 e ao periódico republicano e anti-clerical O Século -, desde o início de tal centúria, porém, toda a semântica em torno da laicidade – laicização, laicizar, laicismo, Estado laico – servirá de arma de arremesso e jogará um papel na luta “contra a influência do clero e da Igreja católica e, nas suas versões mais radicais (agnósticas e ateias), contra a própria religião”[26]. Ao ouvido católico, tais achados soarão a imprecações (ímpias).

O processo laicizador afirmar-se-á, de modo prioritário, no domínio da Educação (embora, ainda, de modo fundamental no combate pela desconfessionalização do poder político), âmbito privilegiado (este, o da educação) para “socializar e interiorizar ideias, valores e expectativas”[27] (sobre o mundo, a vida, mas também a própria morte), ambição, assim, denunciada – mesmo que reduzida a uma moral social e cívica (teríamos, deste modo, um “Estado pedagogo”, um “Estado reitor”). Diriam, à época, importantes autores republicanos, defensores da laicidade, por entre uma ironia convicta, que se a neutralidade religiosa devia ser garantida, o mesmo não se podia afirmar da neutralidade filosófica e política. De aí que “a filosofia perene”, filiada em Tomás de Aquino, devia ser refutada, e a laicidade, enformada por um vasto acervo de filosofias – as chamadas “filosofias da laicidade” -, muito mais que um marco/regulador institucional, tornava-se uma ideologia (pela qual passavam traços como: uma concepção evolucionista acerca da origem do homem e da sociedade[28]; uma teoria anti-divinista sobre as origens do poder; a confinação do religioso à esfera privada; a afirmação do papel activo do Estado perante a sociedade civil; combate ao atomismo social e promoção da cidadania)[29].

Nesta medida, “a laicidade também foi vivida, por muitos, como um proselitismo”, o que acabará por “secundarizar a racionalidade crítica que o seu discurso manifesto proclamava. Pode mesmo dizer-se que a sobredeterminava, com laivos de sacralidade secular”[30]. Em alguns casos, com efeito, “o proclamado racionalismo crítico do movimento transformar-se-á em cientificismo e a intenção de se salvaguardar a liberdade de consciência gerará novas formas de intolerância”[31]. O objectivo bem claro: fazer “vingar um programa reivindicativo de inequívoco sentido descristianizador”[32]. E como, não raramente, sucedeu em outros momentos do nosso devir, os movimentos mais extremados tenderam a alimentar-se mutuamente:


“os fundamentalismos e os integrismos (cristãos, muçulmanos, budistas, hindus) nasceram, em boa parte, porque a modernização começou a relegar o religioso para a esfera da sociedade civil e a secundarizar o seu papel instituinte das normas morais e das leis que pautam a vida individual e social”[33]

 

Em uma palavra, estávamos em presença, com o “laicismo” isto é, “atitude ideológica e voluntarismo prático, é a utilização da laicidade como instrumento de inibição ou de redução da expressão do religioso nas sociedades”[34], de uma outra fé (como intitulou o seu livro (o laicista) Ferdinand Buisson [A fé laica]), tanto mais forte, atente-se igualmente, quanto a resistência da Igreja, “em aliança, implícita ou explícita, com as forças mais retrógradas da sociedade [se] opôs à realização política de ideias e valores modernizadores”[35]. Ora, tal (oposição), sublinhe-se devidamente, era um non sequitur, uma consequência não necessária da premissa da secularidade:


“uma secularidade (aquiescência ao mundo) na linha da fé cristã teria sido possível (…) A fé cristã, ao reatar com as suas origens, nada tinha a objectar à ‘autonomia’ das esferas seculares da filosofia e das ciências, da arte e da cultura, e (…) podia [-se] perfeitamente viver a fé cristã neste mundo (…) ‘laico’, ‘secular’”[36].

 

Em abono desta interpretação, atente-se na - amadurecida e posterior a este suceder - declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa e a separação Estado-Igreja[37]. Sobre ela se pronunciará, de modo elucidativo, José Casanova: “a declaração da Igreja Católica, no Vaticano II, acerca da liberdade religiosa e a subsequente aceitação da separação constitucional entre a Igreja e o estado nos regimes democráticos recentes por todo o mundo Católico constituem uma confirmação directa e indirecta do carácter ‘providencial’ desta tendência estrutural moderna”[38].

O Concílio Vaticano II recusa a identificação da Igreja com regimes e sistemas políticos, ou com partidos e programas políticos, em nome da sua universalidade. Exorta os católicos a intervirem no mundo político reserva, aliás, para os leigos essa participação - e impõe a desconfessionalidade dos partidos: “a ninguém é permitido reivindicar exclusivamente para si a autoridade da Igreja, em favor do seu próprio parecer”[39]. Em todo o caso, não deixa a Igreja de oferecer critérios de discernimento, opções éticas irrenunciáveis que um católico deve assumir politicamente, a saber: defesa do direito à vida, desde a concepção até à morte, com repúdio do aborto e da eutanásia, bem como a defesa dos direitos do embrião; promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico, visando a protecção da sua unidade e estabilidade; tutela social de menores e repúdio de formas de escravidão, como a droga ou a prostituição; defesa do direito à liberdade religiosa; promoção de uma economia ao serviço da pessoa e do bem comum, no respeito pela justiça social e pelo princípio da solidariedade; empenho pela paz, com recusa do terrorismo e da violência[40].

Se nas culturas paleolíticas o Outro Sujeito, de quem se depende, na tentativa de superar a natureza e fazer cultura, com um ethos (unificador) a que obedecer, é identificado nos próprios mundo natural (culto dos elementos) ou social (culto dos antepassados e dos heróis), a revolução neolítica parece indiciar uma viragem para o transcendente (o culto dos astros, base das civilizações “dos Grandes Rios”). A par de um henoteísmo solar, o sujeito submeter-se-á, ainda, ao culto dos Soberanos, pelo que a viragem transcendente não será consumada. É em este contexto que se dá a “ruptura bíblica”: “o Outro Sujeito é aí identificado ‘fora do mundo’ e fora da história. Medido pela peculiar relação a um Outro absolutamente Transcendente, o homem pode agora de vez ‘coisificar’ quer a Natureza, mesmo dada que é, quer, a fortiori, a Cidade, enquanto construída”[41].

Quer isto dizer que o monoteísmo judaico-cristão está na base da uma secularização primeira: nem tudo é Deus; só Deus é santo (“o imanente torna-se [isso sim] mediação para o transcendente”[42]).

Marcel Gauchet, por seu turno, alude, também, ao nascimento do monoteísmo de Israel, bem como ao papel desenvolvido pelo cristianismo, com o seu fundador a libertar o mundo “e abrir-lhe os horizontes de autonomia (…) ao fazê-lo entrar num regime de alteridade definitivo”[43] – a que soma a emergência do Estado – como os factores determinantes para o processo de “desencantamento do mundo” enquanto “esgotamento do reino do invisível”. 

Contudo, é preciso não ignorá-lo, a “religião da saída da religião” é aquela em que o afastamento, por uma sociedade, do religioso assume tais contornos que este perde uma função claramente definida: a religião deixa de ser estruturante “na disposição das relações sociais, na definição da forma política, na determinação e consagração dos fins da acção política (…) os crentes na religião da “saída da religião” já não têm a sua vida social, material e mental, moldada pela religião”[44].

 



[1] Apud. Fernando CATROGA, Entre deuses e césares. Secularização, laicidade e religião civil, Almedina, Lisboa, 2010, 47. As citações traduzidas para português, a partir de obras escritas em outras línguas, presentes em este trabalho, são da minha responsabilidade.

[2] Ibidem, 49. A teorização da origem tradicional do conceito “secularização” deve-se a Reinhart Koselleck.

[3] Ibidem, 56.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem, 60.

[6] Alexandre SÁ, Da teologia política à secularização…und zuruck, in José ROSA (org.), Da autonomia do político. Entre a Idade Média e a Modernidade, Documenta, Lisboa, 2012, 326.

[7] Jean d’ORMESSON, O mundo é uma coisa estranha, afinal, Guerra e Paz, Lisboa, 2015, 58: “Laplace (…) apresenta a Napoleão a sua Mecânica Celeste, inspirada nos trabalhos de Newton (…) O imperador comenta que Deus não aparece em lado algum do seu sistema do mundo. Sire – respondeu Laplace -, Deus é uma hipótese que julguei poder descartar”.

[8] Hans KUNG, O cristianismo. Essência e história, Temas e Debates/Círculo de Leitores, Lisboa, 2012, 633.

[9]Segundo Hans Kung, “os fundamentos longínquos deste processo de secularização e de emancipação haviam sido lançados (…) na Alta Idade Média. Tomás de Aquino, com a ajuda de Aristóteles, reconhecera uma autonomia – limitada, decerto, mas real – à razão perante a fé, à natureza perante a graça, à filosofia perante a teologia, ao Estado perante a Igreja. Esta construção em dois andares – o natural e o sobrenatural -, muito frágil, já fora abalada por um humanismo não ascético e um Renascimento que desfrutava das alegrias cá na terra, sublinhando, em especial, de forma inédita e invocativa da Antiguidade, a parte humana e a autonomia da cultura (arte, literatura). No entanto – para grande escândalo, mais tarde, de espíritos laicos da qualidade de Nietzsche -, a Reforma de Lutero (depois a Contrarreforma) contrariara semelhante evolução, antes de ela ressurgir no século XVII (…) como fé (…) na razão”, in O cristianismo…, 632.

[10] Jean-Paul WILLAIME, As condições socioculturais da religião na ultramodernidade contemporânea, in Anselmo BORGES (coord.), Deus ainda tem futuro?, Gradiva, Lisboa, 2014, 33.

[11] Ibidem. Sobre a perda que representa a ignorância da sintaxe cristã, assim se expressa o grande intelectual europeu Claudio Magris, em Claudio MAGRIS, A história não acabou, Quetzal, Lisboa, 2011, 79: “Em Itália e também noutros países multidões devotas e fervorosas enchem de vez em quando as praças e grandes ocasiões rituais despertam o momentâneo interesse da gente e dos média, mas as igrejas dia a dia se esvaziam, sacramentos como o baptismo e o matrimónio religioso caem cada vez mais em desuso, e sobretudo desaparece a cultura cristã e católica, o conhecimento elementar dos fundamentos da religião e inclusivamente as mais clássicas passagens e personagens evangélicas, como se pode constatar frequentando os estudantes universitários. Trata-se de uma grave mutilação para todos, crentes e não crentes, porque essa cultura cristã é uma das grandes gramáticas e sintaxes que permitem ler, ordenar e organizar o mundo, ditar o seu sentido e valores, orientar-se no meio da feroz e insidiosa balbúrdia do viver”.

[12] Apud. Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem, 633.

[15] Fernando CATROGA, Entre deuses…, 60-61.

[16] Ibidem, 62.

[17] Alexandre SÁ, Da teologia política…, 327.

[18] Cf. Ibidem, 329. Se o teólogo Óscar Cullman perfilha a visão de uma separação radical entre concepção circular pagã da história e concepção linear cristã da mesma, já um autor como Sandro Mazzarino a contesta.

[19] Apud. Alexandre SÁ, Da teologia política..., 328.

[20] Ibidem, 328-329.

[21] Ibidem, 330.

[22] Anselmo BORGES, Prefácio, in Fernando CATROGA, Entre deuses…, 10.

[23] Fernando CATROGA, Entre deuses…, 298.

[24] Luis MATOS, Para uma tipologia do relacionamento entre o Estado e a Igreja, in António FERREIRA e Luis MATOS (org.), Interações do Estado e das Igrejas. Instituições e homens, ICS, Lisboa, 2013, 46.

[25] Ibidem.

[26] Fernando CATROGA, Entre deuses…., 297.

[27] Ibidem, 275.

[28] Cf. Jean d’ORMESSON, O mundo é…, 68: “Aquilo que confere à teoria da evolução das espécies a sua intensidade dramática (…) [é] a eliminação radical de toda a visão de conjunto, de toda a vontade exterior, de toda a intenção divina e de toda a ideia de finalidade. A criação divina do mundo trazia consigo uma ideia de história determinada no seu conjunto sob a forma de um projecto e orientada para um fim estabelecido desde o começo. A teoria de Darwin substitui essa odisseia divina, essa teodiceia por uma descendência com modificações ínfimas, aleatórias e repetidas onde sobrevivem os mais aptos e aqueles que se adaptam melhor. A criação transforma-se em emergência e pode finalmente ser pensada sem recurso a um Criador”.

[29] Fernando CATROGA, Entre deuses…, 321.

[30] Ibidem, 322.

[31] Ibidem, 323.

[32] Ibidem, 327.

[33] Fernando CATROGA, Entre deuses…, 287.

[34] António FERREIRA, Laicismo ideológico e laicidade entre a ideia de tolerância e a tentação totalitária, in Theologica, 2ª série, 2004, 323.

[35] Ibidem, 326.

[36] Hans KUNG, O cristianismo…, 699.

[37] Cf. Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, in Concílio Ecuménico Vaticano II. Constituições, decretos, Declarações e discursos pontifícios, Braga, SNAO, 1966. Mais se plasma no Decreto sobre a Actividade Missionária da Igreja, 12: “A Igreja não deve, de maneira nenhuma, imiscuir-se no governo da cidade terrena”, in Concílio Ecuménico Vaticano II. Constituições, decretos, Declarações e discursos pontifícios, Braga, SNAO, 1966. Tal não significa que essas realidades terrenas não dependam de Deus. Cf. Gaudium et Spes, 36, in Concílio Ecuménico Vaticano II. Constituições, decretos, Declarações e discursos pontifícios, Braga, SNAO, 1966.

[38] Apud.TeresaTOLDY, A secularização da sociedade portuguesa no contexto das modernidades múltiplas, in Didaskália XLIII, 1.2, (2013), 27.

[39] Gaudium et Spes, 43, Concilio Ecuménico Vaticano II. Constituições, decretos, Declarações, Documentos e discursos pontifícios, Braga, SNAO, 1966. Em estudo realizado para o concreto caso português, Teresa Clímaco Leitão mostra como, face revolução portuguesa de 1974-1975, as posições da Santa Sé, do episcopado e dos leigos sobre a (eventual) formação de partidos democratas-cristãos redundaram na preferência pela presença dos cristãos nos demais partidos criados a apoiar a constituição de partidos confessionais, conscientes do incontornável pluralismo político entre os leigos católicos portugueses. Cf. Teresa LEITÃO, A Igreja Católica e os partidos democratas-cristãos na revolução em Portugal (1974-1975), in António FERREIRA e Luis MATOS (org.), Interações…, 143 e ss.

[40] Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao empenhamento e ao comportamento dos católicos na vida política, II, Paulinas, Lisboa, 2003.

[41] José MIRANDA, «Omnia ad usum hominum». Tipologias cultu(r)ais e ética antropocêntrica no De correctione rusticorum de S.Martinho de Dume, in Theológica, 2ª Série, 47, 524.

[42] Ibidem.

[43] Isabel VARANDA, “O processo de desencantamento do mundo com referencial ambíguo da modernidade”, in Didaskalia, XXXVIII (2008), 509.

[44] Miguel MORGADO, “Público e privado: a Religião entre a ‘Saída’ e a ‘Entrada’”, in Didaskalia XLIII, 1.2 (2013), 273.


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