ILHA DENSA DO HUMANO

 

ILHA DENSA DO HUMANO ("OS ESPÍRITOS DE INISHERIN")
“Há coisas que são insuperáveis e ainda bem”, atira Pádraic, no diálogo último do filme, até parece – um reatar de – uma conversa normal, com Colm Doherty, depois de este último ter posto fim à vida do seu pequeno burro e, em revanche, aquele incendiar a casa de Colm. Fica sem um contorno claro se o que não se consegue superar é uma amizade profunda – que Doherty, em vista de um projecto de conceber uma música definitiva que o legue à posterioridade pretende, acabando com as conversas “chatas” do “aborrecido” Pádraic, passando esse tempo a dedicar-se à arte - ou se a inimizade entretanto vindoura – que desagua numa casa lançada em chamas. Pádraic afirma lamentar que Doherty não se tivesse mantido em casa durante o incêndio: se o “amigo é metade da minha alma”, que parte de si pretenderia assassinar (suicidar)? Sendo a amizade profunda, e de longos anos, ainda que o projeto de da morte se libertar por obras valorosas seja um leit-motiv para um corte nunca aceite (pelo amigo), ousará o espectador questionar-se se aquela recusa não consistirá, ultima ratio e a contrario, em não aguentar a morte por não ter nela o amigo? Se o objectivo é dispor de mais tempo para a composição (musical) e não ter desperdício em conversas banais, porque manter, em permanência, esse tipo de relacionamentos com outros tipos, especialmente execráveis, como o polícia daquela (parte da) ilha? O tema fundamental do filme é a amizade – negada, em rotura, ou impossível de quebrar e reafirmada, em última instância? -, ou a morte face à qual o desespero ronda em permanência (os planos, de a velha, de negro, projectando augúrios e falecimentos, com os personagens à beira do abismo, tanto no plano existencial, como geográfico/físico…penhasco à beira do mar, pedra em cima de um lago)?
Em um diálogo explícito durante a trama: o que perdura, insiste Colm? Mozart, que é lembrado 200 anos depois…. Simpáticos? (como seria Pádraic, o simpático da ilha). Quantos havia então, e de que nomes nos lembramos? Sim, sim, a minha mãe era simpática, e eu lembro-me; o meu pai era simpático e eu lembro-me; a minha irmã é simpática e eu lembro-me…O que conta verdadeiramente (?), interroga o filme (que parece acentuar uma dicotomia estranhamente instalada em alguns sectores da sociedade entre gentileza/simpatia/bondade e proficiência intelectual, capacidade/desempenho artístico). E Siobhán (irmã de Pádraic) corrigindo (humanizando) Doherty (e as suas pretensões) visa a incorreção da datação da vida de Mozart que aquele promovera.
Colm coloca termo à vida do burro que era única companhia, irmã viajando para outra parte da ilha e morrendo também Dominic (o tolo da ilha, porventura o último, mas também capaz de acompanhar o desamor que Pádraic vive), de Pádraic (a interrogação sobre como Pádraic morreu perdurará). Não querendo a amizade de Pádraic, porque Doherty pretende, afinal, que não lhe reste companhia outra (?), tal como este sucumbe a enviar um estudante que viajara até à ilha, inventando uma história de morte de seu pai para o fazer regressar a casa (e assim o retirar de Doherty; “pensava que eras o mais simpático da ilha, e afinal nunca tinha visto nada tão cruel”, assinala Dominic no seu primarismo verdadeiro; uma personagem que me fez recordar o Kijichiro de “O silêncio”, de Scorsese). Há quase uma dimensão perversa de jogo também, entre ambos, com Pádraic, ainda que incentivado pela bruxa (os “maus espíritos”), a poupar, finalmente, a cadela de Colm, sua última companhia – por um lado, os animais parecem ser para Pádraic, o que a composição e a música relativamente a Doherty; por outro, a dimensão empática última parece não ter desaparecido, resultando daqui nova indagação acerca do que permanece e do que é mutável em cada um (identidade? O mesmo ou diferente com os anos, ou o mesmo e diferente com o passar do tempo e os eventos que a vida traz?).
Diferentes personagens são especialmente cruéis nos diálogos que mantém entre si: “é por isso que ninguém gosta de ti” (o polícia, pai de Dominic, que dele abusa e espanca, dirigindo-se a Siobhán – que de seguida, face ao lago, com a velha de preto, morte encarnada, fazendo lembrar a morte de “O sétimo selo”, de Bergman, flirta, ou faz-se o espectador acreditar, com o colocar termo à vida, mas Dominic aparece pedindo-a, com uma candura que contrasta com o demais, em namoro; o riso escarnecedor, face ao suplício que Pádric vive pelo corte abrupto da amizade por parte de Colm, da bruxa; os diferentes epítetos trocados entre os homens no bar (e a cena cómica do padre em linguagem obscena a sair do confessionário aos berros com Doherty; a comunidade enche a Igreja local, mas tal não parece influenciar as vidas). No retrato social, há um tu para tu da irmã de Pádraic com Doherty (como se jogassem num campeonato intelectual/cultural à parte; “a tua irmã pensa, tu não” dizem a Pádraic no bar, ainda que Siobhán consiga um equilíbrio e inteireza libertadores), enquanto a coscuvilhice é o menu diário da (aparente) única loja comercial daquele lugar.
Um lugar que é uma ilha (Irlanda, 1923, tempo de guerra civil), envolvendo-nos, em permanência, em um ambiente claustrofóbico, ansioso, como que dando-nos a tocar aquela desolação, desespero e crueldade – que atinge o apogeu no cortar de dedos, na automutilação de Doherty, mas para culpar Prádaic de tal facto; se o trágico significa o não se conseguir parar os acontecimentos, então aquele corte abrupto inicial, aparentemente absurdo, daquela amizade será levado até ao limite da hostilidade – patente (e na possibilidade de leitura dos homens-ilha, da solidão como dor profunda e omnipresente também) nas quase duas horas do filme, ainda que se o “há coisas insuperáveis e ainda bem” for lido em chave de que a amizade imensa é inultrapassável (apesar de tudo; todavia, do ponto de vista da intenção do realizador e argumentista, sabemos o corte, a rotura como o inultrapassável, com a guerra final entre Doherty e Pádraic a ser tudo [e não tanto no sentido da perda de amizades como tabu, mais ou menos masculino, mas como dor na cesura de uma relação], mas o objecto deixado, agora, nas mãos do espectador permite semear inquietações e dúvidas) por ali possa, paradoxalmente, passar “a possibilidade de uma ilha” que Houellebecq, fazendo-nos beber igualmente o cálice até ao fim, deixava entreaberta (Doherty vai buscar ao solo Pádraic quando o polícia o golpeia, e volta a fazê-lo, a defender Padrádic, no pub, do mesmo homem).
Na semana em que uma investigadora portuguesa consegue um relevante financiamento europeu para a “filosofia de cinema”, aqui está um filme com amplo conjunto de camadas a explorar. Denso, profundo, substantivo. Drama e tragédia superam qualquer circunstancial riso na sala (foi-me difícil, com raríssimas excepções ao longo de 120 minutos encontrar motivo de comédia). De Martin McDonagh, “Os espíritos de Inisherin” – com Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon, Barry Keoghan nos principais papéis.

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