'MEMÓRIAS EM TEMPO DE AMNÉSIA' (ÁLVARO DE VASCONCELOS)

 

Memórias em tempo de Amnésia. Uma campa em África”, de Álvaro Vasconcelos

 
1.Moçambique, Beira, 1960, casa de colonos portugueses (brancos): um criado negro deixa cair um copo, que se parte. A patroa envia-o à esquadra com um bilhetinho: as pancadas, como cominação da negligência do empregado, devem ser aplicadas nos pés, para aquele poder voltar rapidamente para casa em condições de, no imediato, prosseguir labuta.
Poucos anos antes, na mesma Beira, seria Álvaro ainda uma criança, entra (o menino) em casa esbaforido: acabara de assistir ao espancamento de um negro, por meia dúzia de brancos, apenas por aquele ter respondido aos insultos que sofrera (o simples tratamento por tu podia dar lugar a castigo físico, naqueles tempos e lugares do império, assinalara Dulce Maria Cardoso). Esmagado, conta ao pai o que acabara de presenciar – e este, pressentimos um encolher de ombros, é assim que a vida é, nada há a fazer, adiante -, a convicção humanista ter-lhe-á ficado, sem fissuras, desde então.
Estamos, é preciso sublinhá-lo sempre, vários anos pós-II Guerra Mundial. Mas aprendêramos algo do falhanço de Gobineau? Espantosamente, nada - o racismo permanecia. Se no apartheid sul-africano, em 1950, o casamento com pessoas negras poderia implicar uma pena de prisão, até sete anos, aos brancos – e estes faziam, concomitantemente, turismo sexual em Moçambique, a “pureza da raça” ficava para depois -, no banco de jardim da Beira nunca houve uma placa que interditasse a presença de um negro (mas nunca nenhum se sentou “a meu lado” enquanto “ali vivi”, conta Álvaro Vasconcelos). Ao apartheid de jure na África do Sul, sucede um apartheid de facto em Moçambique, garante o especialista em Relações Internacionais, em “Memórias em Tempo de Amnésia. Vol. I. Uma campa em África” (Afrontamento, 2022).
Os meus pais, se lhes perguntassem, diriam que trataram bem os empregados que tiveram – e, de facto, nunca os mais repugnantes dos actos, de coação física ou de outra natureza (como então, noutros lugares e lares, sucedeu), puderam ser observados lá por casa. E, todavia, os criados, como então se dizia, nunca “connosco” comiam (não se sentavam à mesma mesa), e a sua comida era, sucessivamente, peixe seco com farinha, quando não farinha só.
Em tempo de “trabalho forçado” (até ao início dos anos 60, plasmado em lei), o medo negro de não possuir as cadernetas preenchidas (que confirmassem ter trabalhado – e, portanto, indicando que (aquele) não era o “relapso”, o “preguiçoso” do preconceito com que o(s) haviam assestado) tomava o quotidiano, para aqueles, ameaçador, ansioso, insidioso, angustiante, sendo que, para mais, mesmo crimes (no limite, o próprio homicídio) sobre estes cometidos ficavam, muitas vezes, impunes, não havia, na prática, a quem recorrer, as autoridades, não raramente, ‘fechavam os olhos’ aos abusos de quem veio “civilizar” – só o facto de se pretender civilizar parte, já, evidentemente, do pressuposto de que o outro precisa de ser “civilizado”, qual “bárbaro” ou “selvagem” (ou de “raça inferior”; Álvaro Vasconcelos remete a discursos de Salazar nos anos 30, retomados nos anos de 1950, para notar como a “teoria das raças” era acomodada pelo Estado Novo). Com grilhetas nos pés, amarrados uns aos outros, segunda metade do século XX, negros constroem estradas em Moçambique, em pleno império português. Terrível o poema Grito negro, de José Craveirinha: “Eu sou carvão! /E tua arrancas-me brutalmente do chão/e fazes-me tua mina, patrão. /Eu sou carvão! /E tu acendes-me, patrão, /para te servir eternamente como força motriz, mas/eternamente não, patrão…/Eu sou o teu carvão, patrão”.
 
2.Esta evocação de um conjunto de cenas chocantes contidas em “Memórias em tempo de amnésia” permite a filiação da recensão ao modo como Álvaro Vasconcelos não apenas principia cada capítulo deste seu primeiro volume de memórias – como um realizador, como o cinéfilo que é e faz close-up sobre momentos/circunstâncias fundamentais para nos introduzir na reflexão seguinte -, como recorre a um vasto acervo de referências cinematográficas e literárias – uma das avós, pedindo-lhe opinião política: “tu, que leste tudo…” – para conseguir, e a meu ver o exercício é claramente bem sucedido, transmitir o sentido de empatia (com, literalmente, a pele do outro). De referências (absolutas) africanas como José Craveirinha (integração das vozes poéticas que nos chegam do fundo do sofrimento africano nos nossos manuais que tomam o assunto na escola (?)) – “Bem fardados de avental/obedientes nós até vamos a correr/depressa entregar o papelinho da patroa. /E chegamos à esquadra/ao posto/ou ao comissariado todos ofegantes/e nos ouvidos a ordem: - vai depressa rapaz/não demores ouviste -/E o polícia que veio com a terceira rudimentar/lá da aldeia talvez minhota/talvez transmontana tanto faz/depois de soletrar bem soletrado o papelinho/entra imediatamente no esquema/chama o sipaio e manda somar/somar bem os algarismos com força/dando-nos com uma palmatória/algumas lições de aritmética/com 20 na mão esquerda/e mais 20 na mão direita” – a mais longínquos romances que tratam de idênticos problemas, como aqueles que Toni Morrison assina, ou, por exemplo, no que à guerra diz respeito, canções de Dylan fixam.
 
3.A tese central exposta em “Memórias em tempo de amnésia. Vol.I. Campa em África” é a de que o mestiço não é nenhum culminar de uma fraternidade de cunho luso-tropicalista [seguindo as teses do sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, expostas, desde logo, nos primeiros anos do século XX, e com as quais, de imediato, o Estado Novo quis revestir-se; para dar um único exemplo de um autor conservador que nega, também, as ideias luso-tropicalistas, leia-se “O Império Marítimo Português 1415-1825” [reedição em 2018, nas Edições 70], no qual o historiador Charles Boxer sentencia: "há uma grande quantidade de provas que contrariam a moderna posição portuguesa de que o Brasil foi um caso em que não houve derramamento de sangue, caracterizado por uma instintiva simpatia e compreensão dos ameríndios, que as outras nações colonizadoras na América, quer se tratasse da Espanha, da Inglaterra, da França ou da Holanda, não possuíam", p.104] mas, bem mais, o resultado da violação massiva de africanas por parte de portugueses (já em “O retorno” [Tinta da China, 2012], livro marcante de Dulce Maria Cardoso sobre a condição de retornado(s), podia escutar-se o narrador: “até o preto que durante cinco anos nos engraxava os sapatos ao domingo de manhã avisou a minha irmã numa das últimas vezes que o vimos, cuidado menina que ainda te fazem o mesmo que os brancos fizeram às nossas mulheres”, p.47). Considerou o especialista em Relações Internacionais, antigo Diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (2007-2012), Investigador Convidado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (2014-2015), investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra, Diretor do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (1980-2007) de modo, evidentemente, não isento de controversão e coloca(n)do a(o) debate público: tal constatação, a do real significado do mestiço e todas as consequências daí advenientes, só não emergiu no espaço público português no pós-25 de Abril, porque aqueles que fizeram a revolução tinham sido também - mesmo que (igualmente) muito(s) vítimas do Estado Novo e contra a sua vontade - interventores pelo Estado português em África – e por aquilatar, portanto, a sua participação em tais realidades. De novo ressalta, nesta inquirição, a intensa complexidade com que, em qualquer olhar atento, se cumula a humana condição.
Terrível, ainda neste contexto, o poema de Rui Nogar (condenado, pelo conteúdo da sua poesia, tal como José Craveirinha, em Tribunal Militar), “Xicuembo: eu bebeu suruma/dos teus ólho Ana Maria./eu bebeu suruma/e ficou mesmo maluco […]/eu não pode mais saber/que meu Ana Maria minhamor/é mulher de todo gente/é mulher de todo gente/todo gente todo gente/menos meu minhamor”.
Um segundo ponto nuclear neste ensaio – e face ao qual o próprio autor refere que “pode custar a ler” a muitos portugueses…por exemplo, nas mesmas circunstâncias daquele que assina “Memórias em tempo de amnésia. Uma campa em África”, que aqui nos surge, em qualquer caso, com uma espécie de - sensível e com uma abordagem familiar contida e elegante, mas sem ocultar - “consciência culpada de classe”: mesmo vítimas também, e prejudicados pelo Estado Novo (na Beira, Humberto Delgado obtém a maioria dos pouco mais de 4 mil votos depositados nas urnas, nas presidenciais de 1958; atente-se a uma imensa minoria com direitos face a uma esmagadora maioria sem direitos alguns), “todos os colonos” obtiveram lucro(s) dessa sua situação (de “senhores” face ao inumerável contingente de servos).
 
4.Álvaro Vasconcelos recusou alistar-se e combater pelo Exército português e/ou em nome de Portugal (a sua recusa dos nacionalismos, de supostas superioridades nacionais é, vastas vezes, reiterada neste livro) e exila-se na África do Sul. Em todo o caso, neste âmbito, o autor, décadas volvidas, não deixa de partilhar, em inteira honestidade intelectual, uma interrogação de recorte agostiniano: “seria a [minha] recusa da guerra um ato de coragem ou medo de jazer morto a arrefecer, «de balas trespassado», como escreve Fernando Pessoa em Menino de sua mãe?» (p.129). Isto, enquanto não deixa de tocar feridas, convicções e (que graus de) liberdade(s) (?) de outros: “como podiam aqueles que tinham consciência do horror do colonialismo, do racismo, aceitar entrar em guerra para o perpetuar?” (p.129).
Homem de esquerda, Álvaro Vasconcelos distancia-se da posição que observara, à época, entre os militantes comunistas de não deserção (e de alimentar um clima desfavorável a tal postura) e de procura, ao invés, de infiltração no exército português.
Aqui, importa concatenar estas memórias, de novo, com as vozes transportadas por Dulce Maria Cardoso em “O retorno”, por exemplo dos que foram colonos na “África portuguesa” e que se sentiram tão constrangidos, pela miséria absoluta que viviam (antes da partida), a sair da “metrópole” (atenta escuta de cada caso dos que se viram/pensaram/sentiram sem alternativa do que embarcar para Angola, Moçambique e Guiné (?)) como os “compelidos” militarmente a irem para África (para uma guerra que, muito em especial estes últimos, não pediram, e em que tantos pereceram [cerca de 9 mil soldados portugueses, entre 1961-1974, perderam a vida em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau], ficaram feridos ou com outras maleitas [cerca de 100 mil soldados portugueses feridos, 14 mil deficientes físicos e 150 mil com trauma de guerravide Diogo Freitas do Amaral, “Da Lusitânia a Portugal”, Bertrand, 2017, p.384], com uma desmedida alocação de recursos orçamentais durante 13 anos [33% da despesa ordinária anual e 30% do orçamento da cada “província ultramarina”] e em uma época em que a descolonização fora levada a cabo nos demais países europeus que haviam tido impérios (Portugal “foi o primeiro a partir e o último a chegar”, na síntese de Freitas do Amaral; só nesse sentido, “orgulhosamente sós”, porque em matéria de trocas comerciais – que permitiam, nomeadamente, a permanência da guerra -, e até diplomáticas, tal não se verificava, como explica Bruno Cardoso Reis, em “Portugal como estado pária nas guerras coloniais tardias”, in “História Global de Portugal”, Temas e Debates, 2020, pp.617-623); na troca de diálogos que estes livros, vindos de citar, suscitam e que em “O retorno” Dulce Cardoso colocava certos portugueses na “metrópole” a rir com o infortúnio dos que, de um momento para o outro, retornavam sem nada, vendo esse abrupto voltar como “castigo” pelo que, ao longo dos anos, supunham que aqueles haviam adquirido em “terra alheia”, se colocam interrogações que permanecem em “carne viva”; diferentes governos portugueses vêm procurando reconhecer os que, em qualquer circunstância e sem prejuízo do olhar sobre a história que cada actor político ou cidadão transporte consigo, lutaram ao serviço do Estado que tais executivos agora lideram, sendo que, de igual modo e mais recentemente, se tem visado reconhecer, ainda, casos de uma violência levada ao paroxismo por nacionais portugueses nos mesmos circunstancialismos históricos em apreço, sem negar, da mesma forma e de modo algum, contundente violência existente de múltiplas partes intervenientes naquele conflito colonial).
Na sua (global) revisitação do passado, Álvaro Vasconcelos identifica, ademais, autores lidos, ideologias e pertenças que teve - e que “felizmente”, diz-nos prosseguindo em busca da verdade, “nunca chegaram ao poder” (em determinadas épocas da sua vida de jovem adulto).
 
5.Em homilia, os padres do Macuti Fernando Marques Mendes e Joaquim Teles de Sampaio denunciaram o massacre de Wiryamu (16 de dezembro de 1972). Por esse facto, foram presos. Por sua vez, muitos anos depois, em declarações para um documentário da Sic [na série “Guerra”, da autoria de Joaquim Furtado, para a RTP, podemos observar, ainda hoje recorrendo ao acervo disponível em linha, toda a descrição, pormenorizada, deste acontecimento terrível], António Melo, alferes miliciano, contou que naquele dia encerrou os habitantes daquela localidade em palhotas e mandou lançar granadas lá para dentro, dadas as ordens superiores para uma contra-insurreição: “vais ali e limpas tudo”. Pedindo desculpa aos poucos sobreviventes, Melo insistiria que apenas cumpriu ordens. Tal qual como Eichmann argumentava (face a tais palavras, “não podemos deixar de pensar nas reflexões de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal”, p.110). O investigador, aliás, já propusera o traçar de uma genealogia que conduzia o Kurz, de “O coração das trevas”, a Hitler.
 
6.O livro de Álvaro Vasconcelos pretende, intenção expressa desde logo no título escolhido, que a “amnésia” não se imponha e, com ela (muito presente em muitos lados de África e, particularmente, na Moçambique que foi da sua ainda criança/adolescente/jovem e que revisita, com guias no terreno, virtualmente, nos anos mais recentes), em várias latitudes fortes ameaças à democracia – quem não conhece a história está condenado a repeti-la (como relevantes pensadores, com matizes diversos, nos deixaram advertido ao longo dos tempos). A campa em África – memória, formação humanista, atitude(s) políticas –, ainda aposta ao título do volume ora lançado, é a da avó - que consigo tantas vezes conversou sobre como ia o mundo. Mas a memória – na qual, os filmes primam, em um Moçambique sem televisão e em que a arte cinematográfica adquire, pois, particular importância e relevo na compreensão e formação de uma visão de mundo, a par, sobretudo, dos livros que chegam do mundo francês; para fazer a História do século XX, autores como Tony Judt recorrem ao acervo cinematográfico (o grande historiador britânico cita, em “Pós-guerra”, para compreendermos a Polónia do século pretérito, os filmes de Wajda, realizador igualmente mencionado no livro do investigador de relações internacionais que estudou na universidade de Joanesburgo; Judt, nesta opção de fontes a atender, remonta, aliás, a Hobsbawm) – recua aos (seus) primeiros tempos, nascimento no Porto, vivência na Régua até cerca dos 8 anos e avô em Santa Marta de Penaguião, constituindo-se este seu escrito, ainda que muito centrado na experiência colonial portuguesa pós-II Guerra Mundial e as suas venturas na Beira, em Moçambique, como libelo contra o Estado Novo (dos pés sem calçado de muitos na sua infância, passando pelo severíssimo professor primário, até ao avô que tinha dois filhos da governanta da casa…).
Livro de género híbrido, repleto de memórias, sim, mas também perpassado por muitos livros, filmes, teses de doutoramento (sobre a história do império e do colonialismo português no século XX), entrevistas pessoais (a quem vivenciou os acontecimentos narrados em Moçambique, Angola, Guiné-Bissau entre 1961-1974) – e uma tese de denúncia de um tempo e de reivindicação da importância de desenterrar memória(s) (Lídia Jorge referia em recente entrevista à LER quão soterradas estão tantas histórias, pensamentos, memórias, emoções e sentimentos do que viveram e lutaram, independentemente do lado onde estiveram, uma vida em África, ao tempo do colonialismo português) que nos fitam não sem perplexidade. Perplexidade que poderá ser útil mola propulsora para continuarmos – a partir de diferentes ângulos, acentuações, sendo que, evidentemente, no global movimento de reponderação do que foram e significaram colonizações diversas, Álvaro Vasconcelos, para o específico caso português, entende que há um lado e vozes que mais carecem de ser escutadas, reconhecidas, reparadas, às quais a justiça deve ser feita, integrando, tais factos, em definitivo a “consciência nacional” - a tentar compreender.

Pedro Miranda

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