A SOLIDÃO EM PORTUGAL (ANA MARGARIDA DE CARVALHO)

 

No reparo do dia de hoje, a solidão em Portugal


1.De acordo com o Censos provisório de 2021, há 1 027 924 portugueses a viverem sozinhos. Nunca tantos portugueses viveram sós (nem durante a I Guerra Mundial, nem a quando da emigração massiva dos anos 60/70, nem, tão pouco, enquanto durou, nessas mesmas décadas, a guerra colonial). Em 1991, eram, face ao que se verifica atualmente, menos de metade (435 864), e em 2011 tinha-se já ultrapassado a marca das 800 mil pessoas nesta condição. Metade da população que vive só no nosso país é composta por idosos - e, de entre estes, uma maioria feminina. Com cerca de 10% da população a residir só, ainda assim, Portugal encontra-se abaixo dos 15% que constituem a média europeia.
No mais recente Retrato (“Viver só. Portugueses esmagadoramente sós”, 2023), da Fundação Francisco Manuel dos Santos, da autoria da premiada escritora Ana Margarida de Carvalho, cinco factores são elencados como relevando e concorrendo, particularmente, para o número recorde de mono-agregados: “envelhecimento populacional (182 idosos por cada 100 jovens); litoralização do país (50% da população residente em Portugal concentra-se nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto); aumento da esperança média de vida (para 81,06 anos nos últimos 5 anos), sobretudo para as mulheres; drástica redução da natalidade (nascem anualmente cerca de 80 mil crianças para mais de 100 mil óbitos); o facto de existirem, hoje, mais divórcios, e muito menos casamentos…”.
Há 4,5 milhões de solteiros em Portugal (se incluirmos crianças) e 4,25 milhões de casados (menos 674 mil do que em 2011) e 824 mil divorciados (mais 234 mil do que há 10 anos). Pela primeira vez, o número de divorciados ultrapassou o número de viúvos”.
 
2.Nem sempre o viver acompanhado implica, porém, a ausência ou libertação de um marcado sentimento de solidão (nem, inversamente, o encontrar-se em mono-agregado significará, sempre, uma existência sentida/marcada pela solidão). Neste âmbito, não “existe solidão, mas solidões”.
Mulher casada, 45 anos, dois filhos adolescentes. Vinda do trabalho, preparava o jantar e à mesa ninguém conversava: os filhos trocavam mensagens, combinavam saídas e jogavam na internet, enquanto o marido seguia a televisão. Precisando de falar do seu dia, agora já com o marido no café e os filhos no quarto, esta foi uma das centenas de milhares de pessoas que ligou para a SOS Voz Amiga, um serviço de escuta que existe desde 1978 (380 mil telefonemas recebidos desde então, 30 chamadas diárias, hoje, em média), onde se encontram 50 licenciados ou mestres, a maioria mulheres entre os 35 e os 50 anos, de diferentes áreas do conhecimento, como voluntários: oferecem atenção, disponibilidade, escuta. Aceitam fazer sua a máxima de Clarice Lispector: “um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui!”. Há, neste contexto, o duplo anonimato: daquele que ouve e de quem é escutado. E uma supervisão de técnicos de saúde mental, porque aos que escutam coloca-se-lhes a inevitabilidade de ter de falar da morte e a obrigação de afastarem, do seu interlocutor, ideias suicidas (vide pp.51 e ss.).
De entre os telefonemas regulares, aqueles de quem ousa ligar, mas não tem coragem, depois, para falar com quem está do lado de lá da linha – e assim desliga, também, de imediato; há quem permaneça, minutos, em silencio – e do silencio não saia (um silêncio que só difere do restante silêncio do dia por ser um silêncio acompanhado); há a senhora que telefona todos os dias antes de (se) ir deitar, porque não tem a quem dizer «até amanhã»…
 
3.A solidão pode matar? Neste breve ensaio de Ana Margarida de Carvalho que se percebe ter bebido, claramente (e, de resto com um capítulo que lhe é dedicado), num dos livros que marcaram mais estes últimos anos por apontar a esta condição (tendencialmente) mundial e a alguns dos seus piores precipitados – refiro-me a “O século da solidão”, de Noreena Hertz, de que neste espaço semanal demos conta; desde a emergência de doenças que a ausência de amigos ou conhecidos com quem falar potencia, passando pelas idosas, a Oriente, a cometer furtos para assim poderem ir para a prisão e terem companhia -, a escritora interroga uma outra vez se a solidão pode levar ao fim, literal, da pessoa. Francisco Paulino, diretor da SOS Voz Amiga, responde: “por vezes”, sim. A solidão, podendo “provocar sentimentos de tão baixa auto-estima, por se achar que já não se significa nada para os outros, porque «os anos passam e ninguém se lembra do dia do nosso aniversário”, “causa tristeza e pode levar desencadear um processo de depressão, momento em que obtém o «pacote completo». Desse ponto até se concluir que já não vale a pena viver é um curto trajecto” (p.57).
 
4.Face ao livro da economista alemã vindo de mencionar (enquanto inspiração para “Viver só”), o Retrato de Ana Margarida Carvalho, para além de muito menos ambicioso (no diagnóstico das causas da solidão, suas manifestações e consequências mais intensas, incluindo, nele uma dimensão política que no texto ora publicado praticamente não se vislumbra, bem como na panóplia de propostas para, de um ponto de vista comunitário, visar superar este estádio do nosso devir que existia na obra de Hertz - e em muito menor grau aqui) e de situar a problemática da solidão à luz dos contornos portugueses da mesma, distingue-se, ainda, pelo (sumário mas) interessante levantamento do tratamento literário que a solidão mereceu entre nós, por alguns dos nomes maiores das letras portuguesas, e que nos podem ajudar a iluminar tal problemática – “Que faz quem vive/Órfão de mimos/Viúvo de esperanças/Solteiro de venturas, que não tive?”, interrogava(-se) o sujeito poético de “Só”, o poema de António Nobre, “o poeta que mais versos e amargos sonetos dedicou à solidão”; “Sou aquela que passa e ninguém vê/Sou a que chamam triste sem o ser/Sou a que chora sem saber por quê/Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/Alguém que veio ao mundo p´ra me ver/E que nunca na vida me encontrou!”, de Florbela Espanca; ou uma definição de solidão, em “O ano da morte de Ricardo Reis”, de José Saramago: “a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela este, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz. (…) Creio que é essa a primeira solidão, não nos sentirmos úteis” -, ademais do assumir/exemplificar (de) modos de oposição, superação, busca de fazer frente às solidões: a pessoa criativa e diferente que deixa de procurar adaptar-se aos outros e que consegue dar-se bem consigo própria – “tive de ultrapassar este sentimento de medo e exclusão. Aprendi a ter o meu próprio mundo, gosto de estar sozinha e da minha liberdade”, diz Clara Soares, psicóloga e jornalista – até ao auxílio da psicoterapia: “abraçar esse sentimento de desconforto, de vazio, de ausência, num contexto seguro e privado, como sucede numa psicoterapia, pode fazer toda a diferença: atenuar o medo e a dor, e baixar a guarda (defesas), sentindo-se acompanhado, legitimado e validado na sua história pessoal pode ser muito enriquecedor” (p.45). Ana Nicolau, realizadora, 45 anos, vive há 20 anos sem companhia de gente e a partir dos 33 com os gatos como parceiros diários, sentindo-se preenchida sabendo que fez bem a alguém, bicho ou gente, e está pacificada com a introspecção que promove à hora que outros explodem de alegria conjunta; Ana Cristina Silva, 57 anos, professora universitária precisa, mesmo mesmo, de solidão para a leitura e a escrita que a preenchem de sobremaneira.
A pandemia acelerou solidões – a solidão-saudade, com o desaparecimento de entes queridos a gerar um entendimento de que a vida deixou de ter sentido; a solidão-carência, causada pela falta de companhia com quem partilhar pensamentos, experiências, acontecimentos do dia-a-dia; a solidão-amorosa, com ausência de companheiro romântico; a solidão-parental, dado que o desejado filho nunca chegou; a solidão-voluntária, a solidão-viciante, a solidão-cósmica, enquanto ideia de um pequeno e pálido ponto azul num universo desabitado; solidão-obstétrica; a solidão-melancólica e até a solidão-tortura em salas de isolamento – que para o psiquiatra João Carlos Melo têm este enquadramento: «o medo de estar só», «o desejo de estar só» e «a capacidade de estar só». Na maioria das situações, “predomina o primeiro: quando julgamos que ninguém nos entende ou quer saber de nós, quando não temos com quem partilhar preferências, quando se retorna a casa sem ter alguém, quando se teve um sucesso, mas não há com quem festeja-lo, quando não se recebe nenhum telefonema” (pp.37-38).
Calcula-se que, hoje, 450 mil portugueses procurem, todos os meses, um relacionamento através da internet, sendo, esta, a quarta estratégia mais popular, e atualmente legitimada do ponto de vista social, para encontrar um parceiro de namoro.
 

Boa semana.

Pedro Miranda

[para o reparo do dia, na universidadefm, 13-03-2023]

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