POSSIBILIDADE(S) DE TEODICEIA(S) (?)

 

                                         Possibilidade(s) de teodiceia(s)?
                                                             
 
1-De entre as questões últimas que nos podemos colocar, o problema do mal figura, certamente, entre as mais espinhosas (Georg Buchner escreveu, inclusive, em A morte de Danton, que “o mal é a rocha do ateísmo”).

2-O filósofo Epicuro, que viveu nos sécs. IV e III a.C., formulou o dilema que, para muitos, se tornou perturbante ou insolúvel: “se Deus é bom e omnipotente, como permite o mal? Ou Deus é bom, e não pode tirar o mal, e então não é omnipotente. Ou, então, pode e não quer, e não é bom. Ou pode, e quer – e isto é o mais seguro –, e então de onde vem o mal real e porque não o elimina?”.

3-Alargando a questão - e mesmo que a noção de Deus, de Epicuro, não fosse a de um Deus pessoal (à maneira cristã) -, podemos dizer que três são as características que, classicamente, se atribuem a Deus: a) Bondade; b) Omnipotência; c) compreensibilidade/inteligibilidade (isto é, Deus é susceptível de ser compreendido pelos humanos).

4-Tendo por base tal pré-compreensão do que caracteriza a Divindade, registemos, pois, que, face ao mal – um terramoto que tudo devastou, um amigo com o qual nos zangámos, a perda de alguém querido; mas, sobretudo, neste contexto, o mal físico do cosmos, na medida em que o mal moral resultaria de más escolhas dos humanos (mas mesmo aí: porquê humanos com essa inclinação?) -, se questionou, seriamente, a compatibilidade – a simultaneidade -, destas mesmas características, presentes em Deus. Para dar dois exemplos, de dois acontecimentos absolutamente marcantes, e que geraram grandes discussões/controvérsia, congregando os maiores espíritos da época, a este propósito, pensemos no terramoto de Lisboa de 1755 e nos campos de concentração nazi (“Como Silenciaste?”, ousou, mesmo, perguntar, em Auschwitz, Bento XVI).

5-Também um outro grande pensador, do século XX, o filósofo judeu Hans Jonas, escreveu um ensaio intitulado “Deus depois de Auschwitz” e, nele, afirma ser claro que a “bondade” era uma característica de Deus impossível de colocar em causa, pois que contradizia, totalmente, tudo o que o judaísmo e o cristianismo nos legaram acerca de Dele; tudo o que os diferentes livros bíblicos e tradições religiosas milenares nos deixaram. Ora, tornava-se evidente, para este autor, que Deus queria e não podia evitar o mal extremo – de Auschwitz, nomeadamente – e, portanto, a sua característica de omnipotência teria de ceder.
Outros autores, por sua vez, numa lógica que, ainda nos nossos dias se manifesta, não raramente, concluíram que a “Bondade” e a “Omnipotência” estão, mesmo, presentes em Deus, mas nós não conseguimos compreender o seu actuar (assim, cairia a característica da “compreensibilidade”, ou inteligibilidade, divina).
 
6-Numa obra importante, publicada em 2011, o teólogo católico galelo Andrés Torres Queiruga, repensou todo o problema do mal (Repensar el mal, editorial Trotta) e mostrou como, nos nossos dias, há possibilidade de uma teodiceia – palavra que, como se sabe, visa explicitar a defesa/justificação da compatibilidade de Deus (bom, omnipotente e inteligível) com a existência do mal no mundo: a) Deus é omnipotente e bom – criou por amor; só tendo poder (omnipotência) criou/cria e, só tendo criado (e continuando a criar e a sustentar toda a realidade; Deus é a realidade da realidade), e criado por amor, pôde/pode salvar; b) simplesmente, não há mundo sem mal; não é possível haver um mundo sem mal; c) pretender um mundo sem mal, seria como que se disséssemos, agora, que queremos círculos quadrados, ou a quadratura do círculo – uma frase, ou expressões que logo diríamos sem sentido; d) Deus criou o mundo, mas o mundo possível, limitado e imperfeito. Se as criaturas (e o mundo) fossem perfeitas, não seriam criaturas (não seriam mundo): seriam Deus.
Mas, oferecendo o seu amor e conquistando os que se decidem no sim (a Ele) dentro da humana liberdade, está presente sempre no mundo (na relação ética inter-subjectiva; na minha relação contigo, se eu me conformar ao modo agápico de ser e habitar o mundo). Nesta teologia, estamos, assim, perante um Deus presente no mundo, mas não intervencionista. Efetivamente, um dos grandes adquiridos da Modernidade é o da autonomia do mundo e, desde logo, das leis da Natureza: um deus que suspendesse, de quando em vez, e de modo arbitrário, as leis que fez, salvando uns e deixando outros, não entra nestas considerações. Daí que o grande milagre seja, em permanência – e não pontualmente –, toda a vida, e isto, de imediato, porque nenhum de nós se auto-justifica (e de aí que, mesmo quando pais, a nossa principal dimensão é a de filho(s) gerado(s), necessitado(s) de Adimplemento, completude, um plus).
 
7-Em suma, podemos, humanamente, não conseguir “abarcar”, completamente, Deus (“Se é Deus, não o compreendes”, dizia Santo Agostinho; ou “nada maior se pode pensar”, em Santo Anselmo), mas podemos, por outro lado, ter uma ideia sobre Deus que seja coerente, lógica, consistente e razoável. E capaz de conciliar a bondade (Deus é bom), a omnipotência (Deus criador e que salva) e compreensibilidade (Deus é amor), com a existência do mal no mundo (não há mundo que não seja finito; não há criaturas perfeitas; não há um deus bombeiro ou tapa buracos, mas um Deus que se oferece à liberdade humana como amor diário e permanente).
 
8-A pergunta que, em realidade, se poderia colocar era, face ao enquadramento vindo de explicitar, se, tendo, inevitavelmente, mal o mundo, porque Deus aqui nos trouxe? Legítima questão. Torres Queiruga usa de analogia, em resposta a atender: qual o pai que não sabe dos trabalhos, dos conflitos, da dureza, do mal que os filhos vão, inevitavelmente, enfrentar? E, mesmo assim, arrisca, por amor, trazê-los ao mundo.
 
9-Na verdade, como afirma o grande teólogo galego, a manutenção da existência – quando a podíamos, a qualquer momento, recusar, e apesar de todas as agruras da vida -, significa, no fundo, o referendo pragmático de como esta – a vida – vale a pena.
 
10. Em todo o caso, em face desta proposta teológica, João Manuel Duque, um dos nomes mais importantes da Teologia em Portugal, formula as seguintes objecções: a) porque identificar a finitude com o mal? Não é necessário assimilar a finitude com o mal, pelo que este se mantém como (felizmente) descampado (e desconfortável; o mais terrível, porventura, seria estarmos pacificados [com a resolução de uma teodiceia], estarmos de bem com o mal); b) Em segundo lugar, em realidade, pode dar-se o caso de ficarmos pacificamente com uma teoria que nos diz bom, fez-se esta acção terrível porque somos finitos e limitados - como que essa (característica da) finitude susceptível de justificar, perversamente, o mal. Podíamos continuar a ser finitos e limitados e isto [tais atos, tal acção má] não ser, não suceder; mais: não dever ser. c) O pecado implica a liberdade humana; se o mal é identificado com a finitude, e esta é necessária - nós não podemos ser não finitos -, então o pecado seria como que necessário e não livre (e, portanto, não pecado, porque este implica a acção livre).
 
11.Para João Manuel Duque, em circunstância alguma podemos ficar conformados/indiferentes em relação ao mal e, justamente, a nossa indignação/cólera com este, é, ela mesma, indiciadora do nosso desejo de justiça, de bem. Ora,
Muitas vezes me tenho interrogado, mas sem encontrar resposta,
sobre de onde provém a doçura e a bondade.
Ainda hoje não o sei, e agora tenho de partir.
Gottfried Benn
 
12. Há perguntas que de tão boas não devem sair desse estádio, assinala. E, se em outro tempo, o mal - extremo - levou a que a maior pergunta fosse como é possível o mal se há Deus, hoje, com o mal banalizado, a pergunta mais pertinente pode ser de onde vem o bem (?). Para João Duque, na impugnação (sofrida, revoltada, possivelmente, como em Job) do mal – porquê (o mal)?! -, Deus vai/está na pergunta (no desejo de bem que ela tem implícita).
 
13. Nesse grande clássico da literatura que é o romance “A peste”, de Albert Camus (deixando, aqui, de parte, a leitura alegórica da peste…nazi), que se debruça, também, sobre esta mesma problemática do mal (e da teodiceia), é verdade que a jeremiada com que o padre Paneloux começa por tratar, no primeiro sermão, a epidemia que se abateu, em Abril de 1940, sobre Orão, recorda, em muito, o Padre Malagrida do Terramoto de 1755 (ou os pastores evangélicos do início do século XXI, face ao furacão Katrina, por exemplo). Os Céus rebentariam de ira divina como resultado da devassidão humana. Um deus retributivo mostraria, assim, a sua face mais colérica, e o ser humano arrostaria com as consequências da sua maldade. E, no entanto, Paneloux junta-se à equipa sanitária voluntária que acompanha, hora a hora, os doentes da epidemia, nunca deserta, é, claramente, um homem generoso que sofre a bom sofrer com o sofrimento da criança que cai nas malhas da peste, passando (esta) horrores até à morte (mesma). Suplica e suplica. Rieux, o médico, não pode, num raro acesso de fúria, evitar um escárnio sobre a teodiceia: "Ah! Aquele [a criança], ao menos, estava inocente e o senhor bem o sabe!" (p.186) [pelo menos, a criança estava inocente e não foi por fazer o mal, portanto, que teve como paga o sofrimento atroz por que passou, até perder a própria vida]. E, radicalmente, o clínico rejeita a criação - uma criação na qual uma criança é torturada ("E hei-de recusar até à morte esta criação em que crianças são torturadas", p.187; "A dor infligida a estes inocentes nunca deixara de lhes parecer o que era na verdade, um escândalo", pp.183-184; em todo o caso, em O homem revoltado, Albert Camus registará que o revoltado metafísico atira-se a Deus pela condição humana mortal e o sofrimento de viver, não sendo, em rigor, um ateu – vide, p.40). A indignação/revolta contra o mal como habitada pela própria presença do bem, como único modo de presença do Bem (com maiúsculas); Deus presente na pergunta pelo mal que não é naturalizado, nem tratado com indiferença, como diria João M. Duque. O padre Paneloux responde a Rieux: "Ah, doutor - exclamou ele com tristeza -, acabo de compreender aquilo a que se chama graça!" (p.187).
Não apenas a desconstrução de uma dada ideia de Deus - como vingativo; "eu tenho outra ideia de amor", atira, com escárnio, Rieux, p.187 - se faz por aqui, como, adicionalmente, as observações do médico - "os cristãos falam por vezes assim sem que realmente o pensem. São melhores do que parecem" (p.111); "fico satisfeito por o saber melhor do que o seu sermão"(p.132), alertam para as palavras ditas mecanicamente sem nelas se advertir com caridade, o problema da pura retórica ou superioridade moral (o texto esclarece que Paneleux, no segundo sermão, já falou, não na segunda pessoa do plural, mas na primeira; já não foi o "vós, pecadores impenitentes..."), como, ainda, nos termos hodiernos do Papa Francisco, o problema da realidade ser superior à ideia: "Paneloux é um estudioso. Não viu morrer bastante e é por isso que fala em nome de uma verdade. Mas o mais modesto padre de aldeia, que administra os seus paroquianos e que ouviu a respiração de um moribundo, pensa como eu. Esse acudiria à miséria antes de querer demonstrar-lhe a excelência" (p.112). 
As falhas que se possam assinalar ao padre Paneloux não obstam a que a aposta, a escolha de fundo, total, sem mas, por parte deste, sejam a da inteligência mais profunda e fecunda: se Rieux recusa a criação por nela haver crianças inocentes a sofrer, Paneloux considera que justamente, neste umbral definitivo, a confiança absoluta no Cristo que na cruz se junta a todas as vítimas inocentes e anónimas da história se torna, sem matizes nem meias tintas, a entrega total e imperativa a fazer; ter fé será essa queda (sem tibiezas, e no "crer tudo" da homilia do segundo sermão se encontrará, evidentemente, a fortiori, a ressurreição; nunca haverá nenhuma justiça final, uma vez mais a vexata quaestio, para as vítimas inocentes da História se a ressurreição não é a realidade última): "Pois, se é justo que um libertino seja fulminado, não se compreende o sofrimento de uma criança. E, na verdade, nada havia de mais importante na Terra do que o sofrimento de uma criança e o horror que esse sofrimento arrasta com ele, e as razões que é preciso encontrar-lhe. No resto da vida, Deus facilitava tudo e, até então, a religião não tinha méritos. Aqui, pelo contrário, ele punha-nos entre a espada e a parede. Nós estávamos, assim, sob as muralhas da peste e era à sua sombra mortal que nos era necessário encontrar o nosso benefício. O padre Paneleux recusava até as oportunidades que permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podia compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante da dor humana? Não seria um cristão, certamente, cujo Mestre conheceu a dor na Sua carne e na Sua alma. Não, o padre ficaria ao pé da muralha, fiel a esse esquartejamento de que a cruz era o símbolo, frente a frente com o sofrimento de uma criança. E diria sem temor, aos que o escutavam nesse dia: «Meus irmãos, chegou o instante. É preciso crer tudo ou negar tudo. E quem, de entre vós, ousaria negar tudo? (...) Era tudo ou nada" (p.192-193). Quando, neste contexto, o padre Paneloux falava da "aceitação total" (p.193), não remetia para uma "banal resignação", "nem sequer da difícil humildade. Tratava-se de humilhação (...). Só assim o cristão a nada se pouparia e, fechadas todas as saídas, iria ao fundo da escolha essencial" (p.193).
Em Teoria da FronteiraJosé Tolentino Mendonça exorta a prática dos exercícios espirituais e, neles, o concretizar da exclusão das meias medidas para agarra a vida, por fim, pelos colarinhos: "arriscando em vez dos tropeços habituais/a queda infinita" (p.75). E, no seu mais recente O pequeno caminho das grandes perguntas, retoma: "é necessário decidir entre o amor ilusório à vida, que nos faz adiá-la permanentemente, e o amor real, mesmo que ferido, com que a assumimos" (p.14). Ou, dito ainda de outro modo, "a fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar" (p.35).
 
14. Ainda no campo da literatura, António Spadaro descreve assim o posicionamento, em este contexto, da escritora norte-americana Flannery O’Connor:
“A condição de incompletude, tornada dramática pela doença, a sua pessoal e a de Mary Ann, não é, para Flannery O'Connor, motivo de angústia nem ocasião propícia para meditações lamentosas - embora legítimas - sobre a debilidade e a fragilidade da existência.
Mas o que mais impressiona é o facto de que não haja espaço nem para naturais e profundas perguntas sobre a dor inocente nem para reflexões sobre a morte, que caracterizaram o século XX literário em algumas das suas altíssimas expressõesA cifra do mal não é a détresse nem a angústia, nem a «dejeção» - termo heideggeriano - do homem no mundo, mas a incompletude, a condição de estar à espera de adimplemento, que mobiliza uma acção criativa (creative action) e contínua (continuous action) para a qual tudo, bem e mal, são recursos. (...) Flannery está de tal modo consciente do que está a dizer que cita os autores que, mais e melhor do que outros, souberam talvez interrogar-se de modo visceral com o drama da dor, ou seja, Camus e Dostoievsky.
 
Uma das tendências da nossa época - escreve ela - é utilizar o sofrimento das crianças para desacreditar a bondade de Deus, e uma vez desacreditada a sua bondade, desfazer-se dele. [...] Ocupados em diminuir a imperfeição humana, fazem também progressos na matéria-prima do bem. Ivan Karamazov não consegue crer, enquanto houver uma criança que sofre; o herói não pode aceitar a divindade de Cristo, por causa da matança dos inocentes de Camus.
 
A reflexão que se segue talvez seja desconcertante, mas é de rara coragem, expressa com o estilo essencial, claro, imediato e direto que caracteriza a prosa da escritora:
 
Nesta piedade popular, assinalamos o nosso ganho em sensibilidade e a nossa perda em visão. Se outras épocas foram menos sensíveis, embora vissem mais com o olho cego, profético e insensível da aceitação, ou seja, com o olho da fé. Agora, na ausência desta fé, governamos pela ternura. Uma ternura que, já há muito separada da pessoa de Cristo, está envolta na teoria. Quando a ternura está separada da fonte da ternura, a sua consequência lógica é o terror. Acaba nos campos de trabalho forçado e nos fumos das câmaras de gás
 
Lidas estas linhas, estremecem as veias e os pulsos, fica-se com a respiração suspensa e nota-se a necessidade de relê-las, pois parecem óbvias e, ao mesmo tempo, desconcertantes. Talvez demasiado. Pergunta-se se elas são fruto de um frio cinismo ou de uma fé de tal modo ardente que queimaNem sequer uma palavra é dedicada à «justificação» de Deus, da sua imobilidade perante a dor inocente e incompreensível: nenhuma rebelião, nenhuma fácil teodiceia. Não se buscam (e não se encontram) respostas para o problema do mal, nem sequer se faz referência à responsabilidade do homem como álibi para «absolver» Deus e para ajudar o homem a ser mais responsável. Nada disso. Flannery O'Connor chega mesmo a polemizar de modo subtil, mas evidente, com o bispo D.Hayland que, ao celebrar os funerais da menina, se interrogou porque é que ela morrera? Segundo a escritora, pelo contrário, deveria antes perguntar-se porque é que ela nasceu, ou seja, questionar-se sobre o mistério da sua existência! (...) [O'Connor] não intenta negar que o calor do sentimento e da sensibilidade seja importante e deva ter o seu espaço. No entanto, a fraternidade, a solidariedade de Flannery é de todo não sentimental. Mais ainda, ela quer acrescentar que a alta temperatura do sentimento, paradoxalmente, corre o risco de ofuscar os olhos e de diminuir a «visão». Só uma grande capacidade de visão consegue, de algum modo, focar a perspectiva longínqua das imperfeições e das absurdidades humanas, decifrando-as como incompletudes à espera de reintegração e de pleno restabelecimento. Mas sem esta visão resta o absurdo da incompreensão e do sentimento trágico: não há vias de saída. Este olho capaz de «visão» pode ser rude, primitivo, insensível, cego e, no entanto, é «profético». (...)
Nem todos os crentes são escritores (...), mas quem tem fé tem o olho justo para ser escritor. Só assim é possível compreender a fundo o rigor com que se há-de entender Flannery quando afirma: «Escrevo como escrevo, porque sou (não apesar de ser) católica»; e ainda «[...] justamente porque sou católica, não posso permitir-me ser menos do que uma artista» (...)
Porquê esta afirmação tão drástica [de que a caridade, fora de Cristo, conduz ao terror] (...)? Porque o risco é a transformação da caridade em ideia ou, melhor, em ideologia do bem pela humanidade. A caridade que não sabe aceitar a incompletude (e não apenas a debilidade) da condição humana, como a conhecemos, arrisca-se a permanecer cega, enredada num confronto com a utopia de um homem e de um mundo perfeito e ideal, em que já não há dor e mal” (O baptismo da imaginação, Paulinas, 2016, pp.138-143).
 
15. O filósofo da religião, Manuel Fraijó, por seu turno, convoca um dos mestres da suspeita: “a vossa última pergunta retoma o futuro da religião e do cristianismo. Citais o veredicto de Feuerbach:  se não tivéssemos que morrer, não haveria religiãoFeuerbach é o crítico da religião mais severo que conhecemosTodos renunciámos a refutá-loA suspeita de que a religião brota da necessidade, da precariedade, da indefesa humana frente à morte, será sempre actual. Penso, sem embargo, que frente ao «a religião existe porque temos que morrer», caberia acrescentar: «a religião existe porque temos que viver». De facto, R. Otto e outros fenomenólogos da religião substituíram o termo feuerbachiano Bedurfnis (necessidade, precariedade) pelo de Erlebnis (experiência). Pretendiam dotar a crença religiosa de um matiz mais positivo: não surgirá apenas do medo da morte, mas da afirmação da vida. Na sua origem, estaria a experiência de um encontro com algo, ou com Alguém, que ilumina a vida e o seu sentido último”. “E o futuro do cristianismo e do seu Deus tem que ver, creio, com o futuro das vítimas da história. M. Horkheimer assinalava que ante o grande problema das vítimas inocentes, ante o «passado irredento» de tantos homens e mulheres vilmente sacrificados, a filosofia do materialismo histórico declarava-se «incompetente». No seu arsenal de estratégias não há nenhuma aplicável ao caso. O passado está fechado. Os mortos não conhecerão nenhum desagravo. Inversamente, [Walter] Benjamin está consciente de que a religião «geriu» muito bem o desejo de justiça das vítimas. A religião não esquece o passado irredento. Frente à razão técnico-científica do materialismo, alça-se a razão anamnética da religião, quer dizer, a razão que não vira a página, que mantém viva a recordação dos humilhados e ofendidos.  (...). Em linguagem kantiana: as vítimas fizeram-se dignas de uma felicidade da qual nunca desfrutaram. A história está em dívida para com elas. Talvez por isso, escrevia Aranguren que a imortalidade «deve ser admitida, não para a moralidade, mas por moralidade»” (Avatares de la creencia in Dios, Trotta, 2016, pp.62-64).
Se o querer/desejar que a imortalidade seja verdade, por si só, não a garante – é certo -, todavia o desejo de ressurreição também não a invalida (logicamente).
Os “crentes” são seguidores de testemunhas relativamente às quais não se pode, seriamente, duvidar quanto à autenticidade da sua crença na ressurreição – crença pela qual deram, literalmente, a vida – e, assim, concluamos, pois, por exemplo, com a memória biográfica de Paulo de Tarso.

Pedro Miranda

[publicado originalmente no "Boletim Cultural" da Escola Secundária Camilo Castelo Branco (Vila Real), em 2020]

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