DO ESTUDO DA VIDA POLÍTICA PORTUGUESA - A REVISITAÇÃO DA "POLÍTICA DE RESGATE FINANCEIRO"

 

Do estudo da vida política portuguesa – a revisitação da “política de resgate financeiro”
 
1.Publicado, originalmente, pela Oxford University Press, “O essencial da política portuguesa” (org. Jorge M. FernandesPedro C. MagalhãesAntónio Costa PintoTinta da China, 2023) visa, com recurso à investigação, análise, interpretação realizados pelos mais reputados investigadores, nacionais e internacionais, que se dedicam ao estudo das cinco décadas de democratização portuguesa, estabelecer o perfil, singularidades, continuidades de tipo europeu, desafios e riscos que se colocam, entre outros, à governação e políticas públicas (educação, saúde, economia, regulação do trabalho, tributação, corrupção, estratégia face à globalização), aos partidos e ao sistema partidário (selecção de candidatos, elite governante, representação), à política externa e de defesa (relação com Brasil, África, contexto de atuação das nossas Forças Armadas), à integração de Portugal na UE.

2.Catherine Moury (Professora na Universidade Nova de Lisboa, especialista Sistemas Políticos Comparados e Instituições da União Europeia) e Elisabetta De Giorgi (Professora na Universidade de Trieste, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais), constatando que apesar do período 2010-2018, no qual cinco países da Zona Euro – Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Chipre – receberam assistência financeira do FMI e da União Europeia e saíram dos respectivos programas que aplicaram em tal contexto, ter tido “muita atenção académica e mediática, há na verdade muito pouca investigação empírica sobre a forma como os governos nacionais lidaram com os condicionalismos [com que tiveram que se confrontar durante este período]. O nosso conhecimento é ainda mais limitado no que diz respeito ao que aconteceu após o final os condicionalismos e à margem de manobra e às motivações dos formuladores de políticas para reverter (ou, em alternativa, manter) as mudanças introduzidas durante a intervenção” (p.824) decidiram (as investigadoras) examinar, em particular, a “Política de resgate em Portugal”, através do recurso a três tipos de dados: “fontes primárias e secundárias que facultaram informações sobre os processos de formulação de políticas ocorridas no período em causa (estudos académicos, reportagens da imprensa, livros de investigação escritos por jornalistas, memórias); análise qualitativa de documentos oficiais do governo, do FMI, da Comissão Europeia e dos sindicatos. Por fim (…) [e de modo inédito] entrevistas presenciais (entre 2014 e 2018), em Portugal, a 30 figuras proeminentes [nomeadamente, ministros e secretários de Estado quer do Governo socialista que negociou o Memorando de Entendimento com os Representantes dos Credores – Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI, quer do Governo de coligação PSD-CDS que implementou o programa de assistência], no poder durante esse período” (p.828).
Por me parecer que o ensaio em questão permite, pois, ampliar o conhecimento e a perspectiva acerca do período do programa de resgate aplicado em Portugal – e porventura, em alguns dos seus elementos, surpreender (mesmo) o cidadão que se pretende informado; porque esse foi um período crítico/marcante e que formou, desde então, muitos olhares sobre a vida pública e os eixos partidário/programático/ideológico nela inscritos; porque importa estar atento ao que aturadamente se estuda e publica acerca dos mais variados aspectos da res publica portuguesa, ao que vai para além de percepções imediatistas, de julgamentos sumários e, bem assim, contrariar a subsunção da vida política à, sucessiva e infinita, logomaquia especulativa, assente na espectacularidade e no exacerbamento emocional e de claque com que, em permanência, somos brindados, aqui ficam um conjunto de sublinhados nesse revisitar da história portuguesa da última dúzia de anos.
 
3.Há dois motivos fundamentais pelos quais há autonomia, são tidos em consideração os desenhos de medidas a implementar – face aos objectivos preconizados pelos credores -, as concretas sugestões de legislação a concretizar por parte dos Governos que negoceiam (negociaram), e dos Governos que aplicam (aplicaram), os «Programas de Resgate Financeiro»: i) a “propriedade”, isto é, a iniciativa, a impressão digital [em determinadas propostas/sugestões de medidas], o comprometimento de um (dado) Executivo em realizar certas mudanças [legislativas] tornam mais certa a sua realização (o que agrada aos credores internacionais); ii) a “alavancagem nacional” decorre, de igual modo, da ausência de um profundo conhecimento, por parte dos credores internacionais, da realidade dos países nos quais os programas de resgate serão aplicados, pelo que existe margem para as “propostas”, “sugestões”, “medidas” a executar, “sopradas” pelos governos nacionais, terem certo acolhimento (“cabe ao Governo apresentar um plano. A troika não vem com uma lista de coisas, diz que têm que fazer essas coisas e depois pega no dinheiro. Isto não faz sentido, em parte porque só o Governo sabe como as coisas funcionam”, p.826; “os quatro representantes dos credores com quem conversámos afirmaram que essa influência do Governo pode ser explicada pelo facto de a sua instituição valorizar a propriedade e precisar de conhecimento interno para conceber políticas eficientes”, p.832). Em assim sendo, prova-se que “os executivos tiveram alguma margem de manobra na formulação e na implementação do MdE [memorando de Entendimento]” (p.826). Um dos pomos da discussão nacional relativamente ao “Programa de Resgate” prendeu-se, justamente, e como se sabe, com a (tantas vezes arguida) inevitabilidade de (todas as) medidas impressas no Memorando de Entendimento, por (alegado) “diktat” externo aos agentes políticos nacionais (e também alguns quadros académicos e da Administração pública portuguesa, que participaram no período de formulação das medidas do programa de assistência financeira). Para Catherine Moury e Elisabetta De Giorgi, a conclusão é, como se vem de observar, clara: não procede a ideia de que não houve a menor margem de negociação de concretas medidas a aplicar, ou que a iniciativa dos políticos portugueses ficasse absolutamente cerceada (pelos seus interlocutores internacionais): houve, com efeito, margem de manobra, quer na fase da idealização do programa, quer na sua implementação – até porque, e no que concerne a este último caso, e à semelhança do ocorrido noutros resgates em outros países, a revisão dos procedimentos, a alteração da conjuntura, a diversidade de momentos económicos e sociais suscita(ra)m (necessidade e) oportunidades de mudanças e, assim, o ensejo (político) de algum desenho e arquitectura de legislação a pôr em prática pelo governo português.
Mais: quer os responsáveis do Governo que solicitou ajuda aos credores internacionais, quer aqueles pertencentes ao Executivo que o implementou, entrevistados para este estudo das pesquisadoras mencionadas, referiram que nunca sentiram o programa de resgate como uma imposição (“nenhum dos participantes viu a negociação como um ditame dos credores internacionais”, p.832). Evidentemente, sublinhe-se do mesmo modo, a existência de alguma margem de manobra não significa total amplitude de prorrogativas no que diz respeito a selecionar um completo menu de medidas a aplicar em concreto (e “quando questionados sobre a margem de manobra durante a negociação do MdE, os membros do Governo e da troika reconheceram unanimemente que a margem de negociação era menor do que quando o quarto pacote de austeridade estava a ser elaborado” [acabando chumbado no Parlamento português], p.831). E, no momento da negociação do MdE, características como iii) montante do empréstimo (o Governo pretendia mais 10 mil milhões do que os 78 mil milhões acordados); iv) congelamento do salário mínimo; v) calendário das privatizações (governo queria cláusula para poder vender empresas públicas apenas quando as condições de mercado fossem boas); vi) velocidade da redução da dívida pública e privada (Governo queria que fosse mais lenta) foram subscritas com clara prevalência volitiva dos credores internacionais. Mas já vii) a redução dos cortes nas indemnizações por despedimento, viii) a aplicação destes apenas a novos contratos, ix) o adiamento da redução da duração do subsídio de desemprego, xi) a manutenção das pensões mais baixas foram dimensões que os negociadores nacionais conseguiram ver refletidas no acordo final (p.832).
 
4.Mais radicalmente, Catherine Moury e Elisabetta De Giorgi, sem embargo de reconhecerem a chamada de FMI e UE enquanto ultima ratio, assinalam que, ainda aí, e por muito limitada que esta tenha sido, houve escolha. Em apoio de tal tese, o exemplo italiano: “por outro lado, Itália nunca pediu um resgate e lidou com as taxas de juros crescentes até o BCE anunciar o seu programa de Transacções Monetárias Definitivas, em 2012. Isto significa que o pedido de resgate da troika foi feito sob forte pressão e como solução de último recurso, mas constituiu, no entanto, uma escolha política” (p.830).
 
5.Investigação anterior à publicação do ensaio de Moury e Giorgi, havia demonstrado que, não raramente, em diversos casos a nível internacional, planos de resgate permitem aos decisores públicos implementarem políticas, reformas, mudanças que seriam incapazes de defender e sustentar publicamente (em tempos de “normalidade”). Foi o que veio, também, a comprovar-se no caso português. Desde logo, nas entrevistas efetuadas para “Política de resgate em Portugal (2008-2020”), artigo inserto em “O essencial da política portuguesa”, a ministros do governo liderado por José Sócrates reconheceram, estes, rever-se nas transformações então positivadas para os sectores da justiça e da saúde – “muitos ministros socialistas com quem conversámos mencionaram espontaneamente que o resgate abriu às vezes uma janela de oportunidade para reformas que há muito desejavam implementar, mas que não teriam sido aprovadas anteriormente, por exemplo, nos sectores da justiça ou da saúde” (p.832).
No caso dos governantes do Executivo liderado por Passos Coelho, “os membros do Governo também deram conta de muitos exemplos de como o resgate lhes permitiu fazer aprovar medidas que consideravam necessárias, mas que não poderiam ter sido aprovadas anteriormente” (pp.833-834), acrescentando, contudo, as autoras, neste segundo caso, que “curiosamente, nenhum dos ministros com quem conversámos conseguiu recordar-se de quaisquer exemplos de políticas que foram levados a adoptar contra a sua vontade. De facto, todos os seis entrevistados de governo de Passos Coelho referiram que a posição dos credores estava em linha com a sua” (p.833).

6.De todos os países da Zona Euro intervencionados (com o concurso da troika FMIBCEUE – dois terços dos 78 mil milhões do resgate português resultado de empréstimo da UE), Portugal foi aquele em que existiu uma maior reversão de medidas tomadas durante o programa de assistência financeira (“os partidos da esquerda radical, juntamente com o PS, fizeram uma longa lista de políticas aprovadas pela troika que deviam ser revertidas” (p.836); “observam reversões pós-programa em todos os países, mas com mais frequência em Portugal” (p.839), a que não foi alheia, evidentemente, a composição do Executivo 2015-2019 (sendo que a literatura internacional sobre resgates financeiros evidenciara que a mudança de governos tende a implicar mais facilmente a reversão de medidas, dado que os mesmos ministros tenderiam a ter menor propensão para uma mudança mais acentuada de políticas). Em todo o caso, e complexificando, entre 2015-2019, observa-se, também, aquilo a que as pesquisadoras chamam “austeridade furtiva” – o deslocamento da austeridade para outros sectores e, nomeadamente, para uma fiscalidade menos “visível”, a que acresceu a manutenção da despesa reduzida com educação, saúde e investimento (p.838) – e no imediato pós saída do programa de ajustamento, ainda no âmbito da Governação 2011-2015, algumas medidas foram revertidas, nomeadamente 20% dos cortes nos salários aos funcionários públicos e o descongelamento em 20 euros do salário mínimo (embora existindo “fortes elementos de continuidade” nas ditas “reformas estruturais”, p.835). Os grupos que se fazem representar com maior eficácia, e marcam mais presença eleitoral, conseguiram ver mais reconhecidas, em termos operativos, as suas reivindicações (o mesmo sucedendo a diferentes grupos que constituíram a base eleitoral dos partidos que compuseram o Executivo que se seguiria).

7.O programa da troika surge, recordam e reconhecem as investigadoras, num quadro em que na resposta à crise financeira iniciada nos EUA (mas chegada, pela interdependência da finança, ao restante mundo ocidental), a UE havia optado, e Portugal seguido igualmente, uma “abordagem neokeynesiana” [embora, e fora deste estudo, alguns autores sublinhem que países houve que não avançaram nessa linha expansionista em termos orçamentais e que Portugal, em virtude do endividamento público e privado, também devesse ter tido cautelas adicionais], abordagem essa que deveria representar uma alavanca de estímulo económico e crescimento que permitiria uma melhor reacção aos problemas que os diferentes países enfrentavam (recusando-se, pois, políticas recessivas que conduziriam a irreparáveis catástrofes sociais). No entanto, apenas meses mais tarde, a UE decidiu-se por políticas exatamente opostas às inicialmente preconizadas, originando cortes drásticos de despesa pública, gerando um cenário humano desolador e, nas palavras de Jean Claude-Juncker (presidente da Comissão Europeia durante o período 2014-2019), atentatório da dignidade da pessoa em diferentes países europeus (“pecámos contra a dignidade dos cidadãos da Grécia, Portugal e, muitas vezes, da Irlanda também”, Observador, 19/02/2015).

[publicado no "reparo do dia", na universidadefm, de 08-05-2023]

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