"OS RAPAZES DE NICKEL", DE COLSON WHITEHEAD
“Os rapazes de Nickel”, de
Colson Withehead
Uma cena/imagem impossível
de esquecer: Elwood, miúdo negro, anos 60, Florida, no hospital de Nickel, a
serem-lhe retiradas, das pernas, pelo médico, com pinças, pedaços das calças
que vestira, que se lhe haviam entranhado no corpo, após o sádico espancamento
(que o atiraria para o desmaio), com um chicote chamado “Beleza negra”, por
Spencer, o responsável máximo pelo reformatório
onde ele fora parar quando, dirigindo-se para o seu primeiro dia de
universidade, apanhou boleia com um (por si desconhecido) condutor que ia ao
volante de um automóvel furtado (e a polícia o deteve também, como que por co-autoria do roubo do carro, apesar do rapaz
nada ter a ver com o facto/crime).
Uma palavra/exortação/postura/vida:
ágape. Criado pela avó Harriet - que
desde os 14 anos trabalhava nas limpezas de um hotel da sua terra com a mãe -,
Elwood afeiçoou-se, profundamente, pelo disco ‘Martin Luther King at Zion Hill’
(uma prenda do Natal de 1962, numa casa sem televisão), e os discursos,
palavras do Reverendo ficaram-lhe, em permanência, a ecoar. Impedido, por grave
e grosseiro erro de justiça, de aceder ao ensino superior (em função da sua
condenação a pena na casa de correcção
para menores), a Elwood mais não restará que o autodidatismo. O vocábulo ágape
sugestionara-o particularmente, de modo a levá-lo a procurar, avidamente, em
diferentes enciclopédias, (por) sinónimos. Tal busca pode corresponder, igualmente,
a uma interrogação, que atravessa o livro, e que deixa implícita a demanda
sobre (a melhor) estratégia (e pensemos, relativamente ao mesmo ponto, nas
perspectivas/biografias de James Baldwin, Medgar Evers, Malcom X, por
comparação/confronto com a enunciada/concretizada por Luther king,
posicionamentos que pudemos recuperar exemplarmente, ainda nesta década
cinematográfica, em “I’m not your negro” (2017), documentário de Raoul Peck, a
partir de escritos de Baldwin e imagens de arquivo) a adoptar face à violenta e
sistemática discriminação negra nos anos 60 nos EUA (a que o livro sobre a vida
em Nickel se reporta, e cujo ambiente capta nos mais recônditos detalhes do
quotidiano), mas que não se furta, porventura mais, a questionar-nos sobre o
que resulta do relato é, ou não, a prevalência, ou, pelo menos, a validade
final daquele modo de habitar o mundo.
Intrinsecamente ligada esta
questão está a agilidade e destreza literária de Colson Whitehead (neste seu
“Os rapazes de Nickel”, Alfaguara, 2020). Se, por um lado, Elwood acaba por
morrer numa fuga, com o companheiro Turner, da Escola de Nickel (mas tal é,
sobretudo, insinuado e nunca concludentemente afirmado: “mais tarde,
[recordando-se Turner da perseguição, e tiros, que haviam sofrido pela fuga de
Nickel] perguntar-se-ia se tinha ouvido um grito de Elwood ou qualquer outro
som, mas nunca obteve uma resposta”, p.228), depois de ficar a saber que (fosse
como fosse) seria assassinado pelos responsáveis da instituição, após (estes)
perceberem que aquele entregara carta a denunciar os abusos físicos (na “Casa
Branca”), sexuais (no “Cantinho dos namorados”, a linguagem como forma outra da
mais cínica perversão, espalhada pelo reformatório; “Freddie Rich gostava de
lhe pegar [a Clayton, um dos menores internados em Nickel] nas noites de
sábado. Saía-lhe mais barato do que pagar a uma puta e ainda tirava mais
rendimento do rapaz sem gastar um tostão”, p.174), emocionais, em suma,
ultrajes de toda a ordem incluindo o trabalho forçado, à inspecção que visitara
o local – e, então, o “sólido” e “equilibrado” rapaz, educado com rigor pela
avó Harriet, despertado pelo disco de Luther King para a luta pelos direitos civis, incentivado pelo
professor de Liceu que é, simultaneamente, um ativista político e observa o
estudante perfeito, e trabalhador dedicado numa tabacaria da cidade em que
nasce [onde evidenciará uma grande dedicação laboral, descobrirá, pelo gosto de
ler e do conhecimento, e na Life, uma
imagem/fotografia em que a sua condição negra é mais atacada e, bem assim, um
estímulo ulterior à sua participação cívica, ele que no Liceu, e contrariando a
avó, quanto mais as matérias fossem (ditas) inúteis, “apenas” interessantes,
mais apelo para si continham; nesta loja, observa-se um seu olhar universal
sobre as coisas quando, por exemplo, aponta aos rapazes negros que roubam uns
brinquedos são por ele repreendidos e obrigados a devolveram o que haviam
furtado…o que lhe valerá, a caminho de casa, uma sova vinda daqueles], no Sul
dos EUA, parece ter sido vencido pelo mundo e a sua atitude perante os outros
sair derrotada (muito embora, sendo a morte inevitável, pretender preservar a
vida, seja a que custo for e sob qualquer forma de existência, não seja, para
muitos de nós, propriamente um sinal de sabedoria) – “o mundo tinha-lhe segredado
que as regras para o resto da vida e ele recusara-se a ouvir, escutando antes
uma ordem mais elevada. O mundo continuava a instruí-lo: não ames porque eles
vão desaparecer, não confies porque eles vão trair, não te ergas em defesa
própria porque vais ser esmagado. Mesmo assim, ouvia imperativos de ordem
maior: ama e esse amor será devolvido, confia no caminho dos justos e esse caminho
desembocará na libertação, luta e as coisas mudarão” (p.221), por outro prisma,
em jogo (literário) de combinação entre prolepse
e analepse utilizados com mestria, o
autor vai-nos informando da vida que Elwood [que julgáramos o Elwood original, mas
que vimos a compreender tratar-se de Turner, entretanto mudado de identidade,
de nome] teve depois desta “prisão” para menores, dando-nos a ver, em
simultâneo, as cenas/episódios marcantes na reclusão, e só, no limite (o autor
consegue manipular/enganar/surpreender deveras o leitor nesse instante),
percebemos, pois, que aquele Elwood é o nome que Turner passa a indicar como
sendo o seu, o que relevará tanto da experiência da amizade (“passou a usar o
nome para honrar o amigo”, p.229), para mais experienciada numa instituição-total, num clima sórdido e
de dificuldade, violência e arbítrio permanentes (pois que o desfecho fatal do
tiro dos perseguidores dos fugitivos de Nickel só ali nos é revelado), porque era ele, porque era eu (“para
viver por ele”, p.229), mas, bem mais, em homenagem ao que Elwood havia sido (“os
seus belos imperativos morais, as suas belas ideias sobre a capacidade dos
seres humanos para melhorar, sobre a capacidade do mundo para fazer o que está
certo”, p.235), e sendo que Jack Turner representa(va), se quisermos, a leitura
que recusa a pragmaticidade/operatividade da ordem elevada (“a visão de um
mundo que faz as pessoas fracas e obedientes? Ou a visão de outro mundo, mais
verdadeiro e decente, apenas à espera de ser conquistado?”, p.200, eis o dilema
entre uma visão de pura adaptação, a
que poderíamos chamar, respectivamente, darwinista
e - diversamente, outra - a de uma aspiração a uma vida boa - e não mera sobrevivência em ordem social profundamente
injusta – mundividência, em promoção
do humano, nobre, justo, em grande mediada, esta última, eivada de injunções
cristãs). Nesse sentido, não deixa de ser possível interpretar a nova
identidade de Turner como reverência ao ágape
– “[Elwood] lembrava-se de procurar o significado de ágape na enciclopédia depois de ter lido o discurso do Dr. King no Defender. (…) King descrevia o ágape como o amor divino a operar no
coração dos homens. Um amor que não pedia nada em troca, um amor incandescente.
O amor mais elevado de todos. O reverendo pedia à sua audiência negra que
cultivasse esse amor puro, mesmo com os seus opressores, porque talvez isso os
convencesse a mudar-se para o lado justo da luta. Agora que o conceito já não
era uma abstracção (…) era algo real [e sendo que Elwood, de perfil ético
elevado ao longo de toda a vida, ainda assim, como qualquer crente na cosmovisão a que adere e levando a
interrogação até ao fim, não deixasse de se dilacerar com a dimensão mais radical do que lhe era proposto: “Mas
amar aqueles que os queriam [aos negros]
destruir? (…) Aquilo não se pedia a ninguém”, p.197] [:]
[discurso de Martin Luther
King] Metam-nos na prisão e continuaremos
a amar-vos. Façam explodir as nossas casas e ameacem os nossos filhos, e, por mais
difícil que seja, continuaremos a amar-vos. Mandem os vossos violentos
perpetradores encapuzados para os nossos bairros, depois da meia-noite, e
arrastem-nos para fora de casa, até uma estrada secundária, e batam-nos e
deixem-nos à beira da morte, e continuaremos a amar-vos. Mas fiquem cientes de
que vos venceremos pelo cansaço, com a nossa capacidade para sofrer, e um dia
conquistaremos a liberdade.
Sobre o dilema interior
suscitado em Elwood, bem como relativamente ao exemplo, entre outros, de Luther
King, sopesou Paul Ricoeur que advogou a mútua permeabilidade, a porosidade da Regra de Ouro – não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti, ou, pela
positiva, faz aos outros o que gostas que
te façam a ti – com o mandamento “amar os inimigos”, de tal sorte que
[resulte que] “o supramoral não dê lugar ao não moral, ou até mesmo ao imoral”
(em nome do amor aos inimigos, a
declinação em cobardia), nem que a regra de ouro se transforme em (mera) regra utilitária (“dou para que tu dês”,
[agora] transformada (para melhor) em “dá, porque
te foi dado”), completando-se (corrigindo-se) mutuamente:
“Se
[havia incompatível] diferença entre as duas lógicas (…) como explicar no mesmo
contexto do mandamento de amar os inimigos e da Regra de Ouro? É possível uma
outra interpretação, segunda a qual o mandamento de amor não abole a Regra de
Ouro, antes a reinterpreta no sentido da generosidade, e assim faz dela um
canal não apenas possível, mas também necessário de um mandamento que, devido
ao seu estatuto supra-ético, só acede à esfera ética ao preço de comportamentos
paradoxais e extremos: precisamente esses que são recomendados na esteira do
mandamento novo: «amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam,
abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos maltratam. A quem te bate numa face, oferece
também a outra» (…) foram estes compromissos singulares extremos que São
Francisco, Gandhi, Martin Luther King assumiram. E contudo, que lei penal e em
geral que regra de justiça poderiam ser extraídas de uma máxima de acção que
erigisse a não-equivalência em regra geral? Que distribuição de tarefas, de
papéis, de benefícios e de encargos, poderia ser instituída, no espírito da
justiça distributiva, se a máxima de emprestar sem nada esperar em
contrapartida fosse erigida em regra universal? Para que o supramoral não dê
lugar ao não-moral, ou até mesmo ao imoral – por exemplo, à cobardia -, terá de
passar pelo princípio da moralidade, resumido na regra de ouro e formalizado
pela regra de justiça. Mas a recíproca não é menos verdadeira: nesta relação de
tensão viva entre a lógica de super-abundância e a lógica de equivalência, esta
última recebe do seu confronto com a primeira a capacidade de se elevar acima
das suas interpretações perversas. Sem o correctivo do mandamento de amor, com
efeito, a regra de ouro seria incessantemente inflectida no sentido de uma
máxima utilitária cuja fórmula seria do ut es, dou para que dês. A regra: dá
porque te foi dado, corrige o a fim de que da máxima utilitária e salva a regra
de ouro de uma interpretação perversa” (Amor e Justiça, Edições 70, 2010, pp. 34-36).
Luther King foi assassinado,
como o foram James Baldwin, Medgar Evers, Malcom X. Os direitos civis avançaram muito desde os anos 60, nos EUA, mas vemos
como a discriminação para com negros permanece uma questão tão presente,
divisiva e determinante até para muito do pronunciamento eleitoral dos
norte-americanos, em nossos dias.
Elwood escreve, anonimamente,
a jornais, a partir de Nickel, denunciando a torrente de abusos naquele
reformatório, nomeadamente aos (periódicos) que compreende como mais liberais e que se coadunam com uma visão do mundo que crê partilharem (consigo).
Se, num instante primeiro, a ausência de resposta, de publicação de qualquer
notícia sobre o assunto, lhe causa inquietação, a reflexão levá-lo-á a
racionalizar, mas a não ficar menos esmagado, o motivo de tal suceder: “estava
sozinho no seu protesto. Escreveu para o The
Chicago Defender duas vezes, mas não recebera resposta, mesmo quando
mencionou o editorial que escrevera em tempos com pseudónimo. Tinham passado
duas semanas após a segunda carta. Era assustador que o jornal não se
importasse com o que acontecia na Nickel, mas pior era imaginar que recebiam
demasiadas cartas como aquela na redacção, tantas que não conseguiam responder
a todas. O país era enorme, o seu apetite pelo preconceito e pela depradação
era ilimitado. Como poderiam manter-se a par de todas as injustiças, grandes ou
pequenas? A Nickel era apenas mais um lugar. Um balcão de restaurante em Nova
Orleães. Uma piscina pública em Baltimore, que os brancos preferiam tapar com
cimento a partilhar com miúdos negros. Nickel era apenas mais um lugar. Se
havia um sítio assim, teria de haver centenas, centenas de Nickels e de Casas
Brancas espalhadas pelo país, como fábricas de dor” (p.199). Adiante, Elwood
concluirá que aqueles jornais são lidos pela classe média, os EUA encontram-se,
à época, demasiado permeados por uma perspectiva racista (ou, no mínimo,
complacente com aquela), e a imprensa – enquanto, em parte, emanação,
solidariedade nos valores ou, pelo menos, não denúncia dos mesmos em que os seus
leitores se ancoram, ou na dimensão negócio - acaba por fechar os olhos; a imprensa é, assim, inclusive, “o [ou parte do]
sistema” (a conspiração do silêncio
face a instituições fortes manteve-se até aos nossos dias e está muito longe de
ser um exclusivo de Nickel), afora a ocasional notícia (anual) sobre um ou
outro excesso [disciplinar], ou falta de equipamento em algum colégio correctivo (destinado a
apaziguar as boas consciências, por
entre o business us usual). A Elwood
mais não resta do que a denúncia, por carta, a entregar à inspecção que
visitará Nickel – mas de que coragem necessitará!... (as palavras inscritas na
denúncia pesavam-lhe “mais do que uma bigorna”, p.203), porque alguém pode ver
a entrega, porque aqueles a quem denuncia poderão, por sua vez, denunciá-lo,
porque as consequências para o colégio remeterão a Elwood, “o negro esperto”, e
a morte pode ser a pena que em Nickel lhe dão (às famílias, e sem mais, é dito
que os descendentes fugiram e deles não têm notícias, enquanto aqueles são
enterrados no “cemitério secreto” do reformatório).
O modo como o narrador de “Os
rapazes de Nickel” nos insere na dimensão endémica, transmissão geracional,
perpetuação de um racismo entranhado nos EUA, passa, por exemplo, pela
indicação de que o pai de Spencer, o tirano que superintende este reformatório,
havia já tido idênticas funções. A descrição da passagem de testemunho
geracional, neste contexto, tremendo: “os pais ensinaram-nos a manter um
escravo na linha. Esse era o seu brutal legado familiar: afastem-no da família,
chicoteiem-no até que a única coisa de que ele se lembre seja o chicote,
prendam-no com correntes até que tudo o que ele conheça sejam as grilhetas. Uma
temporada dentro de uma caixa-frigideira [lugar de prisão ou reformatório
fechado, sem janelas, muito pequeno], os miolos a cozer ao sol, mas também uma
cela escura, um quarto perdido no breu, fora do tempo” (p.217). Embora Spencer –
o homem que utilizara, vezes sem conta, os 90 centímetros de uma tira de couro
como chicote, com uma Bíblia por perto (recordando-nos, aliás, como esta, ao
longo dos séculos, foi manipulada até para justificar a escravatura; e bem nos
recordamos da cena do verdugo a lê-la, aos escravos em quem bateria ou mandaria
bater, em “12 anos escravo”, de Steve McQueen, 2013) já tivesse morrido
entretanto, um dos homens-fortes da Nickel daquele tempo permanecia vivo, aos
95 anos, e receberia uma condecoração pela comunidade (e quando um furtivo
órgão de comunicação social o questiona sobre as alegações de violência no
passado, nega, um pouco de disciplina, sim, mas mais nada), modo de nos
reafirmar a perpetuação de um grave equívoco.
Os rapazes que vão parar ao reformatório são quase todos órfãos. Mesmo Elwood poderia assim ser considerado (apesar da avó o ter ido visitar várias vezes, mas sem nunca ter tido conhecimento do que lhe ali haviam feito, até por este pretender não magoar a avó, negando-lhe, assim, esse conhecimento). Ninguém estaria à espera deles quando saíssem do colégio. “Alugados” por membros abastados da comunidade local em que se inseriam, faziam os mais variados trabalhos (forçados), sob a capa (vitoriana) dos bons costumes e da regeneração (moral) pelo trabalho. E não é só o monstruoso “o trabalho liberta” que nos recorda Auschwitz e o testemunho de Primo Levi, em Se isto é um homem: é em todos os personagens a noção de que mesmo os que saíram de Nickel, nunca Nickel saiu deles e a marcá-los a ferro para sempre (muitos arrastaram-se em vida de drogas ou alcoolismo, raramente conseguindo ter relações pessoais estáveis, várias mortes precoces e a empresa que um destes funda, e em possivelmente se achando, justamente, vitorioso (com o turning point na sua vida), tem, afinal, o nome da alcunha [os “Ás”] que se dá aqueles que estão “no ponto” [de conformidade a Nickel] para saírem da instituição…qual traição do inconsciente, “acto falhado”); a exortação ao cuidado próprio e dignidade para não perecer ao jugo totalitário; a arbitrariedade como (falta de) lógica para fazer quebrar a pessoa (aqui, a pessoa menor); os “prisioneiros” postos muitas vezes uns contra os outros, praticando crimes uns contra os outros (a luta que leva Elwood, no seu impulso pela benevolência e justiça, a ir separar os colegas de instituição que brigam entre si, à “Casa Branca” foi deliberadamente encenada para alguém cair nela e ir parar, depois, aquele local: “Spencer tinha uma cara severa, mas quando tocou no enorme molho de chaves preso ao cinto, os cantos da boca pareceram arrepanhar-se de prazer, ou talvez assinalassem uma emoção mais obscura”, p.59)…
Talvez a mais funesta das conclusões retiradas por Turner, em “Os rapazes de Nickel”, seja que aquilo que se passava na instituição era apenas o mesmo que as pessoas eram fora dela, mas agora libertas de qualquer filtro social e imagem alguma a preservar [“Antes, eu pensava que lá fora havia um mundo e aqui havia outro (…) Mas agora que estive lá fora e vim aqui parar outra vez, sei que aqui não há nada que mude as pessoas. Aqui e lá fora é tudo igual, só que aqui ninguém tem de fingir”, p.95] (o que podendo documentar um tempo, e ser uma imagem para a exclusiva questão do racismo, não deixa de poder sondar ou flirtar o mais denso pessimismo antropológico…com o qual se debate Elwood, com retidão, nobreza e generosidade bastantes [“«Estou aqui preso, mas aproveitarei isto o melhor que puder», disse Elwood a si mesmo, «e farei que seja breve»” (p.77)– e, seja a narrativa de Colson Whitehead, seja o que a (real) história dos últimos 50 anos, deixa espaço para a tensão/decisão permanente entre luz e escuridão de que falava Pascal).
Certo dia, há um combate de boxe na Nickel. Um branco e um negro defrontam-se. O negro é francamente favorito. Os combates de boxe são objecto de fortes apostas monetárias que recompensam os que colocam dinheiro naquele que virá a verificar-se como o resultado (certo) do combate. Evidentemente, a aposta no boxeur presumivelmente mais frágil (menos favorito) oferece um risco e um prémio superiores. Spencer, o ‘manda-chuva’ de Nickel, chama, porém, o previsível vencedor à parte dias antes do combate. Diz-lhe que tem que perder. A ordem é clara e a ameaça latente – a morte como castigo. Spencer vai apostar. Sabendo da superioridade de Griff, a ala negra do reformatório – a quem são dados os piores trabalhos, por exemplo no Natal, e que não são poupados ao “cómico” de rádio em séries racistas que se perpetuam pelos tempos – vive com imensa expectativa, ansiedade, esperança o anunciado confronto: “ruminavam a possibilidade de verem um campeão negro; um deles, uma vitória, para variar, e os outros, que os rebaixavam agora, reduzidos a pó, a ver estrelas” (p.129). Elwood e Turner, todavia, sabiam que não havia hipóteses. Griff perderia para evitar o “cemitério secreto” de Nickel; não tinha outra alternativa a não ser cumprir o pacto com Spencer. Ou não? “Começavam a perceber: Griff não iria ao tapete. E tentaria ganhar. Independentemente do que lhe acontecesse depois (…) Naquela noite, no ringue, Griff tinha sido todos eles num só corpo negro, e foi todos eles quando o homem branco o levou «lá para trás» e o amarrou aos dois aros de ferro (…) Dizia-se que [Griff] (…) recusou ajoelhar-se” (pp.132-133).
Esta
cena de “Os rapazes de Nickel” fez-me evocar, na história da luta da/pela
humana dignidade, aquela outra, histórica, passada em plena invasão nazi da
Ucrânia, contada por Eduardo Galeano, em “Futebol ao sol e à sombra” (Antígona,
2019; livro originalmente publicado em 1995): “Um monumento recorda, na
Ucrânia, os jogadores do Dínamo de Kiev de 1942. Em plena ocupação alemã, eles
cometeram a loucura de derrotar uma selecção de Hitler no estádio local. Tinham
sido advertidos:
-
Se ganham, morrem.
Entraram resignados a perder, tremendo de medo e de fome, mas não conseguiram aguentar as ganas de ser digno. Os onze foram fuzilados com as camisolas vestidas, no alto de um barranco, quando terminou o jogo.” (na revisão desta história, Mickael Correia, no mais recente “Uma história popular do futebol” [Orfeu Negro, 2020; original, 2018], detalhando todas as circunstâncias e juízos que haviam sido feitos em torno desta, e ainda que com substancias diferenças relativamente ao relato de Galeano, mantém este elemento fundamental da mesma: ao intervalo, “nos balneários, os jogadores ucranianos terão recebido a visita de oficiais nazis que lhes pediram para pensar duas vezes «nas consequências» de uma vitória”, p.124).
Quer o pai, quer o marido de Harriet, a avó de Elwood, haviam perecido, apenas pela cor da sua pele, às mãos das injustiças dos homens, pelo que esta adopta como credo nunca pretender ir para lá do lugar (social) em que nasceu, congeminando como cósmico castigo a madrasta sorte que advenha de um qualquer tipo de saltar a cerca (que os seus, sejam familiares, sejam os que consigam partilham a cor de pele, ousem: “se agires acima da tua posição social vais pagar por isso, pensava Harriet. Fosse a ira de Deus (porque ela queria mais do que a porção que lhe era devida) ou fosse o homem branco (ordenando-lhe que parasse de pedir mais migalhas do que ele estava disposto a oferecer)” (p.42). Acomodação a um (ocidental) sistema de castas – incluindo, aqui, com maior ou menor sentido de ironia, a sanção/ratificação cósmica [e daí Elwood não poder confiar à avó a carta com denúncias de Nickel; face à mentalidade desta, a missiva iria, por certo, parar à gaveta, com o intuito de poupar o neto a piores males, com o conhecimento das atrocidades e intuição do seu denunciante]-, ainda que permeado por uma (talvez felizmente contraditória) esperança em que no futuro a situação venha a ser distinta.
Baseado numa história real, e com amplo acervo bibliográfico como preparação para a criação de uma intriga própria – nele incluído biografias, livros de memórias de quem passara por semelhantes experiências -, o relato de Colson Whitehead possui uma intensa vibração emocional, um poder, muito forte, de sugerir, capacidade de surpreender o leitor, num estilo vigoroso de denúncia e interrogação, num ritmo audaz. Achados arqueológicos, nesta década, junto do colégio que serve de suporte a esta narrativa foram noticiados em todo o mundo. Colson Whitehead foi vencedor do Pulitzer.
Pedro Miranda
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