CONVINCENTE ESTREIA DRAMATÚRGICA DE PEDRO MEXIA, COM 'SUÉCIA', NO TEATRO NACIONAL DE SÃO JOÃO

 

CONVINCENTE ESTREIA DRAMATÚRGICA DE PEDRO MEXIA, COM ‘SUÉCIA’, NO TEATRO NACIONAL DE SÃO JOÃO
Não admira, assistindo a ‘Suécia’, que Pedro Mexia se afirme mais afeiçoado aos diálogos do que à intriga – no teatro, no cinema, na literatura… –, tão bem trabalhadas e centrais (nesta sua peça) as falas (as personagens gostam da dialética em si mesma [“aqui discute-se muito, fala-se muito, mas nada se resolve”], por isso preferem, até, ser contrariadas (pelas outras personagens), porque isso lhes permite a contra-resposta, a refutação, a réplica, o jogo (retórico – e, porventura, ainda, aí resida a permanente referência “aos teus sofistas”, dirigida a Egerman que, depois de um conjunto de catilinárias contra a social-democracia, acaba indiferente ao desfecho eleitoral das legislativas no seu país que, após mais de 40 anos ininterruptos em que governos social-democratas estiveram na liderança dos destinos públicos suecos (1932-1976), se vêem relegados do poder pelo partido do centro – “agora vou poder ser social-democrata em minha casa, porque a casa é minha”), como que cenarizado na mesa de pingue-pongue que surge no palco, regista Nuno Cardoso), nesta sua “primeira longa metragem” (como lhe chama) que permanecem connosco à saída do São João, à procura de serem desfiadas, por entre camadas múltiplas de significados e interpretações (a desocultar), incluindo, no testemunho de Nuno Cardoso, aos próprios autor e encenador (a cada nova interpretação da peça). Se, para Mexia, revisitar a Suécia idealizada de 1976 – o “modelo sueco”, a “social-democracia” em “estado puro” -, juntando-lhe a ambiência cultural oferecida pela “angústia metafísica” de Bergman e as peças de Strindberg, não era, propriamente, “a ideia mais ganhadora do mundo” (como diz ao Ípsilon); se, como escreve Jacinto Lucas Pires, “isto já não se faz” (sendo “isto” uma “peça de ideias”), que poderíamos nós querer mais, porém, do que a discussão/argumentação/debate de ideias políticas – a primeira “camada de provocação”, dada a sua ausência habitual (em especial os “fundamentos filosóficos” inerentes a uma dada visão política), sublinha, bem, Lucas Pires; mesmo quando conhecemos o refrão de virtudes/defeitos associados a um robusto Estado Social, e ao caso nórdico em particular, a revisitação é feliz e bem-conseguida; e, se acaso o que se pretende não é nem “um ensaio nem um artigo de opinião” (como Mexia refere à “Visão”), nem tão pouco falar (imediatamente) do dia de hoje (mas, antes, da ideal Suécia de 1976), não é menos verdade que a peça, desde logo no Egerman (António Fonseca) auto-confiante o bastante para dizer tudo o que lhe vai na cabeça, permite um contraste consciencializado face a um presente feito de auto-censura e cuidados mil (que colocamos em tudo o que dizemos, como regista o encenador, no fundo aludindo, pois, a uma perda de liberdade e de vozes fortes, como é a de Egerman, ainda que com o seu tom um tanto desesperado e snob) e “angústia metafísica?”.
Egerman fora marxista, desilude-se, e passa a um crítico severo, colérico, excessivo do Estado Social sueco: paternalista, burocrático, sufocante, cerceador da liberdade, desresponsabilizante (“sabes que, se te deste mal com o mundo, a culpa é do mundo, não sabes?”). Social-democrata devedor da “televisão soviética” (como lhe chama, à televisão pública sueca, o irónico, sarcástico, corrosivo Egerman – um dos traços que perpassam a peça e mais me surpreendem é o seu forte humor, a capacidade de mesclar muito as indagações filosóficas de um Kierkegaard, a angústia vem da indecisão, com as frases cortantes, de um humor afiado que surge, amiudadamente, na peça, num balanço bom entre os diálogos inteligentes e até densos com a leveza conferida pela fina graça das personagens) para o caso (televisivo) português (que lhe permitiu conhecer/ver o Bergman por inteiro, o que outro modo não ocorreria), Nuno Cardoso descortina no “o vento sopra onde quer” - que Egerman deixara escrito à filha Monika (os nomes jogam com personagens dos filmes de Ingmar Bergman, o cineasta que se exilou da Suécia por um caso atinente à fiscalidade, e que o levou, mesmo, a ser detido; jornais suecos houve que rejubilaram com a saída do cineasta, visto, surpreendentemente, pelos seus concidadãos, não raramente, naquele tempo, como “reaccionário”, isto, e por outra banda, apesar dos pedidos de homens como Olaf Palme para que o realizador de cinema não abandonasse a Suécia e da consideração de tantos outros -, a indicação da irrupção da surpresa como a constante da História o que, visto sob certo ângulo - quer dizer, colocando-se o encenador na pele de advogado do diabo - a social-democracia poderia abafar: ”o que é que a social-democracia, o estado-providência, de alguma forma tentam? Começam por produzir o bem-estar e o bem comum. Em certos casos, começam a resvalar para um ponto em que tentam controlar a surpresa. Ao controlar a surpresa, controla-se a vida. E isso torna-se sufocante”. Diversamente, argumentar-se-á, a social-democracia o que procura evitar é que, no plano social e nas concretas vidas pessoais, a Lei de Murphy se efetive, promovendo um cordão de segurança e protecção que impeça a queda numa vida que não respeite a dignidade humana e, com ela, com a potencial queda, o surgimento dos piores pesadelos que a história documentou. Ao longo da sua obra, Tony Judt arguiu que o surgimento do Estado Social ou Estado Providência – muito associado à social-democracia, mas também à democracia-cristã – se deu para que não mais uma multidão de desempregados, famintos, marginalizados, desesperados fosse colocada em situação de despoletar, de novo, a guerra. Foi com o objetivo da paz que ele se fez. A surpresa do “cada um por si”, sem rede ou protecção social, pode ser muito excitante para alguns, mas a “banalidade do bem” – sem o fervor revolucionário de um completo paraíso terrestre, mas com o preenchimento de um conjunto de padrões de civilidade, do mundo laboral à segurança social – contrasta com a irrupção do pior na história (Judt não deixou de advogar essa consciencialização do medo, inerente a uma regressão dos standards preconizados pelo ideário social-democrata, como muito relevante no debate político).
Não se sai na mesma depois de se verem os filmes de Bergman e de nada importa que se diga que pela época, nomeadamente no final dos anos 50 e durante os anos 60, em que presenteou os espectadores com personagens dilaceradas com o silêncio de Deus, o religioso não marcasse, sociologicamente, a Suécia (como os filmes de Bergman poderiam sugerir) faz questão de anotar Pedro Mexia: por um lado, a sua Suécia, país onde nunca esteve, é uma Suécia ideal (um “tipo ideal” de Suécia, uma Suécia “com aspas”; na Suécia real, escrevia, em Junho de 2005, Alexandre Pastor, “a indústria nacional floresceu graças à rentável escravidão de cem mil africanos nas colónias de Caribe. Escritores como Holber e H.C. Andersen possuíam ações na intitulada “Companhia dos Escravos”, e se o filósofo Kierkegaard pôde estudar foi porque o pai investira forte no comércio da escravatura (…) A ajuda da Suécia à Alemanha prolongou em nove meses a Segunda Guerra Mundial” e, escreve agora Sérgio Sousa Pinto, as cidades vão ressurgindo do desastre urbanístico do “auge” da época social-democrata, sendo certo que foi devido às oportunidades proporcionadas pelo estado social que, agora, é possível ver netos de lenhadores nas esplanadas a lerem Lobo Antunes); por outro, porque as questões ínsitas em filmes de Bergman, de cariz metafísico, podem colocar-se ainda muito depois daquela temporalidade (também sobre as questões colocadas em “O cavalo de Turim”, de Bela Tarr, já na segunda década do século XXI, se disse que “não eram deste tempo”, e independentemente do juízo de valor associado a tal expressão).
Uma espécie de grande ecrã/tela, ou moldura, com uma ilha ao fundo e uma bandeira sueca, no palco, parecem 'cenarizar' a tal Suécia ideal “paraíso perdido” da social-democracia. E é numa ilha que Egerman, um académico jubilado, misantropo, com um único amigo, Stromberg (nome dado por referência ao futebolista homónimo que jogou no campeonato português) reside. A interpretação de que a senha que deixara, há décadas, à filha – “o vento sopra onde quer” -, significa, que, ao contrário dele, esta ainda vai a tempo de escapar da petrificação, do não ficar preso a um tempo, a uma dada visão do mundo (ou da não aceitação do falhanço daquela, e de um passo em frente se reclamar) e do seu lugar nele (e da não aceitação da transitoriedade, do devir) faz todo o sentido, sendo que, todavia, “o vento sopra onde quer” é, ainda, uma citação bíblica (estamos no mundo protestante, luterano, onde é comum o conhecimento das Escrituras; Jo 8:3) e não deixa de ser possível, se quisermos rimar Egerman com outras personagens desesperadas de Bergman, entender que quando faz notar que em todas as fotografias que a mulher regressada, qual fantasma – ela que teve que mentir para se separar do marido –, o faz rever, o que impressiona é que o vento estava sempre presente (O espírito sopra onde quer), que o atirar das fotos aos chão se deve não apenas ao não querer lidar com estas e com a presença, nelas, de Marianne (Patrícia Queirós que, para o relativamente pouco tempo em cena adquire uma força considerável) mas, ainda, a essa relação perdida, ou alterada, com o vento (nele nunca a “brisa suave”) – qual o prazer de pescar?, pergunta Egerman (desesperado) a Stromberg (pacificado): estar à espera.
No caderno oferecido sobre a peça (que neste texto-síntese se cita), com Pedro Mexia a receber os espectadores à entrada do TNSJ, fica clara, por outro lado, a influência que o também poeta, ensaísta, cronista assacara aos escritos da Suécia de Susan Sontag. Tendo estado naquele país sete meses a rodar um filme, Sontag, em extenso registo epistolar (publicado em 1969), descreve aquele país nórdico como habitado por pessoas anestesiadas a nível sensorial, de porte hirto, um mundo reprimido, em que “o silêncio é o vício nacional”, a bebida é “válvula de escape”, a reserva e a dificuldade de expressar sentimentos muito evidentes, a misantropia apreciada, a ansiedade nas relações – com o outro e consigo mesmo – marcada, a paixão pela natureza fortíssima, e com a qual compete apenas “a política de esquerda” (“único objecto rival enquanto objecto de paixão respeitável”). Aliás, em termos políticos, no dizer de Sontag – situada, ideologicamente, na esquerda da esquerda; e foram críticas ao “modelo sueco” por parte de intelectuais de esquerda que mais chamaram a atenção de Mexia -, não estamos perante um “país socialista”, sendo que 91% da economia está nas mãos de privados, ainda que os impostos possam assumir taxas de 80%. Contudo, por melhores que sejam as reformas políticas empreendidas pelos seus governantes, estas não interferem “na raiz” com os suecos ao nível do seu “temperamento” (“estado de depressão crónica”), dado que é possível ler descrições, sobre estes, dos séculos XVII, XVIII e XIX que condizem com o que se pode observar ao avançar-se para o último terço do século XX.
Se fosse para falar da social-democracia (a Suécia como “perfeição em liberdade”, por oposição a uma “perfeição” de tipo totalitário), enquanto fim em si mesmo, Mexia não teria escrito esta peça; aquele tema, todavia, permitiu-lhe investigar sobre a felicidade (que lhe interessa), a porosidade público/privado (do o pessoal é político ao o político é pessoal; incluindo as discussões com a filha, nas quais só aparentemente se discutindo política), a vida familiar, a desilusão. O mínimo da intriga é, no entanto, o máximo onde isto se joga, o casamento de Monika (“os casamentos deviam ser contratos a termo certo. Ou planos quinquenais, que é mais sueco”), que regressa à ilha para o anunciar ao pai. Este não aprecia, porém, Bjorg (ao qual, entre os adereços, não poderia faltar a bola de ténis, remetendo ao Borg homónimo), não propriamente “um génio”, alguém que mantenha um diálogo muito sofisticado – “na minha aldeia, não há pessoas angustiadas; só pessoas sofisticadas e que lêem muitos livros são angustiadas” -, preferindo o Professor, ao invés, o eterno estudante, o diletante Johannes, membro do que fora a Escola de Atenas (reunida, na ilha, em torno do Professor Egerman). Stromberg (Jorge Mota) explica a Monika – que diz que vai ser professora, o que resulta numa gargalhada paterna, referindo que é impossível porque ela não acredita na História, no valor da memorização e em tudo o que permitia uma transmissão de conhecimento/valores entre gerações – que a dor do pai assenta no facto de este ver a filha partir em casamento e o tempo em que este fora “útil” e “importante” perder-se (“mesmo na escuridão consigo ver-te”, dirá Egerman a Monika, no único momento de afecto declarado). Ao lado, Eva (Lisa Reis) é a espectadora, a “representante dos espectadores”, no palco, a única que, com Stromberg, parece fugir ao “sistema de ansiedades”.
Noite em cheio e em magnífica companhia, à entrada para o fim de semana, num Teatro Nacional de São João com muito público.

Pedro Miranda

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