A JORNADA DE IBRAHIMA BALDE, UM DOS ÚLTIMOS DA TERRA

 

“Há um problema que me preocupa: é o problema do Mediterrâneo. (…) É criminosa aquela exploração dos migrantes. (…). Recomendo-vos uma leitura: existe um livrito, pequeno, escrito por um migrante, que, para chegar da Guiné à Espanha, penso que gastou três anos, porque foi capturado, torturado, escravizado. A condição dos migrantes, naqueles campos de concentração do norte da África, é terrível. Ainda na semana passada, a associação mediterrânica Saving Humans estava a trabalhar para resgatar os migrantes que estavam no deserto entre a Tunísia e a Líbia, porque tinham-nos abandonado lá a morrer. O tal livro chama-se Hermanito (em italiano, tem como subtítulo «Fratellino») e lê-se em duas horas. Vale a pena! Lede-o, e vereis o drama dos migrantes antes de embarcar... (…). Aquilo é terrível... lede-o.” (Papa Francisco, voo de regresso a Roma, proveniente de Lisboa, após a Jornada Mundial da Juventude, em resposta às questões dos jornalistas presentes na viagem. Vide vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2023/august/documents/20230806-portogallo-voloritorno.html)

 

IRMÃOZINHO

Elaborado a partir de “uma lógica, uma sintaxe, uma poética particular, uma intuição para medir a longitude dos silêncios, o poço de uma tradição oral” que causa “assombro e uma estranha beleza” – a voz, a narração de Ibrahima Balde – e o registo escrito, com as “mãos a tremer” na inquirição da possibilidade de contar “uma ferida sem rasgar o pudor e a intimidade de quem a sofre” – o texto de Amets Arzallus Antia -, Irmãozinho (Blackie Books, 2023) leva-nos, descalços, a atravessar desertos tuaregues, campos de escravos, centenas de quilómetros sem comida ou água, um zodíac repleto de notas e a quase impossibilidade de sentar no mar sem cair, uma ansiedade e angústia a fugir dos que vendem e compram pessoas hora a hora, o sonho desfeito e crucificado de cuidar dos mais próximos, os bosques, quais guetos, de último refúgio sob perscrutação policial permanente, populações de dedo e gesto em riste em sinal de desprezo pelos últimos de todos (“nos países magrebinos, não nos respeitam. Se entrava numa loja para comprar alguma coisa, atiravam-me: ‘aqui, não queremos animais’. Ia pela calçada e ouvia insultos. Ou não diziam nada, mas tapavam o nariz ao passar ao meu lado”), os migrantes que de uma África remota sem dinheiro para tratar a diabetes dos pais, ou, sequer, para empreender uma viagem mais longa no interior do próprio território; qualquer chamada telefónica frequente, até, a repor os níveis de afecto que (re)moem corpo e alma, quase interdita. Na fímbria da desdita – culminada, aliás, na negação do direito de asilo, na Espanha onde acaba por aportar -, o bom de um católico na Líbia, Tanba, que toma Ibrahima por irmão, alojando-o em sua casa, ou o adolescente Ismail, de 14 anos, na Argélia que se encarrega de recuperar fisicamente o homem que vinha de atravessar, sem calçado, o deserto, a sede e os ventos de areia - e de lhe arranjar trabalho para poder continuar. Ou Amets, o jornalista-poeta solidário, que o resgata da invisibilidade e lhe ampara a voz, para quem o quiser ouvir.


Nascido na República da Guiné, cuja capital é Conacri, onde se falam vinte e cinco idiomas (mais o francês), Ibrahima Balde, de etnia fula e cuja língua materna é o pular, viverá, entre os cinco e os treze anos, com o seu pai, comerciante de calçado em banca de rua. Quando este adoece, com diabetes, ficando todo o dia deitado em casa, já o negócio conhecera melhores dias. Sem dinheiro para tratamentos, as horas sucedem-se e o “velho” Mamadou Bobo Balde morre. Ibrahima não tem, sequer, o dinheiro necessário para apanhar o próximo autocarro e percorrer centenas de quilómetros para ir contar à mãe o ocorrido. Não sendo tal, aliás, caso singular no bairro onde mora. Os habitantes, condoídos com a situação do rapaz ali perdido, quotizam-se e conseguem, finalmente, o dinheiro para o bilhete do bus.
A mãe, com mais três rebentos, vê-se na contingência de ter de vender duas ou três cabras, seu sustento, que asseguram as dezenas de euros com que o mais velho tentará a Líbia - para ganhar algum para a restante família. Ali, em trabalhos muito pesados, a dormir ao relento, num caixote, durante uma temporada, passa seis meses, com ajuda de um bom católico, Tanba, que o chega a tomar como irmão e o levará para sua casa (“Tanba era muito boa pessoa, não sei como agradecer tudo o que fez por mim. Deu-me comida, roupa e uma família. Vivi seis meses em sua casa”). Um telefonema do irmão (de sangue) - mais novo do que Ibrahima, mas mais velho que as outras duas irmãs que compõem a família – faz, porém, Ibrahima regressar à terra natal. A mãe, doente, ficara prostrada, e é às costas do ainda adolescente que chegará a um hospital. Nove kilós – digo kilós, em vez de quilómetros, porque assim parece mais próximo, e é assim que ali, no meu país, falamos, conta Ibrahima – com a mãe às costas, com as pontuais idas ao solo…para o homem respirar e ganhar novo fôlego. Recuperada a mãe, Ibrahima faz-se à vida, como aprendiz em transporte de mercadorias em camião. Isto dura cerca de três anos, período no qual apenas por três vezes consegue falar com o Irmãozinho. Da última ligação (telefónica) para casa, fica a saber que, ao contrário do que o irmão lhe prometera, este não prossegue a escola e a mãe desconhece, mesmo, o seu paradeiro. Consternado, com uma vontade indomável e um cortante sentimento de culpa (afinal, ele não enviara o dinheiro que não possuía por ser mero aprendiz, mas, desta forma, também não havia dado a real alternativa que achava que lhe cabia fornecer, como homem mais velho da família, para o irmãozinho continuar estudos), Ibrahima irá por toda a parte procurar o seu miñán. Neste salto de fronteiras, reentrará numa Líbia que vê como um país-prisão, onde toda a população, sem distinção civis-militares, se aproveitará da situação dos migrantes. Os principais senhores feudais, os senhores de guerra que resistem, criam autênticos campos de concentração [campos fortificados, ali como no Mali, onde se atira pão como se os destinatários do mesmo fossem cães], nos quais extorquirão ao tutano os migrantes, tratados, não raro, à bastonada, despojados de papéis – e sem papéis “não vales mais do que uma cabra” - para serem os derradeiros sem direitos da Terra. Quando a noite avança e existem já centenas que pagaram a viagem, os barcos, os zodíac avançam, então, para a água, e querem o maior número de pessoas nele, indiferentes às consequências que daí possam advir. Se, no último instante, alguém resiste a embarcar, se um medo, pois, sobrevém no programa para a Europa em algum potencial passageiro, uma bala basta. Caído por terra, não mais esse homem poderá reclamar o dinheiro (da passagem) ou contar a alguém o que ali se passa.
Passear pelas ruas da Líbia – “a Líbia está feita para se sofrer” - é sujeitar-se a uma saraivada de tiros, ou a um silêncio sepulcral antes da tempestade. Corpos arrastam-se pelo chão. Uma boleia pode ser engano fatal para um migrante (num camião em Kidal, Mali, em que embarca com muitas dezenas na mesma condição, Ibrahima vai cinco dias consecutivos sem que lhe seja dado de comer: “alguns vomitaram, outros fizeram-no nas calças; se tivesses vontade de urinar, tinhas que o fazer em cima dos outros, não há outra hipótese” -, todos os cantos do corpo revistados – “quando digo todo o corpo, quero dizer todos os buracos do corpo” – em busca do maior lucro com o humano), Ibrahima vendido a um novo “dono”, metido, no mesmo espaço físico dia e noite, com galinhas (semanas a fio), antes de se evadir e nos tornar muito palpável o medo de ser apanhado e, por consequência, imediatamente morto. Talvez nunca como quando, madrugada dentro, saltou, mesmo sob escolta tuaregue, um (autêntico) campo de concentração em Taalanda, no Mali, e correu, com um companheiro de fuga, desalmadamente, pelo errático deserto (mais de metade da Argélia e e mais de metade do Mali são deserto), sem fim e sem saída (sem bússola), uma mota avistada ao fundo do túnel (e não há remédio senão acenar-lhe), em definitivo, aceita o pagamento como contrapartida a levá-lo até a alguns quilómetros da Argélia (caminhando, depois, os kilós que faltam, entrevendo sempre o perigo iminente). O colega, porém, ficara para trás, Ibrahima não regressa para ajudar porque morreria, então, com aquele, mas penetram-no os gritos do amigo, apanhado pelos miúdos e graúdos tuaregues de Kalashnikov (“a Kalashnikov já faz parte do seu corpo”). Uma cena, o de não voltar para trás e arrastar consigo outro companheiro de viagem que se repete quando, caminhando muitos quilómetros a pé na Argélia, prossegue quando aquele cai por terra por não aguentar mais.
O regresso ao campo de Sabratha, em busca do irmão (“proteger essa criança, único objectivo da minha vida”), não apenas implicará ser torturado 24 horas por dia, como lhe trará a trágica notícia de que o irmão naufragou (com mais 144 pessoas) a caminho da Europa. Quer agora punir-se, ser (de novo) torturado como castigo por não ter salvo o irmão – decifrá-lo-á um novo seu próximo (vives com fantasmas). E, em realidade, a vida torna-se-lhe especialmente amarga.
Deixa, porém, nas mãos do Deus em que acredita – Ibrahima é muçulmano, vemo-lo, frequentemente a rezar e a entrar em mesquitas nos locais por onde passa, explicando, aliás, que um muçulmano, de todas as orações, aquelas a que não falta, seguramente, é às de sexta-feira – o seu destino último, voltar a casa ou ir para a Europa.
E no zodiac em que se senta no mar (pagou 2000 euros), chega a perder toda a esperança de que a vida ainda terá mais estações. Mas eis que um helicóptero se aproxima, do barco fazem-se (humanos) sinais e dali a 40 minutos este regressará com salva-vidas laranja, cor que os migrantes sabiam ser de auxílio.
De entre as malhas da sociedade civil espanhola que se preocupam com a condição das pessoas migrantes – a penúria de Ibrahima, e de tantos como ele (“assim é a vida e nunca podes dizer: eu sofro mais do que ninguém (…) Na Líbia, Argélia, Marrocos, gente perdida, desesperada, gente que prefere morrer, mas vive. Vive sem saber para onde, sem saber porquê”), como que o obrigaram a partir e, bem assim, o sentimento de injustiça material que invade o leitor quanto à denegação de um direito de asilo para o guineense concorre para que este sopese as fronteiras reais entre migrante económico e refugiado – aparece Amets Antia, o velho jornalista devotado, entretanto, ao ofício poético, o homem que faz amizade e conta o espantoso existir - sobretudo o de ter que viver com o bosque interior de imagens daquilo que presenciou, mais forte do que os atoleiros de florestas vigiadas por polícias em toda a parte - de Ibrahima Balde.

Pedro Miranda



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