BREVES NOTAS SOBRE "DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA", DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE

 

O autor

1-Alexis de Tocqueville, nascido, em 1805, em Paris, no seio de uma família monárquica e aristocrata da Normandia, cursou Direito na Sorbonne e, de imediato, ingressou na magistratura.
Após três séculos sob regime feudal, a sua França natal assistira, em 1789, ao eclodir de uma Revolução (em nome de um tríptico de valores que ficaria célebre: “liberdade, igualdade e fraternidade”). Ora, Tocqueville adere aos princípios liberais da Revolução Francesa, mas repudia os seus excessos violentos. Decide, então, conhecer melhor a jovem república americana, tendo, para o efeito, realizado uma viagem de estudo durante dez meses. Dela resultou o seu livro mais célebre, “De la Démocratie en Amérique” (vol.I, 1835; vol.II, 1840) que, em seguida, brevemente, nos propomos anotar.
Em realidade, incumbido, em 1832, de estudar o regime penitenciário dos EUA, Tocqueville “descobrirá além-Atlântico uma sociedade nova onde a igualdade civil, em que se detinha Royer-Collard, e a preponderância das classes médias, a que se limitava o pensamento de Guizot, são deliberadamente ultrapassadas. Enquanto um Duverger de Hauranne e um Odilon Barot se mantinham numa oposição limitada, Tocqueville descobre a democracia como fenómeno social que existe noutro sítio, e explica-a aos seus contemporâneos como sendo o seu futuro inevitável” [1].
Tendo tido uma breve passagem pela política (foi deputado e Ministro dos Negócios Estrangeiros), acabaria por se afirmar como escritor, sendo, igualmente, por muitos, considerado o fundador da Ciência Política Moderna [2]. De entre as principais obras por si publicadas, destacam-se:
- Do sistema penitenciário nos Estados Unidos e em França (1833);
- Da democracia na América, 2 vols. (1835-1840);
- O Antigo Regime e a Revolução (1856);
- Lembranças de 1848 (Ed. Post).
 
Da democracia na América e a intersecção do político com o religioso
 
2-O funcionamento, o modus operandis, as instituições, as convicções, as crenças, o mundo do trabalho, a diversidade religiosa, a opinião livre, a sociedade civil, numa palavra, todo o contexto, em que, na primeira metade do século XIX, opera/se realiza a democracia nos Estados Unidos da América e as lições que daí se podem tirar para o futuro democrático (do mundo; das nações europeias; da França, em especial) apresentam-se como principais topos e escopo do guião traçado por Alexis de Tocqueville em Da democracia na América.
 
3- Em uma obra com a extensão e amplitude de Da democracia na América, não se lobriga fácil o desiderato de circunscrever, com absoluto rigor, o (subconjunto do) acervo temático proposto pelo autor. Em todo o caso, parece-nos feliz a delimitação que, neste âmbito, sugere Diogo Freitas do Amaral [3]: o estudo sociológico da política – no que concerne às transformações sociais na passagem de uma sociedade feudal dominada pela aristocracia a uma sociedade democrática governada pelas classes médias; do fim dos privilégios de casta, em que a herança e a propriedade da terra são determinantes, para uma igualdade jurídica e social; da passagem dos senhores da terra para os empreendedores da cidade, etc.; o elencar das virtudes e perigos da (aproximação prática ao valor da) igualdade – entre a fórmula ideal “liberdade+igualdade = democracia”, mas com, por exemplo, a “tirania da maioria” (sobre minorias) a ser potencial fracasso substantivo (do governo da maioria); os riscos inerentes à democracia – com o “excesso de individualismo”, ou o “abuso das liberdades” a deverem ser equacionados; os modos de combate à sociedade massificada – com propostas de revitalização democrática; a ideia de um pacto de não-agressão entre crentes e não crentes – Tocqueville quer a reconciliação dos cristãos e seu forte liame com a democracia e, simultaneamente, fazer compreender a ateus e agnósticos quanto o cristianismo contribuiu, ao longo dos séculos, para a dignificação do humano - eis traços característicos/definidores deste livro.
Como objectivo precípuo das reflexões de Tocqueville a ideia de apreender o melhor regime possível para que o seu público – francês – pudesse ter devidamente em conta as condições em que germinava uma democracia pujante e as salvaguardas para se evitarem os seus piores defeitos. Capacitar a democracia; reanimar, se possível, as suas crenças; purificar os seus costumes; regular os seus movimentos; adaptar a democracia aos tempos e lugares, e modificá-la de acordo com as circunstâncias e os homens; produzir, em suma, uma nova ciência política. Eis, em síntese, uma coletânea de propósitos que poderíamos identificar ao longo do extenso escrito de Alexis de Tocqueville.
Suplementarmente, precisar-se-ia que, na Introdução desta obra, o autor busca seis explicações para a marcha da democracia, propondo que para esta concorrem, de maneira especial: a) crescimento económico; b) direitos de propriedade privada; c) tecnologia; d) guerra e conflito; e) Iluminismo; f) Cristianismo.
 
 
4. De um modo explicitamente formulado, ou reconstruindo a partir de diversas indicações do autor ao longo da obra – e tendo como pano de fundo as temáticas já apontadas como subjazendo à obra, com a expressa especificidade de aqui recobrirmos, também, a relação entre o fenómeno religioso e o fenómeno democrático -, cremos ser possível balizar um leque problematizador que se abre no horizonte deste livro:
- Na medida em que nele se reitera, incessantemente, a inevitabilidade do futuro democrático das nações, existirá uma teleologia, um fim (uma finalidade) da história (inscrita na história)?;
- A inevitabilidade (histórica) demonstrará que existe “progresso” na História?
- A partir de que prisma poderemos afirmar que todos os humanos são iguais? Que tipo de verdade se obterá com tal formulação?
-A democracia é compatível com a religião?
-Pode a religião beneficiar/fomentar o fenómeno democrático? Porquê?
- Se um dos factores propulsores da democracia, identificado por Tocqueville na Introdução de Da Democracia na América, foi o Cristianismo, será que fora deste quadro mundividencial a democracia poderá eclodir (igualmente)?
- Que instituições podem combater o individualismo (democrático)?
- Qual o papel da sociedade civil em uma democracia?
- Em que medida o Cristianismo pode ter contribuído para uma maior mobilidade social do que a existente até ao advento das sociedades democráticas?
- Implicará, necessariamente, a secularização uma hostilidade entre o político e o religioso?
- Quais os factores determinantes para que uma nação prospere?
 
Ao contrário de Hegel, Alexis de Tocqueville não é um filósofo da história. No entanto, em virtude da sua continuada referência à inevitabilidade democrática das nações -
 
“Os diversos incidentes da vida dos povos revertem, por toda a parte, em favor da democracia; todos os homens contribuem para tal com os seus esforços: aqueles que pretendiam cooperar para o seu sucesso e aqueles que não queriam de modo nenhum servi-la; os que por ela combateram e até os que se declaram seus inimigos; todos eles foram levados indiscriminadamente pelo mesmo caminho e todos trabalharam em comum, uns contra a sua própria vontade, outros sem o saberem, instrumentos cegos nas mãos de Deus.
O desenvolvimento gradual de condições é, portanto, um facto providencial, com as mesmas características principais que este: é universal, duradouro, escapa todos os dias ao poder dos homens; todos os acontecimentos, bem como todos os homens, contribuem para o seu progresso” (Tocqueville, Da democracia na América, Principia, Cascais, 2001, p.42) -
 
poderíamos ser tentados a ver em Da democracia na América uma apologia da ideia de determinismo histórico.
Ora, a resposta que Tocqueville dá à primeira interrogação (que acima anotámos) é a de que o que está a conduzir a Humanidade para uma igualdade e democracia crescentes é a mão de Deus – ou seja, o facto religioso desempenha um papel preponderante para a emergência da democracia. Como, todavia, Tocqueville não é um adepto acrítico da democracia, tal não implica, pois, a noção de um Deus benevolente (que estaria, assim, por detrás de um fenómeno que nem sempre é brilhante). Na verdade, a inevitabilidade democrática para as nações não implica, sempre e necessariamente para o autor, um progresso histórico. Ademais, como já sublinhámos, adicionalmente à mão divina, Tocqueville detecta outros factores determinantes para a democracia se tornar uma realidade (i) crescimento económico; ii) direitos de propriedade privada; iii) tecnologia; iv) guerra e conflito; v) Iluminismo…).
Relativamente, a uma outra questão suscitada - a saber, que tipo de conhecimento exprimimos quando dizemos que os “humanos são iguais? [em dignidade/valor]” - podemos questionar-nos com Francis Fukuyama: “terá a afirmação de Jefferson segundo a qual ‘todos os homens são criados iguais’ – princípio fundamental da democracia – o estatuto de uma verdade transcendente que a filosofia tem vindo, progressivamente, a compreender, por oposição a ser meramente o último de uma série de horizontes históricos (algo que relegaríamos, hoje, para a categoria de ‘cultura’)? Assim sendo, será o progresso histórico da democracia conduzido pelo progressivo desvendar desta verdade intemporal?” [4].
Desde logo, e com Pierre Manent, podemos afiançar que Tocqueville entendia que a democracia é, claramente, mais natural do que a aristocracia. Depois, sublinharemos que “vale a pena realçar que a crença moderna na igualdade do homem não é produto da filosofia, provindo antes da religião” [5]. Para Alexis de Tocqueville, a religião não é apenas compatível com a democracia, como, aliás, lhe fornece a seiva que lhe permite existir: “o advento de Jesus Cristo foi necessário para ensinar que todos os membros da raça humana são por natureza iguais e semelhante”. De resto, Tocqueville faz várias referências, ao longo do livro, “ao cristianismo como fonte de crença na igualdade do homem e no impacto sociológico que a Igreja Cristã teve na difusão da democracia ao longo dos séculos”. Não foi por acaso que a democracia prosperou primeiro em solo cristão, dirá.
Fukuyama regista, ainda, a este propósito: “uma vez mais, a posição de Tocqueville parece muito próxima da de Hegel: o princípio da igualdade é pela primeira vez apreendido pela religião, e a democracia é, basicamente, uma forma secularizada de cristianismo” [6].
A religião beneficiará, ainda, a democracia ao impelir para o futuro, ao preconizar a recompensa diferida, elemento, este, crucial ao florescimento humano, ao refrear os ímpetos mais materialistas, imediatos, egoístas do ser humano. Se a religião não deve estar contra o bem-estar, ela pode “purificar, regular e restringir” essa paixão e persuadir os homens “a enriquecer apenas por meios honestos” (II, I, v). E não deixa de ser particularmente curioso observar a relação: a aspiração ao bem-estar material é típica das sociedades democráticas, pois que nas sociedades aristocráticas o lugar/papel social de cada um está determinado à partida pelo que aqueles que nascem possidentes, sabendo não perder (nunca) essa posição, aspiram a outra coisa que não a prosperidade material (garantida), enquanto que os que estão na base da pirâmide social não ignoram que não podem ver alterado o seu estatuto, pelo que não, há, manifestamente, essa aspiração ao bem-estar material (inatingível); à medida que o amor ao bem-estar é tanto, nas sociedades democráticas, há uma propensão para o espiritualismo fanático, em virtude do atrofiamento promovido junto de uma dimensão fundamental do humano (as suas faculdades de abertura ao Transcendente) [7]. O comprometimento com o ideal democrático e com a vitalidade deste advirá, em grande medida, da formação dos costumes, hábitos, opiniões, para os quais a religião será fulcral. Na verdade, “a democracia não assenta em arranjos constitucionais, ou leis, mas nos ‘costumes da sociedade’, que abrange tanto os hábitos de coração como as opiniões. A religião é a fonte mais poderosa de ambos” [8].
Os partidos políticos, as associações cívicas, nomeadamente associações locais, a sociedade civil serão determinantes para a democracia poder florescer. A sociedade civil permite combater os excessos do Estado e os excessos do mercado e Da democracia na América é um locus classicus onde ela ganha presença e destaque [9]. Face ao enfraquecimento das tradicionais fontes de socialização, solidariedade e cidadania activa, Tocqueville identifica três tipos/fases da associação política livre que permitirão/se constituirão como antídoto face a tal constrangimento: agregações de crenças partilhadas que emergem a partir da liberdade de expressão, especialmente através dos mass media, como os jornais; liberdade de associação e, mais significativamente, convenções formais, em torno de partidos políticos. Em realidade, aduzirá Tocqueville, só as associações locais podem combater o isolamento do cidadão que não pode defender-se, significando, em muitos casos, outrossim, um verdadeiro impelir outros a agir. Associações civis e políticas reforçam-se mutuamente. Como escreve Seymour Martin Lipset, “uma democracia estável requer uma cultura coadjuvante” [10].
Ao permitir que homens humildes ascendessem socialmente – seja pelos estudos proporcionados pela Igreja (e subsequente inserção na sociedade civil), seja porque, no interior da ecclesia, homens humildes vieram a ter um papel determinante ao nível hierárquico – o cristianismo confundiu/alterou a principiologia baseada na herança e na perpetuação fundiária das sociedades aristocráticas.
Da democracia na América coloca reais dificuldades aos teóricos da modernidade que a associavam ao recuo da religião. Com efeito, a visita de Alexis de Tocqueville a solo americano permitiu-lhe constatar que bem ao invés do sucedido em França, ali há uma clara compatibilidade entre o espírito de liberdade e de igualdade e o espírito da religião e justiça social. Estando a religião afastada, por um lado, de concretas reivindicações políticas e de específicas forças partidárias – ao contrário do que sucedeu na Europa; estando esta, por outro lado, não totalmente concentrada em comuns/partilhadas subtilezas teológicas, na medida em que o pluralismo de Igrejas Cristãs não permitiria um assentimento homogéneo a uma dada exegese (particular); estando as Igrejas empenhadas, por conseguinte, em uma dimensão estritamente moral, de formação de hábitos e costumes nas populações – recusa do egoísmo, do materialismo absolutizado, da satisfação em termos exclusivamente imediatos; reforço do compromisso com o bem comum, participação em favor dos demais – elas contribuíam, de modo inequívoco, para o bom andamento democrático nos EUA.
Um dos grandes legados do Cristianismo é a separação entre César e Deus. Efectivamente, a separação entre as esferas temporal e espiritual contribuiu, de sobremaneira, para a existência de condições e sentimentos democráticos [11]. É que, sublinhe-se devidamente, o Cristianismo nega á força política e militar a reivindicação soberana de uma total autoridade em todos os assuntos humanos. Sem ele, a Europa teria permanecido feudal. Para a democracia não degenerar em despotismo, a religião apresentou-se, pois, como força indispensável.
 
Secularização pode ser entendida como a emancipação dos homens relativamente a todo o poder religioso e autoridade magistral, sendo que tendemos a conceber as sociedades democráticas como aquelas em que o indivíduo pensa e decide por si (advindo, portanto, o sujeito autónomo). Se esta emancipação se dá também, como vimos de referir, sobre o religioso, então as “crenças dogmáticas” – presentes na religião – poderão ficar em cheque (e eis como o fenómeno democrático interpela/influencia o religioso). Contudo, a religião, quando vivida com autenticidade, segundo os princípios evangélicos, pode exercer este papel de fazer respeitar um conjunto de absolutos (inegociáveis e indisputados) na vida em comum.
Na articulação entre o espírito religioso e o espírito democrático, com os EUA, nas primeiras décadas do séc.XIX, como pano de fundo, convém perceber como surgiram e foram sendo povoados os Estados Unidos. A América começou por ser povoada por homens que se tinham subtraído à autoridade do Papa, sem se sujeitarem, portanto, a qualquer supremacia religiosa. O Cristianismo que traziam na bagagem quando chegaram aos EUA traduzia-se na liberdade e na república, algo que produzia, igualmente, importantes efeitos nas esferas material e social, permitindo, de tal sorte, que política e religião não fossem duas realidades separadas, mas em interacção.
Se na pátria natal de Alexis de Tocqueville, se associa a religião ao poder, ao absolutismo, à submissão, à ausência de liberdade, à limitação da autonomia individual, nos EUA sucede exactamente o inverso. Estando apto a traçar o paralelismo entre as duas formas de coabitação – do político com o religioso -, o (nosso) autor poderá, agora, proceder a um juízo crítico relativamente às teorias da secularização que a assimilavam à modernidade (a ideia de que quanto mais modernidade, menos religião). O caso dos EUA desmentia, já se vê, esta realidade. “Longe de desaparecer, o religioso transformava-se e mostrava que modernidade e ultra-modernidade não são anti-religiosas, mas perfilham antes um religioso diferente”.
Tocqueville garante, por fim: a prosperidade de cada país está dependente das leis e dos costumes vigentes. Assim sendo, depende de todas e cada uma das nações “que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às luzes ou à barbárie, à prosperidade ou à miséria”.
 
As teses apresentadas por Alexis de Tocqueville, em Da democracia na América, representam - dos métodos utilizados na (construção de uma nova) Ciência Política até à identificação dos perigos que uma democracia liberal tendencialmente igualitária contém; da centralidade dos partidos políticos para o bom funcionamento da democracia até às associações da sociedade civil que se constituem como núcleos que irrigam o sistema democrático; das relações entre o fenómeno religioso e o fenómeno democrático até à problematização do fenómeno da secularização - uma clara ruptura face aquilo que até este ensaio era dado como certo na teorização produzida (até então) acerca destes temas (como detalharemos).

5. Em função da tese que pretende demonstrar – o futuro democrático inevitável entre as nações; o individualismo a necessitar de associações da sociedade civil que o combatam; a interacção entre religião e democracia, com o religioso a ser determinante para a boa formação dos cidadãos e a permitir manter viva a ideia de futuro e de recompensa diferida; a igualdade de condições como o que subjaz à democracia, para ela contribui de modo fundamental e sem a qual a democracia pode ficar em causa -, Alexis de Tocqueville faz uma rigorosa/exaustiva aproximação monográfica ao modo como é formada/vivida/experienciada a democracia na América dos anos 30 do século XIX. Socorre-se, ademais, de uma comparação sistemática com a sua França natal – no mesmo período temporal - e das nuances que existem nas aproximações democráticas entre estes dois países e, bem assim, com a situação na Inglaterra. O estudo da história, desde logo presente na Introdução quando se nota as mutações verificadas, pelo influxo do Cristianismo, para que a emergência da democracia pudesse vir a ser uma realidade, desde há 700 anos, tem, igualmente, lugar, com análises qualitativas a serem outra das marcas passíveis de serem observadas ao longo da obra; o texto mostra aos franceses, aos quais se dirige, quão decisiva será uma sociedade civil pujante (sem lutas fratricidas entre crentes e não crentes, por exemplo).

6.Há um conjunto de teses apresentadas por Alexis de Tocqueville, em Da democracia na América que representam uma clara inovação, uma ruptura face ao acquis de então:
- Substituição dos métodos clássicos da ciência política – os métodos filosófico, teológico e jurídico – por um método sociológico – com o qual penetra bem fundo na análise histórico-comparativa das sociedades inglesa, francesa e norte-americana [12];
- Espantosa antevisão dos países que, cerca de 100 anos depois deste seu escrito teriam “nas suas mãos o destino das duas metades do mundo”: América e Rússia, “uma fundada na liberdade e poder dos eleitores”, outra “na servidão, sob o poder de um só homem” [13];
- “O seu principal contributo para a História do Pensamento Político Ocidental foi o de, aceitando a democracia liberal tendencialmente igualitária, advertir que esta também tinha defeitos e inconvenientes. E proclamar: não há nenhuma fatalidade histórica que garanta o melhor, ou imponha o pior, a cada país, tudo depende das leis e costumes de cada um” [14];
- Tocqueville “descobrirá além-Atlântico uma sociedade nova onde a igualdade civil, em que se detinha Royer-Collard, e a preponderância das classes médias, a que se limitava o pensamento de Guizot, são deliberadamente ultrapassadas. Enquanto um Duverger de Hauranne e um Odilon Barot se mantinham numa oposição limitada, Tocqueville descobre a democracia como fenómeno social que existe noutro sítio, e explica-a aos seus contemporâneos como sendo o seu futuro inevitável” [15];
- Em Da democracia na América, Alexis de Tocqueville “não se contentou em descrever e definir a democracia. Se o tivesse feito, teria alcançado apenas uma fama honesta, a Academia das Ciências Morais, e não a Academia Francesa. À sua descrição de uma sociedade, acrescenta visões de futuro que a ‘tornam subitamente tão ilustre como o raio’. Ao lado do observador, há um politólogo genial, guiado pela noção histórica da continuidade e pela noção filosófica da necessidade” [16];
- Tocqueville “recorre a uma noção nova, que irá ocupar um lugar cada vez mais importante na evolução posterior das doutrinas democráticas: a solidariedade. A seu ver, há que promover a ideia de que tanto dever como o interesse dos homens é tornarem-se úteis aos seus semelhantes. Essa meta será atingida nomeadamente depois de uma descentralização deliberada que dê uma vida política a cada porção de território, a fim de multiplicar até ao infinito as oportunidades de os cidadãos agirem em conjunto e lhes fazer sentir diariamente que dependem uns dos outros” [17];
- “Pela sua abertura ao futuro, Tocqueville ultrapassa largamente, em poder de análise e amplitude de visão, os outros escritores da Escola Liberal. Realiza o tipo contemporâneo do political scientist, que não é filósofo nem jurista, nem historiador, mas tudo isto ao mesmo tempo, e mais ainda” [18];
- A ideia de que sem partidos não há democracia; a perspectiva de que estes constituem a forma de a maioria da população entrar/influenciar os governos; a centralidade, em suma, que estes adquirem, na obra de Tocqueville, para o bom funcionamento democrático revela “uma presciência rara” [19];
- A temática da relação entre o Cristianismo e a democracia e a sua potencial universalidade revelou-se – e revela-se – de suma importância para o futuro da democracia no mundo [20];
- As vastas referências ao modo como os corpos intermédios são fulcrais para irrigar o sangue democrático das sociedades fizeram de Da democracia na América um lugar clássico da problematização da “sociedade civil” [21];
- Em Da democracia na América, Tocqueville mostrou a compatibilidade da religião com a democracia, o modo como estas se podem reforçar mutuamente – algo que em virtude da experiência francesa estava longe de ser um dado adquirido – e, mais do que isso, demonstrou que mais modernidade não significa menos religião, podendo, ao invés, haver profícua interacção entre estas. Neste sentido, colocou aí em cheque os teóricos da modernidade [22].

Pedro Miranda
 
 
 

[1] G. LESCUYER e M. PRÉLOT, História das ideias políticas – vol. II, Presença, Lisboa, 2000, p.106.

[2] D.F. AMARAL, História do pensamento político ocidental, Almedina, Lisboa, 2012, p.332.

[3] Cf. Ibidem.

[4] F. FUKUYAMA, A marcha da igualdade, in Nova Cidadania, Ano III, número 9, Julho/Setembro 2001, p.15.

[5] Ibidem.

[6] F. FUKUYAMA, o.c., p.16.

[7] J.C.ESPADA, Prosperidade e bem-estar material na perspectiva de Tocqueville, in o.c., p.38 e ss.

[8] H. FRADKIN, A democracia precisa da religião?, in o.c., p.33.

[9] W.A. GALSTON, A sociedade civil e a “Arte da associação”, in o.c., p.25.

[10] S.M.LIPSET, A indispensabilidade dos partidos políticos, in o.c., p.18.

[11] H. FRADKIN, o.c. p.33 e ss.

[12] D. F.AMARAL, o.c., p.342.

[13]Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] G. LESCUYER e M.PRÉLOT, o.c., p.106.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, p.109.

[19] Ibidem, p.110.

[20] Cf. F.FUKUYAMA, o.c.

[21] Cf. W.A. GALSTON, o.c.

[22] Cf. Mª.E.LEANDRO, o.c.



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