BREVES NOTAS SOBRE "DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA", DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE
O
autor
Após três séculos sob regime feudal, a sua França natal assistira, em 1789, ao eclodir de uma Revolução (em nome de um tríptico de valores que ficaria célebre: “liberdade, igualdade e fraternidade”). Ora, Tocqueville adere aos princípios liberais da Revolução Francesa, mas repudia os seus excessos violentos. Decide, então, conhecer melhor a jovem república americana, tendo, para o efeito, realizado uma viagem de estudo durante dez meses. Dela resultou o seu livro mais célebre, “De la Démocratie en Amérique” (vol.I, 1835; vol.II, 1840) que, em seguida, brevemente, nos propomos anotar.
Em realidade, incumbido, em 1832, de estudar o regime penitenciário dos EUA, Tocqueville “descobrirá além-Atlântico uma sociedade nova onde a igualdade civil, em que se detinha Royer-Collard, e a preponderância das classes médias, a que se limitava o pensamento de Guizot, são deliberadamente ultrapassadas. Enquanto um Duverger de Hauranne e um Odilon Barot se mantinham numa oposição limitada, Tocqueville descobre a democracia como fenómeno social que existe noutro sítio, e explica-a aos seus contemporâneos como sendo o seu futuro inevitável” [1].
Tendo tido uma breve passagem pela política (foi deputado e Ministro dos Negócios Estrangeiros), acabaria por se afirmar como escritor, sendo, igualmente, por muitos, considerado o fundador da Ciência Política Moderna [2]. De entre as principais obras por si publicadas, destacam-se:
- Do sistema penitenciário nos Estados Unidos e em França (1833);
- Da democracia na América, 2 vols. (1835-1840);
- O Antigo Regime e a Revolução (1856);
- Lembranças de 1848 (Ed. Post).
Como objectivo precípuo das reflexões de Tocqueville a ideia de apreender o melhor regime possível para que o seu público – francês – pudesse ter devidamente em conta as condições em que germinava uma democracia pujante e as salvaguardas para se evitarem os seus piores defeitos. Capacitar a democracia; reanimar, se possível, as suas crenças; purificar os seus costumes; regular os seus movimentos; adaptar a democracia aos tempos e lugares, e modificá-la de acordo com as circunstâncias e os homens; produzir, em suma, uma nova ciência política. Eis, em síntese, uma coletânea de propósitos que poderíamos identificar ao longo do extenso escrito de Alexis de Tocqueville.
Suplementarmente, precisar-se-ia que, na Introdução desta obra, o autor busca seis explicações para a marcha da democracia, propondo que para esta concorrem, de maneira especial: a) crescimento económico; b) direitos de propriedade privada; c) tecnologia; d) guerra e conflito; e) Iluminismo; f) Cristianismo.
- A inevitabilidade (histórica) demonstrará que existe “progresso” na História?
- A partir de que prisma poderemos afirmar que todos os humanos são iguais? Que tipo de verdade se obterá com tal formulação?
-A democracia é compatível com a religião?
-Pode a religião beneficiar/fomentar o fenómeno democrático? Porquê?
- Se um dos factores propulsores da democracia, identificado por Tocqueville na Introdução de Da Democracia na América, foi o Cristianismo, será que fora deste quadro mundividencial a democracia poderá eclodir (igualmente)?
- Que instituições podem combater o individualismo (democrático)?
- Qual o papel da sociedade civil em uma democracia?
- Em que medida o Cristianismo pode ter contribuído para uma maior mobilidade social do que a existente até ao advento das sociedades democráticas?
- Implicará, necessariamente, a secularização uma hostilidade entre o político e o religioso?
- Quais os factores determinantes para que uma nação prospere?
O desenvolvimento gradual de condições é, portanto, um facto providencial, com as mesmas características principais que este: é universal, duradouro, escapa todos os dias ao poder dos homens; todos os acontecimentos, bem como todos os homens, contribuem para o seu progresso” (Tocqueville, Da democracia na América, Principia, Cascais, 2001, p.42) -
Ora, a resposta que Tocqueville dá à primeira interrogação (que acima anotámos) é a de que o que está a conduzir a Humanidade para uma igualdade e democracia crescentes é a mão de Deus – ou seja, o facto religioso desempenha um papel preponderante para a emergência da democracia. Como, todavia, Tocqueville não é um adepto acrítico da democracia, tal não implica, pois, a noção de um Deus benevolente (que estaria, assim, por detrás de um fenómeno que nem sempre é brilhante). Na verdade, a inevitabilidade democrática para as nações não implica, sempre e necessariamente para o autor, um progresso histórico. Ademais, como já sublinhámos, adicionalmente à mão divina, Tocqueville detecta outros factores determinantes para a democracia se tornar uma realidade (i) crescimento económico; ii) direitos de propriedade privada; iii) tecnologia; iv) guerra e conflito; v) Iluminismo…).
Relativamente, a uma outra questão suscitada - a saber, que tipo de conhecimento exprimimos quando dizemos que os “humanos são iguais? [em dignidade/valor]” - podemos questionar-nos com Francis Fukuyama: “terá a afirmação de Jefferson segundo a qual ‘todos os homens são criados iguais’ – princípio fundamental da democracia – o estatuto de uma verdade transcendente que a filosofia tem vindo, progressivamente, a compreender, por oposição a ser meramente o último de uma série de horizontes históricos (algo que relegaríamos, hoje, para a categoria de ‘cultura’)? Assim sendo, será o progresso histórico da democracia conduzido pelo progressivo desvendar desta verdade intemporal?” [4].
Desde logo, e com Pierre Manent, podemos afiançar que Tocqueville entendia que a democracia é, claramente, mais natural do que a aristocracia. Depois, sublinharemos que “vale a pena realçar que a crença moderna na igualdade do homem não é produto da filosofia, provindo antes da religião” [5]. Para Alexis de Tocqueville, a religião não é apenas compatível com a democracia, como, aliás, lhe fornece a seiva que lhe permite existir: “o advento de Jesus Cristo foi necessário para ensinar que todos os membros da raça humana são por natureza iguais e semelhante”. De resto, Tocqueville faz várias referências, ao longo do livro, “ao cristianismo como fonte de crença na igualdade do homem e no impacto sociológico que a Igreja Cristã teve na difusão da democracia ao longo dos séculos”. Não foi por acaso que a democracia prosperou primeiro em solo cristão, dirá.
Fukuyama regista, ainda, a este propósito: “uma vez mais, a posição de Tocqueville parece muito próxima da de Hegel: o princípio da igualdade é pela primeira vez apreendido pela religião, e a democracia é, basicamente, uma forma secularizada de cristianismo” [6].
A religião beneficiará, ainda, a democracia ao impelir para o futuro, ao preconizar a recompensa diferida, elemento, este, crucial ao florescimento humano, ao refrear os ímpetos mais materialistas, imediatos, egoístas do ser humano. Se a religião não deve estar contra o bem-estar, ela pode “purificar, regular e restringir” essa paixão e persuadir os homens “a enriquecer apenas por meios honestos” (II, I, v). E não deixa de ser particularmente curioso observar a relação: a aspiração ao bem-estar material é típica das sociedades democráticas, pois que nas sociedades aristocráticas o lugar/papel social de cada um está determinado à partida pelo que aqueles que nascem possidentes, sabendo não perder (nunca) essa posição, aspiram a outra coisa que não a prosperidade material (garantida), enquanto que os que estão na base da pirâmide social não ignoram que não podem ver alterado o seu estatuto, pelo que não, há, manifestamente, essa aspiração ao bem-estar material (inatingível); à medida que o amor ao bem-estar é tanto, nas sociedades democráticas, há uma propensão para o espiritualismo fanático, em virtude do atrofiamento promovido junto de uma dimensão fundamental do humano (as suas faculdades de abertura ao Transcendente) [7]. O comprometimento com o ideal democrático e com a vitalidade deste advirá, em grande medida, da formação dos costumes, hábitos, opiniões, para os quais a religião será fulcral. Na verdade, “a democracia não assenta em arranjos constitucionais, ou leis, mas nos ‘costumes da sociedade’, que abrange tanto os hábitos de coração como as opiniões. A religião é a fonte mais poderosa de ambos” [8].
Os partidos políticos, as associações cívicas, nomeadamente associações locais, a sociedade civil serão determinantes para a democracia poder florescer. A sociedade civil permite combater os excessos do Estado e os excessos do mercado e Da democracia na América é um locus classicus onde ela ganha presença e destaque [9]. Face ao enfraquecimento das tradicionais fontes de socialização, solidariedade e cidadania activa, Tocqueville identifica três tipos/fases da associação política livre que permitirão/se constituirão como antídoto face a tal constrangimento: agregações de crenças partilhadas que emergem a partir da liberdade de expressão, especialmente através dos mass media, como os jornais; liberdade de associação e, mais significativamente, convenções formais, em torno de partidos políticos. Em realidade, aduzirá Tocqueville, só as associações locais podem combater o isolamento do cidadão que não pode defender-se, significando, em muitos casos, outrossim, um verdadeiro impelir outros a agir. Associações civis e políticas reforçam-se mutuamente. Como escreve Seymour Martin Lipset, “uma democracia estável requer uma cultura coadjuvante” [10].
Ao permitir que homens humildes ascendessem socialmente – seja pelos estudos proporcionados pela Igreja (e subsequente inserção na sociedade civil), seja porque, no interior da ecclesia, homens humildes vieram a ter um papel determinante ao nível hierárquico – o cristianismo confundiu/alterou a principiologia baseada na herança e na perpetuação fundiária das sociedades aristocráticas.
Da democracia na América coloca reais dificuldades aos teóricos da modernidade que a associavam ao recuo da religião. Com efeito, a visita de Alexis de Tocqueville a solo americano permitiu-lhe constatar que bem ao invés do sucedido em França, ali há uma clara compatibilidade entre o espírito de liberdade e de igualdade e o espírito da religião e justiça social. Estando a religião afastada, por um lado, de concretas reivindicações políticas e de específicas forças partidárias – ao contrário do que sucedeu na Europa; estando esta, por outro lado, não totalmente concentrada em comuns/partilhadas subtilezas teológicas, na medida em que o pluralismo de Igrejas Cristãs não permitiria um assentimento homogéneo a uma dada exegese (particular); estando as Igrejas empenhadas, por conseguinte, em uma dimensão estritamente moral, de formação de hábitos e costumes nas populações – recusa do egoísmo, do materialismo absolutizado, da satisfação em termos exclusivamente imediatos; reforço do compromisso com o bem comum, participação em favor dos demais – elas contribuíam, de modo inequívoco, para o bom andamento democrático nos EUA.
Se na pátria natal de Alexis de Tocqueville, se associa a religião ao poder, ao absolutismo, à submissão, à ausência de liberdade, à limitação da autonomia individual, nos EUA sucede exactamente o inverso. Estando apto a traçar o paralelismo entre as duas formas de coabitação – do político com o religioso -, o (nosso) autor poderá, agora, proceder a um juízo crítico relativamente às teorias da secularização que a assimilavam à modernidade (a ideia de que quanto mais modernidade, menos religião). O caso dos EUA desmentia, já se vê, esta realidade. “Longe de desaparecer, o religioso transformava-se e mostrava que modernidade e ultra-modernidade não são anti-religiosas, mas perfilham antes um religioso diferente”.
Tocqueville garante, por fim: a prosperidade de cada país está dependente das leis e dos costumes vigentes. Assim sendo, depende de todas e cada uma das nações “que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às luzes ou à barbárie, à prosperidade ou à miséria”.
5. Em função da tese que pretende demonstrar – o futuro democrático inevitável entre as nações; o individualismo a necessitar de associações da sociedade civil que o combatam; a interacção entre religião e democracia, com o religioso a ser determinante para a boa formação dos cidadãos e a permitir manter viva a ideia de futuro e de recompensa diferida; a igualdade de condições como o que subjaz à democracia, para ela contribui de modo fundamental e sem a qual a democracia pode ficar em causa -, Alexis de Tocqueville faz uma rigorosa/exaustiva aproximação monográfica ao modo como é formada/vivida/experienciada a democracia na América dos anos 30 do século XIX. Socorre-se, ademais, de uma comparação sistemática com a sua França natal – no mesmo período temporal - e das nuances que existem nas aproximações democráticas entre estes dois países e, bem assim, com a situação na Inglaterra. O estudo da história, desde logo presente na Introdução quando se nota as mutações verificadas, pelo influxo do Cristianismo, para que a emergência da democracia pudesse vir a ser uma realidade, desde há 700 anos, tem, igualmente, lugar, com análises qualitativas a serem outra das marcas passíveis de serem observadas ao longo da obra; o texto mostra aos franceses, aos quais se dirige, quão decisiva será uma sociedade civil pujante (sem lutas fratricidas entre crentes e não crentes, por exemplo).
- Espantosa antevisão dos países que, cerca de 100 anos depois deste seu escrito teriam “nas suas mãos o destino das duas metades do mundo”: América e Rússia, “uma fundada na liberdade e poder dos eleitores”, outra “na servidão, sob o poder de um só homem” [13];
- “O seu principal contributo para a História do Pensamento Político Ocidental foi o de, aceitando a democracia liberal tendencialmente igualitária, advertir que esta também tinha defeitos e inconvenientes. E proclamar: não há nenhuma fatalidade histórica que garanta o melhor, ou imponha o pior, a cada país, tudo depende das leis e costumes de cada um” [14];
- Tocqueville “descobrirá além-Atlântico uma sociedade nova onde a igualdade civil, em que se detinha Royer-Collard, e a preponderância das classes médias, a que se limitava o pensamento de Guizot, são deliberadamente ultrapassadas. Enquanto um Duverger de Hauranne e um Odilon Barot se mantinham numa oposição limitada, Tocqueville descobre a democracia como fenómeno social que existe noutro sítio, e explica-a aos seus contemporâneos como sendo o seu futuro inevitável” [15];
- Em Da democracia na América, Alexis de Tocqueville “não se contentou em descrever e definir a democracia. Se o tivesse feito, teria alcançado apenas uma fama honesta, a Academia das Ciências Morais, e não a Academia Francesa. À sua descrição de uma sociedade, acrescenta visões de futuro que a ‘tornam subitamente tão ilustre como o raio’. Ao lado do observador, há um politólogo genial, guiado pela noção histórica da continuidade e pela noção filosófica da necessidade” [16];
- Tocqueville “recorre a uma noção nova, que irá ocupar um lugar cada vez mais importante na evolução posterior das doutrinas democráticas: a solidariedade. A seu ver, há que promover a ideia de que tanto dever como o interesse dos homens é tornarem-se úteis aos seus semelhantes. Essa meta será atingida nomeadamente depois de uma descentralização deliberada que dê uma vida política a cada porção de território, a fim de multiplicar até ao infinito as oportunidades de os cidadãos agirem em conjunto e lhes fazer sentir diariamente que dependem uns dos outros” [17];
- “Pela sua abertura ao futuro, Tocqueville ultrapassa largamente, em poder de análise e amplitude de visão, os outros escritores da Escola Liberal. Realiza o tipo contemporâneo do political scientist, que não é filósofo nem jurista, nem historiador, mas tudo isto ao mesmo tempo, e mais ainda” [18];
- A ideia de que sem partidos não há democracia; a perspectiva de que estes constituem a forma de a maioria da população entrar/influenciar os governos; a centralidade, em suma, que estes adquirem, na obra de Tocqueville, para o bom funcionamento democrático revela “uma presciência rara” [19];
- A temática da relação entre o Cristianismo e a democracia e a sua potencial universalidade revelou-se – e revela-se – de suma importância para o futuro da democracia no mundo [20];
- As vastas referências ao modo como os corpos intermédios são fulcrais para irrigar o sangue democrático das sociedades fizeram de Da democracia na América um lugar clássico da problematização da “sociedade civil” [21];
- Em Da democracia na América, Tocqueville mostrou a compatibilidade da religião com a democracia, o modo como estas se podem reforçar mutuamente – algo que em virtude da experiência francesa estava longe de ser um dado adquirido – e, mais do que isso, demonstrou que mais modernidade não significa menos religião, podendo, ao invés, haver profícua interacção entre estas. Neste sentido, colocou aí em cheque os teóricos da modernidade [22].
Pedro Miranda
[1]
G. LESCUYER e M. PRÉLOT, História das
ideias políticas – vol. II, Presença,
Lisboa, 2000, p.106.
[2]
D.F. AMARAL, História do pensamento
político ocidental, Almedina,
Lisboa, 2012, p.332.
[3]
Cf. Ibidem.
[4]
F. FUKUYAMA, A marcha da igualdade,
in Nova Cidadania, Ano III, número 9,
Julho/Setembro 2001, p.15.
[5]
Ibidem.
[6]
F. FUKUYAMA, o.c., p.16.
[7]
J.C.ESPADA, Prosperidade e bem-estar
material na perspectiva de Tocqueville, in o.c., p.38 e ss.
[8]
H. FRADKIN, A democracia precisa da religião?, in o.c., p.33.
[9]
W.A. GALSTON, A sociedade civil e a “Arte
da associação”, in o.c., p.25.
[10]
S.M.LIPSET, A indispensabilidade dos
partidos políticos, in o.c., p.18.
[11]
H. FRADKIN, o.c. p.33 e ss.
[12]
D. F.AMARAL, o.c., p.342.
[13]Ibidem.
[14]
Ibidem.
[15]
Ibidem.
[16]
G. LESCUYER e M.PRÉLOT, o.c., p.106.
[17]
Ibidem.
[18]
Ibidem, p.109.
[19]
Ibidem, p.110.
[20]
Cf. F.FUKUYAMA, o.c.
[21]
Cf. W.A. GALSTON, o.c.
[22] Cf. Mª.E.LEANDRO, o.c.
Comentários
Enviar um comentário