"CAROS FANÁTICOS", DE AMOS OZ

 

Caros fanáticos. Amos Oz

1.Se há expressão generalizada, de um sentimento público, nos anos mais próximos (mas diríamos demasiados já), à escala mundial - na análise de Amos Oz (1939-2018), um dos mais reconhecidos e premiados escritores israelitas das últimas décadas, em “Caros Fanáticos” (D. Quixote, 2018) - é a “rejeição sem restrições”, um repúdio (pelo(s) outro(s)) “que cresce e se avoluma como o vómito das profundezas desta ou daquela miséria” (p.19). Há, aqui, como que um reativamento feroz da “essência perene da natureza humana”, do “«gene mau» nela presente - o fanatismo.

2.O fanatismo, anterior, pois, às grandes religiões, “mais antigo do que todas as ideologias do mundo”, pode ser descrito como envolvendo, por parte dos que nele se encontram absorvidos (em absoluto; em termos relativos, sendo “essência perene do humano”, pode ser despoletado, e observa-se, no mais recôndito dos quotidianos, devendo cada um estar consciente das/alerta para as suas próprias limitações neste contexto), uma consideração de que a vida é “um meio” e não “um objectivo”; caracteriza-se pelo evitamento do diálogo, do debate, da discussão: munido da certeza sobre como as coisas devem ser (receptáculo do justo, a impor aos demais, sem qualquer consideração de constrangimentos ou adversativas), não raro determinado por uma “iluminação” (que não admite interpretação e dilucidação) o fanático dispõe-se a operacionalizar o devido seja a que custo for – “o fanático não discute. Quando algo lhe parece mau, quando se convence que algo é mau aos olhos de Deus, o seu dever é exterminar imediatamente a abominação mesmo que para isso seja necessário matar o seu vizinho ou quem quer que se encontre a seu lado” (p.17). A santimónia entrincheirada em si mesma, sem portas nem janelas, navegando nas águas turvas do desprezo é problema maior dado que, regista Amoz Oz, a repulsa, em si mesma, não é, até, necessariamente má (mas apenas se esta não tiver boa(s) companhia(s)): “na escrita de Shakespeare, Dostoievsky, Brecht, Bialik, Brenner e Hanoch Levin, há uma componente corrosiva de repulsa. Uma componente corrosiva, mas não exclusiva: nesses grandes criadores, a repulsa é acompanhada por outros sentimentos, tais como compreensão, compaixão, saudade, humor e, até certa medida, simpatia” (p.27).
Em um mundo repleto de complexidade, num universo confuso – e que, em o sendo, recoberta fica, pois, a sua confusão, com um manto de invisibilidade (Badiou) -, a demanda por respostas simples a questões complexas declina não apenas na muito apontada procura de bode expiatórios para os problemas constatados/sentidos [pobreza, solidão, insegurança, alterações climáticas, guerra, ansiedade quanto ao funcionamento do elevador social ou face às migrações, desigualdades sociais no interior da mesma sociedade, esvaziamento da cultura autóctone, perda do sentido de pertença, alterações demográficas, etc.] - «a culpa é da globalização!», «a culpa é dos muçulmanos!», «é tudo por causa da permissividade!», «por causa do Ocidente!», «por causa dos refugiados!», etc. -, mas, ainda, na busca do conforto e imersão na tribo [algo, aliás, muito sublinhado por diferentes estudos acerca dos populismos hodiernos e do apelo que estes constituem para muitos indivíduos desconectados de um liame social em grande medida erodido] ou, não menos intensamente, no líder carismático (ou bufão de turno). Assim, como traços de personalidade do fanático poderemos observar um conformismo, uma obediência sem reflexão ou objecções, um seguidismo sem desvios, uma perda da individualidade e a náusea face ao dissenso: “aspira a fundir-se até à autoanulação (…) e identificar-se totalmente com as experiências e acções dos heróis do culto e das suas proezas (…) É cativado pelo sistema sofisticado de propaganda e lavagem ao cérebro, sistema que no início se dirige propositadamente ao lado infantil da pessoa, o lado sedento de se fundir, de voltar a rastejar para dentro de um útero quente, de voltar a ser uma pequena célula num corpo imenso, um corpo forte e protector (…) [movimento, partido, grupo, líder a que aderem] em cujas mãos colocam os adoradores as suas esperanças e sonhos e até o seu direito de pensar, de julgar e de tomar posição” (p.30).
Esta propaganda que infantiliza, indissociável de uma fronteira cada vez mais diluída entre “política e indústria do entretenimento”, cativa crianças cada vez mais…adultas, Peter Pan’s que votam não em programas ou ideias para um país, mas em quem as diverte. Talvez este seja um ponto não suficientemente destacado quando se olha para fenómenos, de ascensão de líderes que, a título emblemático mas não exclusivo, foram protagonistas de programas televisivos do mais baixo coturno e se ergueram a comandantes em chefe de ressonância mundial, causas múltiplas e complexas, mas em que este factor também deve constar do elenco do que explica o que parece absurdo: “nas eleições são cada vez mais as pessoas que votam por quem consegue emocioná-las e diverti-las, por quem domina todas as regras do jogo. Votam pela «cena», pela «galhofa» ou pela «piada». A expressão «não é normal» é agora um elogio entusiástico, tal como «espectáculo», «espantoso», «de loucura», «de morrer a rir», «de escaqueirar», ou até «de morte» ou «de morrer»” (p.31).
 
3.A imunização parcial ao fanatismo que havíamos recebido das catastróficas consequências do nazismo e do estalinismo está a dissipar-se: “durante umas dezenas de anos, graças aos maiores assassinos do século XX, os racistas tiveram alguma vergonha do seu racismo, os que destilavam ódio refrearam um pouco o seu ódio, os revolucionários fanáticos tiveram algum cuidado com as suas revoluções. Talvez não em todo o lugar, mas pelo menos nalguns. Nos últimos anos parece que esta «prenda» de Estaline, de Hitler e dos militaristas japoneses está a atingir o prazo de validade. A imunização parcial que recebemos está a dissipar-se. Ódio, fanatismo, rejeição do outro e do diferente, assassínio revolucionário, fúria de «esmagar de uma vez por todas os malvados todos em banhos de sangue» - tudo isto levanta novamente a cabeça” (p.25).
Por outro lado, há conflitos que não se resumem em tons de preto e branco e distinguir as várias espécies de mal, de cinzento, que há no mundo é necessário, caso não se pretenda prestar um serviço a esse mesmo mal [há na identificação de todo o mal como contendo a mesma gravidade, no continuum de um escândalo sucessivo, um contributo para, paradoxalmente, se tender ao conformismo com o mal e à ideia de que o mal tudo permeia sem mais, enquanto se procura a resposta que acabe com ele de uma vez só – e por todas…como se tal fosse possível]: “existem no mundo graus diferentes de mal. Distinguir entre os vários graus do mal é talvez a principal tarefa moral que a todos incumbe (…) Os defensores agressivos do ambiente, por exemplo, ou os adversários veementes da globalização, podem por vezes revelar-se fanáticos violentos. Mas o mal que causam é incomparavelmente menor do que o do fanático que comete um atentado numa multidão. E mesmo os crimes destes não se comparam com os dos fanáticos responsáveis por limpezas étnicas ou genocídios. Quem não é capaz ou não quer hierarquizar o mal acaba prestando um serviço a esse mesmo mal. Quem «mete no mesmo saco» o apartheid, o colonialismo, o Daesh, o sionismo, a violação da integridade política, as câmaras de gás, o sexismo, as fortunas dos magnatas, a poluição, pode acabar prestando serviço ao mal. Os fanáticos têm tendência a viver no mundo do preto e branco, no western simplista dos «bons» contra os «maus». O fanático é um tipo que só sabe contar até um” (p.28).
 
4.Acto verdadeiramente subversivo pode ser o da amizade com elemento(s) da tribo inimiga [a intifada original, note-se, é a dos judeus contra a ocupação britânica, nos anos imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial], logo apodada pelos nossos de traição, mesmo que traga, em gérmen, a empatia indissociável da vida em comunidade e signifique como normal a possibilidade de mudança: “no último ano do mandato britânico, tinha eu 8 anos travei amizade com um polícia britânico que falava hebraico antigo e conhecia quase toda a Bíblia hebraica de cor. Era um homem gordo, asmático, sensível e um pouco confuso, que acreditava sinceramente que o regresso do povo judeu à sua antiga terra era um prenúncio da salvação do mundo inteiro. Quando os meus amigos descobriram essa amizade começaram a chamar-me traidor. Passado muito tempo, comecei aos poucos a consolar-me com a ideia de que, para os fanáticos, traidor é aquele que ousa mudar. Os fanáticos de todo o género, tempo e lugar, odeiam a mudança e temem-na, considerando que não passa de traição resultante de motivações sombrias e baixas” (p.22). Não há apenas uma maneira de olhar para as coisas, nem um caminho único a trilhar mesmo no interior da mesma mundividência, pelo que se há coisa que o fanático demonstra ter é falta de imaginação: “o rapaz narrador de Uma ponte na cave entra na história como um sionista fanático, convencido da sua razão, mas duas semanas depois descobre, para sua surpresa, que há no mundo coisas que podem ser vistas de uma maneira, mas que também podem ser vistas de maneira totalmente diferente. Esta descoberta marca para o rapaz o fim da infância, mas oferece-lhe em troca uma experiência de abertura ao do mundo” (pp.22-23). Imaginação, humor e curiosidade que são, mesmo, os principais antídotos, ainda que parciais, para o fanatismo (p.42 e p.47).
 
5.Amoz Oz assinala diversas expressões históricas que o fanatismo assumiu – Genocídio, jihad, cruzadas, Inquisição, gulag, campos de morte e câmaras de gás, câmaras de tortura e atentados terroristas sem distinção -; este, recobre, pois, múltiplas e variegadas expressões e atravessa territórios vários - “aqueles que fazem explodir clínicas onde se fazem abortos, que matam refugiados na Europa, que assassinam mulheres e crianças em Israel, que lançam fogo a uma casa com toda uma família palestiniana lá dentro, pais e filhos, nos territórios ocupados por Israel, que profanam Igrejas, sinagogas, mesquitas e cemitérios” cometem aquilo a que hoje se chama “crimes de ódio” e se podia chamar “crimes de fanatismo” (p.18) -, pelo que se impunha a criação de cursos de “fanatismo comparado”: “talvez tenha chegado a altura de todas as universidades, escolas, instituições de educação proporem dois ou três cursos de fanatismo comparado, porque o fanatismo está a tomar conta de nós aqui em Israel e em muitos lugares em todo o mundo, no Oriente e no Ocidente, no Norte e no Sul” (p.23).  
Para o autor que ali viveu a sua infância e encruzilhada é, contudo, inevitável concentrar-se – e, a partir daí, ser um grande especialista da cadeira que propõe para lecionação - no “síndrome de Jerusalém”: “nos anos quarenta do século XX havia em Jerusalém bastante gente de mente aberta e vistas largas. Mas havia igualmente imensos autoproclamados profetas, salvadores e redentores. Até aos dias de hoje, quase um em cada dois ou três jerosolimitanos tem a sua própria versão de salvação instantânea. Muitos dizem (…) que se encontram em Jerusalém a fim de «construir e ser construídos nela», mas não são poucos os que entre eles, sejam judeus, muçulmanos, cristãos, revolucionários, radicais ou bons samaritanos, vieram para Jerusalém não para «construir e ser construídos nela», antes talvez para crucificar e ser crucificados nela.” (p.20).
 
6.Munindo-se de um sentido de humor desarmante, Amoz Oz olha o fanático como o maior dos altruístas, aquele que sabe o que é melhor para nós, e que se nós não o aceitamos/vemos, no-lo imporá à força (para nosso bem). Há no fanático uma ânsia de nos mudar, a fim de que sejamos igual a ele: “o fanático procura incansavelmente aperfeiçoar-nos e elevar-nos, abrir os nossos olhos para que nós também vejamos (…) Desse ponto de vista, o fanático é de facto uma criatura espantosamente altruísta, muito pouco egoísta: está muito mais interessado em nós do que em si” (p.33). Por isso, o fanatismo começa em casa: “as suas manifestações ligeiras, bem conhecidas de todos nós, exprimem-se pelo impulso tão comum de mudar um pouco os nossos queridos, os nossos filhos, o nosso irmão ou irmã, o nosso companheiro ou companheira, os nossos vizinhos, de mudá-los para o bem deles.” (p.37).
O fanático é, ao contrário do que possa julgar-se, mais feito de ideias sublimes do que de sadismo: “é verdade que existem sádicos a quem as imagens de violência e de órgãos desmembrados excitam os instintos, mas a maioria dos fanáticos não o é por sadismo, antes por toda a espécie de ideias sublimes, anseios de salvação e de conserto do mundo para os quais «têm de se ver livres dos malvados»” (p.41).
O grande escritor israelita propõe que da definição pela negativa de John Donne - «Nenhum homem é uma ilha» - se passe a uma asserção pela positiva do humano: “todo o homem é uma península” (p.50). Tal significa dizer que “todos nós estamos parcialmente ligados ao continente que é a família, a nossa língua, a sociedade, as crenças e as ideias, o país e a nação, etc…, enquanto a outra metade de nós está de costas para tudo isso e de frente para o mar, as montanhas, os elementos infinitos, os desejos secretos, a solidão, os sonhos, os medos e a morte” (p.50). O sábio articula eloquentemente sobre as forças que nos puxam, diversamente, para a fusão e anulação individuais, como, por exemplo, a nação ou certos movimentos ideológicos – e as demais que nos puxam para o isolamento e uma guerra darwinista, deixando, em conclusão, este conselho: “talvez seja conveniente que todas as casas, famílias, associações, sociedades e estados, todas as relações entre os seres humanos e, em particular a relação de casal e a parental, existam no encontro entre penínsulas: estar perto, por vezes muito perto mesmo, mas sem se apagarem. Sem se fundirem. Sem se anularem” (p.51).
 
7.A dor é, provavelmente, o denominador comum mais abrangente a toda a humanidade e, talvez, inclusive, a todo o ser vivo. Daí que se deva observar o seguinte mandamento: “não causarás dor” (p.56).
 
 
Na segunda parte do livro “Caros Fanáticos”, Amoz Oz, no ensaio “Luzes e não uma única luz”, como que traça aqueles que considera serem os elementos fundamentais da cultura em que se insere. De entre estes, destacaremos: i) “o povo judeu está unido não pelos genes nem por vitórias em campos de batalha, mas pelos livros” [“se quiseres um lugar para viver toda a vida, constrói uma casa em pedra. Se pensas também nos teus filhos e nos filhos dos teus filhos, constrói uma cidade rodeada de muralhas. Mas se queres erguer um edifício para as gerações vindouras, escreve um livro. Esta história é provavelmente o nosso documento de identidade: livros e refeições familiares. Livros e histórias que o pai e a mãe contam aos filhos à volta da mesa das refeições de festa”] (pp.55 e 60); ii) o povo judeu é um “povo de professores” e, portanto, “todos gostamos” de discutir, dizer como é, debater, esclarecer um ponto: “até é difícil encontrar um judeu que esteja de acordo consigo próprio”; há aqui como que um “gene anarquista vivo e fervilhante” (pp.57-58); iii) Israel passa por períodos de grande criatividade – interpretação, reinterpretação, contrainterpretação; “quando um rapaz na idade do bar mitzvá sobe à bimá para ler a Tora, não lhe perguntam «O que é que aprendeste hoje no jardim, meu querido menino?», nem lhe pedem que recite o que os professores disseram ou o que leu nos livros. Pelo contrário, exigem-lhe: «Diz algo de novo». Quer dizer, traz algo original. Teu. Pode ser um pequeno comentário, secundário, marginal, mas algo que exprima uma ideia que tu próprio formulaste a partir do texto que estudaste. O mesmo era exigido ao noivo na sinagoga, no dia do casamento «dizer algo de novo». É este o cerne criativo da cultura judaica ao longo das gerações, à excepção dos tempos em que esta cultura ficou petrificada. Os judeus não ergueram pirâmides, não construíram catedrais espectaculares, não erigiram a Muralha da China ou o palácio do Taj Mahal. Criaram textos e leram-nos em conjunto com a família, nas refeições de festa e diárias” – mas também por épocas de (imposição de) obediência cega; iv) justiça e caridade têm a mesma raiz, em hebraico. Quem cabe no buraco da fechadura? O protesto social está presente: “a lei hebraica antiga não exige apenas a adoração dos deuses e a obediência aos reis. O seu objectivo essencial é cuidar do pobre, do estrangeiro, do indefeso” (p.63); v) o povo de Israel não gosta de obedecer [“a obediência cega nunca pode ser moral. Desde que a Bíblia hebraica foi completada não houve acontecimento algum sobre o qual os judeus fossem unânimes em considerar milagre ou prodígio”, p.76]; “não queremos disciplina. Não cumprimos ordens por cumprir. Queremos justiça” (p.72); vi) na cultura judaica, há uma tensão entre sacerdote e profeta e ela é, “no seu melhor”, “uma cultura de negociação”; “a cultura judaica santifica a controvérsia em nome de objectivos espirituais” (p.75); vii) o agnosticismo também faz parte da cultura de Israel (p.91); viii) “os principais acontecimentos teológicos sucedem [hoje] na poesia, na prosa, no pensamento hebraico”, na “nova literatura hebraica” (p.89); ix) “o conflito existente entre nós e os palestinianos não é na sua base um western hollywoodesco de bons contra maus, mas uma tragédia de razão contra razão. Foi o que escrevi há quase cinquenta anos e é o que ainda penso. Razão contra razão e, muitas vezes, infelizmente, falta de razão contra falta de razão (…) No caso de Israel, o perigo de vida é a continuação do confronto com os árabes, que acabará por tornar-se um confronto com a maioria dos países do mundo. Um confronto destes acabará por pôr em perigo a nossa própria existência” (p.129).



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