O ELOGIO DO TEATRO (ALAN BADIOU, ORTEGA Y GASSET)

 
O elogio do Teatro
 
1.Resultado do diálogo público entre o filósofo e dramaturgo Alain Badiou e o jornalista e dramaturgo Nicolas Truong durante a edição de 2012 do Festival de Avignon, “O elogio do Teatro” (Empilhadora, 2023), acabado de publicar pelo Teatro Nacional de São João, afiança ao Teatro um papel (característica/capacidade/importância) de bússola: “o Teatro serve para nos orientarmos. Quando descobrimos esta bússola, não mais a largamos” (Badiou). O Teatro é uma instituição, estando próximo (da) do Ensino e, nessa medida, não se furta a procurar “criar no sujeito uma nova convicção”.
Nuno Cardoso, Diretor do Teatro Nacional de São João, considera, por sua vez, que “a escolha é a grande questão do nosso tempo”, no sentido em que “até a Google escolhe”, no fundo, não raramente, “o restaurante por nós” – nomeadamente, com os dados que tem armazenados relativamente a cada utilizador e que nos inclinam ou incitam a um dado local (ou com os “top’s” que resultam de estrelas que cada consumidor, mais real ou virtual, atribui a cada espaço de restauração; no fundo, a questão do livre-arbítrio e seus enlaces com a inteligência artificial).
Como Diretor Artístico e programador entende o Teatro como “lançador de reptos”, disponibilizando um conjunto de espectáculos, de referências, autores, temas que colocam questões ao cidadão (que o instiguem/desinquietem) e, por outro lado, como procurando, também, responder “às necessidades” dos espectadores. [Sobre esta segunda dimensão da concepção de programação: o espectador sabe que tem uma dada (aquela) necessidade de lidar com um dado problema/tema/texto/pensamento/emoção/sentimento? É esse o pressuposto de que parte, enquanto programador (ou, ao invés, parte da ideia de que essa necessidade existe, mas que vai ajudar a despertá-la com o espectáculo que propõe ao cidadão)? O encenador, por sua vez, intui essa necessidade? O lançar reptos, fazer o cidadão questionar-se, e o responder aquilo de que ele necessita são duas dimensões diferentes da arte de programar, ou são, em realidade, a mesma dimensão?] Ora, em âmbito de escolha: mesmo que em uma programação alargada – por exemplo, seis ou sete espectáculos num trimestre ou semestre – não estará o Diretor Artístico e programador a escolher/tutelar (também ele), pelo menos, as balizas, as fronteiras em que o espectador-cidadão há-de encontrar-se? Para Nuno Cardoso, na conversação tida em Conversa de Bastidores (Teatro de Vila Real, 25-10-2023), mau grado a busca de uma narrativa coerente na formulação de uma programação, um encenador parte sempre de uma interrogação e em nenhum momento pode saber – ou, em existindo, ainda assim, se se quiser, alguma inevitabilidade nesse pressuposto, “ingénuo ou idealista”, de antecipação de uma reacção do público – as “consequências” que uma dada peça, um espectáculo encontrará na sua plateia.
Nuno Cardoso rejeita, assim, no limite, a crítica de Platão, n’A República, ao Teatro – a saber: há, nele, “uma insidiosa propaganda de uma certa visão da existência” -…ou nem tanto: “[há nessa afirmação inveja [por parte] do filósofo…porque tenta o que há séculos o Teatro consegue fazer”. Badiou, o filósofo-dramaturgo como se disse, pode brincar aos dados: “quer na filosofia, quer no Teatro [interrogamo-nos]: «como podemos dirigir-nos às pessoas de forma a pensarem a sua vida de maneira diferente do que habitualmente fazem?»”. No Teatro, regista, o pensamento surge/ “adquire a forma de uma emoção”, de um momento forte, enquanto na filosofia aquele aparece sob o modo de uma “argumentação irresistível”; a Filosofia nasce, sobretudo, enquanto oralidade, com pequenos grupos de discussão, conduzidos por um mestre que não produz efeitos espectaculares; no Teatro, há multidões disponíveis pela frente, provoca emoção, aplausos e apupos, reacções fortes e vivas. Na confrontação Filosofia-Teatro, lembra Badiou, condena-se Sócrates à morte pouco depois de Aristófanes ter feito pouco dele, no Teatro…
 
2.Sendo uma bússola, e estando próximo do Ensino, “o Teatro devia ser obrigatório”, quer dizer, através de um conjunto de incentivos e penalizações, nomeadamente em sede fiscal, devia promover-se a ida das pessoas/cidadãos ao Teatro. Meio a sério, meia a brincar, Badiou pretende, sobretudo, a partir da sua experiência pessoal – levou “operários de proveniência estrangeira” e “jovens sem escolaridade”, que nunca tinham ido ao teatro, ver uma peça; todos gostaram muito da experiência, mas interiorizaram de tal maneira que o teatro “não é para mim” (o teatro não é para eles, para alguém da sua “condição”) que não mais repetiram a ida – interrogar: como conseguir persuadir estas pessoas, todas as pessoas, independentemente da sua condição social, atividade a que se dediquem, etc. de que as portas do teatro estão universalmente franqueadas? Lembrei-me, a propósito, de Nuno Cardoso ter dito a Dina Soares (“Vamos ao Teatro”, FFMS, 2022) que “vamos na terceira geração de espectadores no Teatro Nacional de S. João. Um público que cresce a ir ver aquela companhia e não é necessário publicitar” e, bem assim, de tomar nota da composição profissional/social do público do Teatro Aberto, de Lisboa, do qual dispomos destes elementos (a partir daqueles que subscrevem o cartão do teatro): “a maioria dos espectadores é composta por professores, 20% destes; mas também há bastantes economistas, médicos, estudantes, engenheiros e bancários” (62% são mulheres e 38% homens; 19% têm entre 45 e 54 anos; 17% entre 55 e 64 anos; 45% mais de 65 anos). De um público cultivado, com hábitos de presença em espectáculos de teatro pode, com efeito, produzir-se uma afirmação mais forte quanto ao seu enraizamento na cidade e do seu gosto clássico: “o São João já não é novidade desde 1995 e, numa sociedade escravizada pela novidade, é natural que me perguntem: «Então qual é a novidade?» A novidade é que não há novidade.»” (Nuno Cardoso).
 
3. Sendo um pensador de esquerda, Badiou procura, contudo, de modo salomónico, criticar aqueles que entende serem os equívocos de concepção/elaboração de Teatro, realizados por Direita e Esquerda, respectivamente: o (erro do) direitismo no Teatro” vem a significar um entendimento “do Teatro como museu” (“o respeitinho fechado”; a repetição do que se fez, como sempre se fez) ou como “espectáculo formatado de divertimento” (consumo; por “divertimento”, entende-se aqui o espectáculo que visa, com os dispositivos próprios do teatro, reforçar no espectador, para que este se sinta de “boa consciência”, as crenças, as convicções, os pressupostos e preconceitos que ele trouxe para a peça); o “esquerdismo no teatro”: “indistinção entre palco e plateia” – ora, tal entendimento leva a “extorquir a participação [no espectáculo, na peça “a pessoas que não o desejam” e “não há nada de mais penoso” do que isso, sendo que, aliás, assim se esquece - na concepção que postula a abolição da plateia, com base na perspectiva de que no teatro existe uma separação radical entre sujeitos passivos [plateia] e sujeitos ativos [actores] – a força de transmissão do “método indirecto” (a poder ficar no inconsciente): “a representação, por transferência, toca e modifica as estruturas subjectivas”], e “entre teatro e outras artes, triturando incessantemente sem espaço para a subjectividade do espectador”.
 
4.De Platão a Nietzsche, as críticas ao Teatro podem ser assimiladas a três ordens de razões, a saber “insidiosa forma de propaganda de uma dada visão da existência”; existência, nele, de uma separação radical entre “público passivo, actores ativos” e “confusão entre real e imaginário”. Tendo, como vimos de assinalar, respondido às duas primeiras das objecções feitas ao teatro, Badiou considerará, igualmente, improcedente a terceira destas, na medida em que “o teatro faz a melhor denúncia possível dessa operação”.
 
5. Numa célebre conferência/ensaio n’O Século, em 1946, José Ortega y Gasset sustentava que face à dureza da existência e sua responsabilidade – as escolhas, graves, num mundo limitado, este, que é o nosso, o que fazer, em que trabalhar, o que realizar no instante seguinte, como assegurar a sobrevivência? -, o teatro, a farsa, o jogo são como que consubstanciais ao humano: este, justamente para se evadir da severidade e gravidade, da responsabilidade assacada a tanta acção quotidiana, para sair de uma autêntica prisão, necessita de ser farseado e de ser farsante. As belas-artes só se distinguiriam do bridge, nesta fuga, pelo facto de serem mais eficazes. O que pergunto é se, nesta hora que vivemos, carecemos da evasão da dureza da realidade, ou se, diversamente, na actualidade, encontramos tantas formas de escapismo – os múltiplos ecrãs, redes sociais, séries consumidas de modo bulímico, tal como as notícias -, que ao teatro estará acometida uma tarefa de recentramento, de nos convocar à realidade? Não necessitaremos, em todo o caso, da irrigação da imaginação, da farsa, para compreendermos a complexidade de um mundo necessariamente severo?
 
6. Sobre o ofício de actor, diz o encenador João Lourenço: “é a representar que podemos ser mais verdadeiros, que podemos revelar, sem inibições, os nossos desejos, sentimentos, medos, porque não somos nós, é a personagem. Representamos na vida. No palco, somos verdadeiros”; a atriz Márcia Breia (mais de 80 anos): “para encarnar uma personagem temos que ser alguém que não somos, ou quem nem sabíamos que éramos.”; “Palco: um lugar mágico, um espaço de liberdade onde se solta qualquer coisa que não se pode soltar na vida”.
 
7.Os velhos (actores) e o Teatro (a reproduzir a sociedade)? Paradoxo: com idade, a memória, fundamental ao Teatro, tende a enfraquecer ou, no limite, a perder-se; mas os velhos actores são a memória do Teatro. Por outro prisma, em Portugal, ser actor ou ser actriz ainda tende a supor suportar pesos diversos: “Ser actor e ser actriz em Portugal são coisas diferentes (…) Ser actriz é mais difícil. Foi, aliás, uma profissão proibida durante séculos e que, mesmo depois, era associada à prostituição ou a uma dissolução de costumes que se confundia com a «má vida»” (Jacinto Lucas Pires, “Ser actor em Portugal”, 2022, p.14) A atriz estava nua numa peça. O avô deixou de lhe falar durante dois meses.
 
8.Regresso às Conversas de Bastidores e aos diálogos que, no espaço de um ano, neste ciclo, pude manter com os encenadores e actores João Pedro Vaz e Nuno Cardoso: estamos, efetivamente, nas entranhas, nos bastidores do Teatro de Vila Real (e a escolha deste local, para a realização destas Conversas, não é um acaso, mas aqui a forma ao serviço, se quisermos, da ideia de que, por uma noite, o espectador tem acesso a um lugar sagrado e ao conhecimento do que habitualmente lhe está vedado), e continuando à escuta das vozes dos actores [“Ser actor em Portugal”, Jacinto Lucas Pires, FFMS, 2022] encontramos a curiosa perspectiva, para alguns deles, talvez contra-intuitiva, de que o momento mais prazeroso do seu ofício teatral passa mais pela sala de ensaios do que pelo espectáculo (em si mesmo): aqui, pode-se errar, imaginar, criar, um verdadeiro laboratório onde o experimentar tem lugar, enquanto quando estão propriamente em cena é a eficácia que sobrevém.
Uma perspectiva diversa desta, a da actriz Márcia Breia: é quando o espectáculo já leva algum tempo de vida que a personagem chega ao ponto que eu considero que deve atingir: arrancado cá de dentro, gritada, afirmativa, irónica.
Temos, de igual sorte, o testemunho, porém, de quem não apenas sente a repetição e o cansaço, a existência de pequenas batalhas, picos de turbulência na sala de ensaios, como a experienciou enquanto lugar de abuso e de inferno. Alguns encenadores – e o recente livro da responsabilidade da jornalista Dina Soares, dá expressão a actrizes que referem que quando foram para os ensaios iam com certo receio – são tomados como “ditadores”. Alguma vez, enquanto encenador, sentiu a mão a fugir-lhe para uma dimensão mais autoritária e/ou como actor em algum momento se sentiu objecto de tiranias?, questiono.
 
8.1.A noção de dramaturgia evoluiu, deixando de ser apenas a arte de escrever peças de teatro, para se alargar ao conceito de arranjo das peças em função do espectáculo que se tem em mente. Nos países de língua alemã, a existência do lugar de dramaturgista nos teatros é uma prática mais enraizada. No Sul da Europa, costuma ser o próprio encenador a fazer esse trabalho. Como vê o papel do dramaturgista, nesta perspectiva que cinde os países de língua alemã e os do sul da Europa?
 
8.2. Muitas vezes, no nosso país, o artista ainda não é visto como um trabalhador pela sociedade, porque o próprio alimenta a visão do artista romântico. A natureza intermitente do trabalho artístico, com períodos de pausa muito alargados, acentua a fragilidade da vida do dia a dia. E há uma necessidade de formação contínua. A adaptação e resistência das profissões artísticas derivam do prazer das mesmas – garante Vera Borges, socióloga, autora de vários estudos sobre o teatro.
Rendimento Básico para artistas em debate na UE. Estabelecer um regime de segurança social aplicável aos profissionais das artes do espectáculo, do audiovisual, das artes visuais e da criação literária. Criar uma carreira profissional.
 
8.3. Célia Caeiro, da direcção da cooperativa que gere o Teatro Aberto refere que “a bilheteira nunca paga os custos [de uma peça]. Isso não existe em Portugal. Só se se tratar de um monólogo, com um actor muito conhecido, e sendo apenas um único actor, em palco, apenas com uma luz” a receita de bilheteira chega. Entre 2013 e 2018, o teatro foi quem deu mais espectáculos e sessões, em Portugal, embora a música tenha facturado mais. Em Portugal, em 2019, por todo o país houve 13516 sessões de teatro, às quais assistiram perto de 2 milhões e 200 mil espectadores, gerando uma receita de 13 milhões de euros. O preço médio de um bilhete de teatro, em 2019, era de 11 euros; de música, 37 euros. O mecenato vale a pena ou exige demasiadas contrapartidas?
 
9.E que relações do teatro com outras artes? O maestro está em palco na estreia, mas, do mesmo modo, cada vez que a peça musical é executada; o encenador, não necessariamente. Os quadros dos grandes mestres, a encenação está toda em cena, a luz, a cor, as personagens, as marcações; o cinema dispensa o público, nada altera na sua essência, enquanto o público é constitutivo do teatro.
 
10.Hélia Correia, numa edição, há poucos anos, das Correntes d'Escritas dizia que na Grécia antiga cada pessoa sabia o mais ínfimo pormenor de um texto, de uma narrativa, de um mito. Sabia-o de cor. Como a narrativa era, para todos, um adquirido, e como todos sentiam a existência desse chão comum, então a ida ao teatro não se fazia para conhecer a intriga, não era um suspense para ver a história de cowboys e quem fica com a rapariga. As pessoas choravam em conjunto, indignavam-se em conjunto, em teatros (com capacidade) para trinta mil pessoas, mas nunca “a infantil procura do realismo”, a noção perfeita de que naquelas longas horas em que a peça podia decorrer, era o artificialismo a primar (pense-se no tipo de máscaras utilizadas), a fruição estética a prevalecer em absoluto. Em certa peça que Eurípedes conduz, com a ganância, em jogo, os espectadores chegam a atirar coisas para o palco e o dramaturgo tem que interromper por instantes, pedindo calma à assistência. A catarse emergira. A solidariedade compassiva podia ser experimentada. “Hoje, estamos, ao invés, numa fase infantil de fruição”. [Nuno Cardoso discorda fortemente: aquela era a cultura popular de então, na Grécia, ali onde produzir peças é uma obrigação cívica, o Teatro diretamente financiado por cidadãos ricos e de uma forma obrigatória, tal como hoje há um transe com Taylor Swift, sendo que os espectadores nunca foram tão “cultos como hoje”]
 
11.Referindo-se ao texto que encenou, “A praia”, João Reis afirmava, recentemente, que aquele remete muito para “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”, texto de Stig Dagerman. Embora o título desse breve ensaio possa parecer um inteiro programa, à luz, até, do que foi a vida, ou modo como ela se concluiu (em suicídio), de Dagerman, aquele reclama a carícia na pele, o fulgor da beleza, o encontro com o amado como instantes suspensivos do tempo (o momento em que diríamos o Kairos irrompe no cronos, o eterno dá-se no tempo). Por outro lado, referindo-se aos casais presentes na peça “A praia”, um crítico do Expresso escrevia que aqueles pareciam sempre à espera de alguém. De Godot? O João Pedro Vaz, interpelo-o em Setembro de 2022, encenou “Persona”, de Ingmar Bergman, lá onde uma das camadas possíveis de leitura e inquietação relativamente ao filme do grande realizador sueco é, nas palavras de João Benárd da Costa, se “a Alma e a Máscara (a Pessoa) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do filme?” e até o mutismo de Elisabeth Vogler quando se dirige a Orestes, aos deuses, como o estado em que se encontra a personagem, ou aquele que fica frente ao silêncio de Deus. João: a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer?
 
12.Há um ano, nas Conversas de Bastidores, a primeira questão que coloquei a João Pedro Vaz foi a seguinte: na preparação desta nossa conversa, li entrevistas do João Pedro nas quais dizia que aquilo que mais o havia marcado na infância em Santa Marta de Penaguião tinha sido a estratificação social, a rigidez social que ali experienciou. Por outro lado, referencia o teatro, e o gosto que tem por este, como “o lugar em que todos são iguais apesar dos frisos, dos camarotes, de se tentar reproduzir a ordem, a hierarquia social, mas sem que esta se reproduza por completo”. De que modo, na forma como se auto-compreende, essa marca da infância em Santa Marta de Penaguião foi determinante para destacar a dimensão igualitária presente no teatro (e de que maneiras o teatro alcança esse nivelamento social)?
 
13.Na quarta-feira, principiei com esta indagação, a Conversa com Nuno Cardoso: em 2012, a propósito de Medida por medida, de Shakespeare, num diálogo que manteve com a professora Francesca Rayner (da Universidade do Minho) afirmou que na encenação que levou a cabo e nos próprios actores, nessa peça, transparecia uma intensa raiva. Sustentando, como o Nuno sustenta, uma ligação do teatro com a realidade que se vive na comunidade, na polis, tenhamos em atenção que esse é um momento histórico socialmente conturbado com a presença da troika em Portugal. Na troca de ideias com Francesca Rayner, diz, ainda, que numa peça em vídeo a que assistiu viu escrito: “O tempo não está para Tchékhov”. O que quero começar por lhe perguntar é: e, hoje, está tempo para o quê (ou para quem), no fundo, para convocar (em palco) transparências de que emoções/sentimentos/pensamentos (enquanto pessoas, individualmente consideradas, e na comunidade?) – e isto, naturalmente, para além da resposta que a própria programação pela qual o Nuno é responsável nos insta, já, a ponderar?
 
(…)
 
13.1 - Ainda quanto ao diagnóstico do nosso tempo, nos últimos anos, desafiou o público que frequenta (ou o público que é frequentado, dada a descentralização que promove) pelo Teatro Nacional de São João, através de diferentes textos, autores, encenações, espectáculos a contemplar uma casa na qual as pessoas que a habitam nela não se cruzam (a partir de uma situação idêntica que vivenciou na Foz, no Porto), a perspectiva que temos, atualmente, de vermos (de interpretarmos, compreendermos) a sociedade através de uma sala (com seus ecrãs), o exercício do rumor disseminado e tóxico, o turismo infinito, as questões do género, a casa como factor de respeitabilidade, o novo riquismo, a Guerra do Ultramar, a obrigação de enterrar o irmão para obedecer às leis eternas dos deuses. De que temáticas, e de que peças, estaremos hoje carecidos ou sedentos? [Nuno Cardoso vai, brevemente, pegar no “Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes, a guerra colonial é uma questão que o país tem por resolver consigo mesmo, o pai do Diretor do TNSJ esteve 4 anos a combater em África, há, também, um certo “ajuste de contas” por fazer, reconhece; e haverá Hamlet, um “preguiçoso”, numa peça que justifica uma encenação/representação diversas daquelas com que mais habitualmente se confrontou ao longo dos anos]
 
14.Uma pergunta, o tempo não dá para tudo, que não cheguei a colocar a João Pedro Vaz: como é, como vê, o ensino do teatro em Portugal – desde a sua experiência como estudante até à de encenador, diretor artístico? A atriz Márcia Breia afirma no Retrato “Vamos ao teatro”, assinado pela jornalista Dina Soares, que o saber colocar a voz, cultivar as posições em palco, vem de uma formação mais clássica que (agora) estará a desaparecer. Por outra banda, no livro “Ser actor em Portugal”, do dramaturgo Jacinto Lucas Pires, uma recolha de manifestações, por parte de actores, do estado do teatro no nosso país e do que pensam e sentem sobre a sua profissão, temos artistas deste ofício que criticam o facto de a maioria dos jovens estudantes de teatro não conhecerem, actualmente, os autores e as obras clássicas de teatro, sendo que outro dos problemas reportados passa pelo fim das companhias de repertório e pela falta de teatro de repertório nos teatros nacionais. Diversamente, um maior respeito pela diferença é assinalado como um elemento que prepondera positivamente nas escolas de arte em Portugal, relativamente a um ensino não artístico. Como se posiciona quanto as estas questões?
 
14.1. Uma pergunta, o tempo não dá para tudo, que não cheguei a colocar a Nuno Cardoso: Jorge Louraço Figueira (doutorando em Estudos Artísticos na Universidade de Coimbra), no paper “Regime democrático e regimes de cena: três encenadores (Nuno Cardoso, Bruno Bravo, Gonçalo Amorim)”, escreve que Nuno Cardoso acrescenta ao ritmo da peça [que encena] uma urgência, reconhecível em vários dos seus espectáculos, que está na origem da sensação de falta de tempo. No entender deste observador, Nuno Cardoso cria “trupes tensas”, microcosmos que são “uma amostra do país, ou, pelo menos, do país semiurbano, semirrural, semicosmopolita, sempiprovinciano, enfim, semiperiférico”. Para Francesca Rayner, marcas reconhecíveis do seu trabalho de encenação são a exploração do palco na sua totalidade, quer vertical quer horizontalmente, o trabalhar a partir de um conjunto de improvisações que são depois integradas, o trabalho de ensemble. No dizer de Alexandra Moreira da Silva (investigadora, em estudos teatrais, docente da Faculdade de Letras do Porto), no diálogo que manteve consigo a propósito de “Plátonov”, o trabalho do Nuno “assenta bastante numa dimensão coreográfica, muito determinada por uma espécie de partitura múltipla – corporal, rítmica e musical (…) a experimentação, o laboratório e as improvisações são essenciais na forma como aborda o texto, a cena e, diria mesmo, a arte teatral em geral. Por exemplo, nos seus trabalhos a distribuição não é decidida antecipadamente, resultando antes de um primeiro tempo de trabalho laboratorial, e o que dele resulta de interessante, criativo e inventivo é investido depois no trabalho de encenação”.
Revê-se nestas características que tendem a identificar o seu trabalho como encenador? Como evoluiu o seu trabalho ao longo dos tempos?
 
15. Face ao mundo em que nos inserimos é, sim, pensável um teatro sem actores, a prazo. Para ser teatro, em qualquer caso, diz Badiou, “a dialéctica das fontes sonoras teria de ocorrer diante de um público reunido”.

Pedro Miranda




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