A QUEDA DO OCIDENTE. KISHORE MAHBUBANI

 

A queda do Ocidente. Kishore Mahbubani

Uma longa lista de literatura “decadentista” acerca do Ocidente permeia os escaparates (“a decadência”, “a queda”, “o ocaso”, “o fim” do Ocidente são títulos muito recorrentes em capas de livros), ao longo dos últimos 15 anos, embora participando de uma tradição bem mais antiga, como vem recenseando José Pedro Teixeira Fernandes. Todavia, em “A queda do Ocidente. Uma provocação” (Bertrand, 2018) o olhar, diversamente de muitos outros ensaios desta natureza e temática, é de um não ocidental, Kishore Mahbubani, com vasta experiência do mundo diplomático e académico, fornecendo um acervo de dados (estatísticos), concatenação de elementos histórico-políticos e culturais disruptivos do mundo não-ocidental (que o Ocidente não teria compreendido), propostas de mudança que o tornou particularmente lido e discutido, nos anos mais recentes, pelas elites ocidentais.

 

1.Kishore Mahbubani, Professor de Políticas Públicas Aplicadas da Universidade de Singapura, membro, durante décadas, do corpo diplomático do seu país, como embaixador nas Nações Unidas, propõe, como principal acontecimento do ano de 2001, não os atentados terroristas de 11 de Setembro (no ataque ao World Trade Center), mas a entrada da China na Organização Mundial de Comércio (OMC) (p.36). Tratou-se, em esse evento, da entrada de mil milhões de trabalhadores no sistema comercial global, que redundou em perda de postos de trabalho no Ocidente – “em Agosto de 2017, um relatório do Banco de Compensações Internacionais confirmou que o surgimento dos novos trabalhadores da China e da Europa do Leste levou ao «declínio dos salários reais e a uma percentagem menor do trabalho na produção nacional»” (p.36). A desigualdade cresceu. Mais: as elites – políticas, financeiras, empresariais - do Ocidente não prepararam as suas populações para a «destruição criadora» da China (na OMC) e, com isso, perderam a confiança das populações. O Brexit, bem como Trump são, ainda, em boa medida, consequências daquele abalo sísmico, marco determinante de um turning point de regresso a um status quo que prevaleceu, esmagadoramente, durante os dois milénios da nossa era.

2.Em realidade, “entre o ano 1 e o ano de 1820, as duas maiores economias tinham sido sempre as da China e a da Índia” (p.11). A partir dessa data, emergem Europa e EUA. O sobredesempenho ocidental extingue-se, contudo, em nossa época, com (certa) naturalidade: “o ciclo de domínio do Ocidente está a chegar a um fim natural” (p.12). Um ocaso que se sentirá tanto no íntimo (de muitos ocidentais e não ocidentais), como no mercado de trabalho. Se é certo que o domínio (económico) do Ocidente poderia ter-se prolongado, durante séculos, não fora o cometimento suicidário de duas guerras mundiais durante o século XX (p.33), chegámos a um ponto em que “a parcela ocidental da economia mundial continuará a diminuir” de modo inevitável e imparável. As outras sociedades “aprenderam a reproduzir as melhores práticas ocidentais” (p.13), sendo, mitigando constrangimentos, boa notícia a Ocidente o facto de “o bolo da economia mundial não estar a encolher” (p.15). Mas ponto assente parece ser, definitivamente, o mundo ocidental não ter, até ao momento, conseguido “conceber uma estratégia global coerente e competitiva para lidar com esta nova situação” (p.16).

3.O crescimento económico explosivo da China nas últimas décadas foi alimentado pelas exportações para os EUA. E, como se veio de dizer, o Ocidente acaba, também, por ser vítima do seu próprio sucesso, na medida em que as suas melhores práticas são replicadas e optimizadas a Oriente. O Ocidente partilhou o conhecimento com o resto do mundo, sendo que “a maior dádiva que o Ocidente concedeu [aquele] foi o poder da razão” (p.21), esta aqui entendida como “capacidade para formar juízos e inferências lógicas sobre algo” (p.21). Assim, “as várias dimensões da razão ocidental foram-se instalando gradualmente nas mentes asiáticas, através da adopção da ciência e da tecnologia do Ocidente, bem como da aplicação do método científico na resolução dos problemas sociais. A ciência e a tecnologia mostraram o poder da prova empírica e da constante verificação, conduzindo à adopção de muitas inovações tecnológicas, desde a medicina moderna à electricidade e desde as ferrovias aos telemóveis, todas elas melhorando consideravelmente as vidas das pessoas. A aplicação do método científico também veio fornecer soluções para problemas aparentemente sem solução com os quais os asiáticos se debatiam há milénios, como as cheias e a fome, as pandemias e a pobreza” (pp.21-22).
A par da a) partilha do conhecimento com o resto do mundo, podemos entrever no b) triunfalismo/húbris ocidental no pós-Guerra Fria, em especial traduzido no “ópio sedutor” (p.34) do «fim da história» a que se referia Fukuyama – “podemos estar a testemunhar não apenas o fim da Guerra Fria, ou a consumação de um determinado período da história, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma final de governo humano” -, ignorando que, com o fim da guerra fria, em vez do «fim da história», se abria uma nova era em que China e Índia (re)despertariam e, bem assim, c) na autocomplacência, após décadas de esforço e aposta em inovação e desenvolvimento (máxime, do ponto de simbólico mas não apenas, a chegada/primeira ida humana à Lua), forte investimento na procura de vencer o adversário soviético e atenção às economias que poderiam surgir dos processos de descolonização. Em parecendo estas não demonstrar vitalidade bastante, e dada a debacle da “cortina de ferro”, o Ocidente entra em “piloto automático” em vez de ligar os “pilotos competitivos” e, dessa forma, considera que “tinha chegado ao zénite das façanhas humanas. As outras civilizações teriam de lutar e trabalhar arduamente; mas o Ocidente já não precisava de o fazer”: havia, neste momento, que “descontrair e desfrutar da sua boa fortuna”. Nas palavras do então primeiro-ministro belga, Willy Claes, no início dos anos 90, “a Guerra Fria acabou. Sobraram apenas duas superpotências: os Estados Unidos e a Europa” (p.60) - elementos contundentes estes [a), b) e c)] que ajudam a explicar, pois, a “queda do Ocidente”.

4.Houve, nas décadas que precederam a entrada da China na OMC, três revoluções profundas no mundo não ocidental que o Ocidente não compreendeu: i) um princípio de responsabilização dos governantes aos governados – “durante milénios, as sociedades asiáticas foram profundamente feudais. O povo tinha que responder perante os seus líderes, não os líderes perante o povo (…) [Ora] com o passar do tempo, os governantes das sociedades asiáticas acabaram por perceber e aceitar que teriam de prestar contas aos seus povos e não o contrário” (p.23). Mudanças claras neste contexto deram-se em países como Japão, Coreia do Sul, Sri Lanka, ou Índia (pese, ainda, nesta, o recrudescer de pulsões autoritárias nos anos mais recentes); ii) a melhoria das condições e o resgate da pobreza de milhões de chineses a partir da liderança de Deng Xiaoping; sobretudo, populações não ocidentais assumem o controlo das suas vidas, abandonando o papel de passageiros indefesos do destino – ao contrário de Mao, Deng Xiaoping “levou a cabo grandes acções educativas e centrou-se na melhoria das condições do povo chinês”. Nas últimas três décadas, 800 milhões de chineses foram resgatados à pobreza absoluta. De resto, acrescente-se que, em 2008, em África, o Quénia lançou o Vision 2030, um ambicioso programa de desenvolvimento inspirado em Singapura e Malásia (p.26). Por sua vez, a Etiópia quis seguir a Coreia do Sul. Sublinhando, pois: sensíveis melhorias no mundo não ocidental e o Oriente a surgir, já, como farol para diferentes países africanos; iii) crença na governação como factor de melhoria de vida/optimismo face ao futuro – agora, na Ásia, “todos acreditam que a boa governação pode melhorar as vidas”; há 50 anos, tal perspectiva não se vislumbrava em tal geografia. As populações da China, Índia e Indonésia são, agora, mais optimistas do que as Ocidentais (p.29). Em um estudo de 2016 da Populus, 90% dos jovens indonésios declararam-se felizes, contra os 57% dos britânicos e franceses. A maior parte das pessoas que pensam que o mundo está a melhorar são da China, Índia, Nigéria (p.29). Concentrados na governação racional dos seus povos, os governos do Uganda conseguiram excelentes resultados ao nível da esperança média de vida – passou de 45 para 58 anos, entre 1990 e 2015 -, o mesmo sucedendo no Ruanda – de 33 para 64 anos, no mesmo espaço temporal. A mortalidade infantil diminuiu significativamente (p.32).
Entre 2002 e 2014, o Paquistão reduziu a pobreza em/a metade, tendo disparado o número de pessoas que acederam à classe média; nas últimas duas décadas, o Bangladesh teve uma média de crescimento económico de 5,5%. Entre 1960 e 2010, a esperança média de vida, naquele país, passou de 45,8 para 69, 6 anos. Nos trinta mais recentes anos, o rendimento per capita da Etiópia aumentou 214% (p.49), Uganda e Ruanda aumentaram, igualmente, o PIB per capita de forma drástica. Assiste-se a um claro rejuvenescimento dos países não ocidentais.
Em 1980, a percentagem da China no PIB mundial era de 2,3%, sendo a da Índia 2,9%; em 1990, 4,1% e 3,6% respectivamente; em 2000, 7,5% e 4,2%; em 2010, 13,9% e 6%; em 2015, 17,3% e 7%; em 2050, as previsões apontam para 20, 6% e 14,7%, respectivamente. A UE e os EUA passam, respectivamente, de 30,2% e 21,9% no peso do PIB mundial em 1980, 27,6% e 22,1% em 1990; 23,7% e 20,7% em 2000; 19% e 16,8% em 2010; 16,9% e 15,8% em 2015 e, segundo as previsões, 11,8% e 13,6% em 2050. Em 1980, não havia turistas chineses; em 2015, eram 100 milhões.
Do ponto de vista da demografia, a evolução dos grandes blocos mundiais não deixa de ser, igualmente, impressiva: em 1950, a Europa detinha 22% da população mundial, enquanto em África tinha 9%; em 2050, a percentagem da Europa diminuirá para os 8% ao passo que a de África subirá para os 39% (p.109).
Numa palavra, vivemos “um novo amanhecer para a história da humanidade” (p.46).
 
5.O ensaio de Kishore Mahbubani – que publica com assiduidade no New York Times, Time, Finantial Times ou Newsweek – tem por subtítulo “Uma provocação”. E, entre outras, talvez possamos destacar três declinações, mesmo que nem todas originais, de um conjunto de reptos: x) no entender de Mahbubani, não é rigoroso dizer que os chineses - apesar de viverem muito longe de um sistema democrático liberal e se encontrarem face a um regime autoritário - sofrem de um sistema opressivo severo, sendo desta realidade exemplo os 100 milhões de turistas anuais chineses – por contraponto, faz-se notar como no sistema da URSS não se permitia que os cidadãos saíssem do país. Ora, “voltariam os chineses a casa de boa vontade, se fossem oprimidos?” (p.54); xx) a premissa ocidental – e que o Ocidente julgava universal -, a saber, mais modernização e desenvolvimento económico igual a menos religiosidade e mais secularismo, não se verificou no mundo islâmico: aí, “o desenvolvimento económico e a educação estão a conduzir a uma maior religiosidade” (p.68); xxx) embora o Ocidente tenha razão em reivindicar as grandes qualidades adstritas à democracia, e este seja, também para Mahbubani, o melhor sistema possível, todavia “o Ocidente está errado quando pensa que a democracia é uma condição necessária para o sucesso económico. Se assim fosse, a China não conseguiria e não deveria ter obtido sucesso. E, porém, obteve-o” (p.106). Esta conjugação de sucesso económico e sistema não democrático gera, naturalmente, arrepios a Ocidente (dado que pode minar, para alguns sectores da população, a justa crença na superioridade da democracia – se essa superioridade é, ab initio, de natureza ética, e, desta sorte, anterior a outros considerandos, mormente de índole económica, a desvalorização, outrossim, desta dimensão e da necessidade de uma boa performance daquela no interior dos sistemas democráticos, pode, por seu turno, flagelar a própria democracia).
6.Dito isto, e perante a “queda” Ocidental, que estratégia sugere este perito em relações internacionais para um reerguer daqueles que espreitam, neste instante, um determinado pôr-do-sol? Mahbubani chama-lhe “Estratégia dos três Emes”: y) minimalista – o Ocidente deve repensar o seu papel no resto do mundo (e consensualizá-lo, sendo sensível ao conjunto da comunidade internacional), sendo mais regrado e fazendo e intervindo (bombardeando, sobretudo) menos, de modo particular no mundo islâmico, respondendo, assim, a muitas das inquietações que, a este respeito, advêm de diversas partes do planeta e com (potenciais) reflexos nos próprios territórios ocidentais -, yy) multilateralista – as grandes questões que atravessam o planeta, das alterações climáticas aos quesitos da guerra e da paz, só podem resolver-se no plano multilateral e, nomeadamente, nesse Parlamento Mundial que é a Assembleia-Geral das Nações Unidas. O Ocidente deveria, pois, escutar, ali, as demais vozes do mundo – a primeira guerra do Iraque foi bem-sucedida, ao contrário da levada a cabo por Bush filho não por acaso com atenções diversas, num e noutro caso, respectivamente, às diferentes vozes que se manifestaram naquele Parlamento do mundo. Um fórum único, onde todos os 193 países soberanos podem falar livremente e nom qual, além dos ocidentais, estão representados os restantes 88% dos habitantes do mundo (por sinal, não ocidentais) deve merecer uma séria consideração. Em vez de ouvir essas vozes, não tem faltado quem, a Ocidente, nas últimas duas décadas, tenha atacado e colocado em causa a ONU (ela-mesma). Kishore Mahbubani retrata assim a eleição de António Guterres como Secretário-geral das Naões Unidas: “numa decisão algo miraculosa, em 2016, António Guterres foi eleito secretário-geral da ONU. Foi miraculosa porque se trata de uma pessoa perspicaz e com experiência. E, melhor ainda, é europeu e vem de um país que integra a NATO: Portugal”. Neste contexto, “se os países ocidentais não conseguirem trabalhar com um convicto secretário-geral pró-ocidental como ele para revitalizar e fortalecer as Nações Unidas com quem conseguirão trabalhar?” (pp.88-89). Entretanto, o primeiro mandato de Guterres parece não ter tido, com a robustez bastante, essa congregação de forças ocidentais, junto do Secretário-Geral como Mahbubani sugeria e Guterres, por certo, gostaria (a duras penas, e engenho diplomático, o diálogo, desde logo com Trump…) -, e yyy) maquiavélica – o Ocidente deve ter consciência do horizonte de perda em que se encontra, ser capaz de um suficiente diagnóstico (”conhece-te a ti mesmo”) e adoptar a mais conveniente postura internacional, com a moderação de acções e reforma da ONU em perspectiva - por exemplo, são sugeridas a ideia de que o Reino Unido deveria ceder o lugar à Índia e a França à UE no Conselho de Segurança da ONU, não por uma questão de altruísmo, mas por reforço da credibilidade daquele órgão, sem esquecer (o Ocidente) de voltar a ligar os “pilotos competitivos” na inovação, desenvolvimento e economia (63% dos norte-americanos não têm poupanças suficientes para cobrir uma situação de emergência de uma despesa de 500 dólares, pp.120-121; bem entendido: aqui podem, porventura, e além dos fenómenos de natureza económica em sentido estrito, alojar-se factores de ordem cultural ou de mentalidades atinentes à poupança).

Como conclusão deste seu ensaio, Mahbubani, que considera o principal desafio estratégico dos EUA a China e o da Europa o mundo islâmico (às portas de casa do Velho Continente) (p.92), sendo a China “rival económico e não militar” (p.99), sentencia: “não é inevitável que seja a China a liderar o mundo, embora seja inevitável que ela venha a deter a maior economia do planeta” (p.126).

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

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