A TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL (E A ESCOLA). JEREMY RIFKIN

 
A terceira revolução industrial (e a escola). Jeremy Rifkin
 
Em vários países, tem vindo a ser adoptado, ao nível curricular, nas escolas, nos ensinos secundário e universitário, algo que nasceu nos Estados Unidos da América há cerca de 25 anos – a aprendizagem em serviço comunitário. Isto é, para que a formação de um jovem fique completa(da), exige-se-lhe que se voluntarie, em organizações sem fins lucrativos, da sua zona habitacional, e em iniciativas da comunidade concebidas para ajudar os que mais necessitam e contribua, desta forma, para melhorar o bem-estar da comunidade em que essas pessoas vivem. Na última geração, segundo o Ministério da Educação norte-americano, quatro em cada cinco jovens estiveram envolvidos em serviço comunitário, enquanto frequentavam o ensino secundário. Os ganhos de sensibilidade empática, de amadurecimento pessoal, da capacidade de cada um discernir o mais importante na vida têm sido documentados por diferentes estudos. Para o caso português, abonando, em meu entender, a uma iniciativa desta natureza, pense-se no recente European Values Studyos valores dos portugueses (Alice Ramos e Pedro Magalhães) e os impressivos dados sobre voluntariado (bem como sobre confiança interpessoal) no nosso país, com Portugal a registar alguns dos piores índices europeus (entre 34 países) neste âmbito.
No livro A terceira revolução industrial (Bertrand, 2014), Jeremy Rifkin dá um exemplo notável dos benefícios gerados por esta nova forma de aprendizagem: “a iniciativa Memory Bridge em Chicago prepara estudantes de alguns dos bairros mais pobres da parte sul da cidade para prestarem assistência a doentes de Alzheimer em lares para idosos e casas de saúde. O que faz deste programa em Chicago uma iniciativa sem igual é que muitos dos alunos que nele participam vêm de lares destruídos e cresceram num mundo de pobreza onde a dependência das drogas, a criminalidade e a violência são os modos de vida dominantes e o comportamento hostil e duro é uma estratégia de sobrevivência. Dar apoio a idosos praticamente inválidos, que lutam para conseguirem fazer as tarefas mais simples, desperta nestes estudantes uma relação de empatia que lhes permite exteriorizarem as suas personalidades e expressarem a sua necessidade de comunhão com os outros há tanto tempo reprimida” (p.384). Em suma, prestar serviços em cozinhas, clínicas, projectos ambientais, programas tutoriais, centros de aconselhamento e milhares de outras actividades sem fins lucrativos transformou a experiência educativa.
Se, de modo mais ou menos elaborado, malefícios associados a uma experiência juvenil muito dependente das novas tecnologias e da internet em particular são, não raramente, trazidas ao debate público, diversamente, o paradigma distributivo e colaborativo, nela, na experiência da internet, também muito presente (artigos, nela publicados, escritos em colaboração; contributos de várias pessoas em um blog; vídeos de acontecimentos relevantes partilhados em comunidade; sites de participação cidadã, com diferentes personalidades e valências convocados, etc.), tenderá a poder ser transposto para as salas de aula do futuro próximo, conseguindo, eventualmente, suceder a um modelo concorrencial que foi primando até à data (“novos modelos de ensino concebidos para transformar a educação numa experiência de aprendizagem colaborativa e empática, em vez de um concurso, começam agora a surgir à medida que as escolas e as faculdades procuram chegar a uma geração que cresceu na Internet e está habituada a interagir em redes sociais abertas onde a informação é partilhada em vez de armazenada e escondida. O pressuposto clássico de que «conhecimento é poder», para proveito pessoal, está a ser incluído na noção de que conhecimento é a expressão das responsabilidades partilhadas para o bem-estar colectivo da humanidade e do planeta como um todo”, p.373). Para uma atitude de colaboração (um aluno a ensinar outro sobre um tema que domina, por exemplo) em vez de concorrência (o saber é poder e há que esconder o conhecimento do outro, por exemplo), entre alunos, a valorização da dimensão empática é aqui determinante. Se “aquilo que realmente ensinamos, em qualquer momento, é a consciência de uma época” e se “as nossas ideias sobre educação advêm, invariavelmente, da nossa percepção da realidade e da nossa concepção da natureza – sobretudo os nossos pressupostos sobre a natureza humana e o sentido da vida” (p.370), tomemos nota de que “as descobertas no campo da biologia evolutiva, da ciência neurocognitiva e do desenvolvimento infantil (…) revelam que as pessoas estão biologicamente predispostas a desenvolverem relações de empatia – ou seja, que a nossa natureza interior não é meramente racional, desligada, à vida, agressiva e narcisista, como muitos filósofos do Iluminismo sugeriam, mas antes afectuosa, altamente sociável, cooperativa e interdependente. O homo sapiens está a dar lugar ao homo empathicus” (p.371). É, nesse contexto, aliás, que a experiência de aprendizagem em serviço comunitário, a capacidade de escutar atentamente um interlocutor, de aprender com experiências, gerações e mundos alheios ao seu, de debater e rebater, se tem revelado de grande utilidade (“as escolas relatam uma redução acentuada das agressões, da violência e de outros comportamentos antissociais, uma diminuição das acções disciplinares, uma maior cooperação entre os estudantes, um comportamento mais pró-social, a atenção mais focada na sala de aula, um maior desejo de aprender e uma melhoria da capacidade de pensamento crítico”, p.391). Ainda, e muito radicalmente também, na transição que Rifkin preconiza para os anos desta terceira revolução industrial, em mentalidades que olham para a escola como uma espécie de formadora de trabalhadores produtivos, buscando formar pessoas que, além dessa dimensão técnica e profissional, pensem nas obrigações para com os outros, incluindo aqui a bioesfera (pelo texto de Rifkin perpassa uma grande dose de amizade pela Natureza): “acabaremos com uma força laboral cuja abordagem à actividade económica está ainda mergulhada no espírito utilitário das duas Revoluções Industriais anteriores. Os alunos imersos numa consciência de biosfera, por outro lado, olharão para as competências profissionais da Terceira Revolução Industrial não apenas como ferramentas para o desempenho de uma profissão mais produtiva, mas antes como ajudas ecológicas para a preservação da biosfera que é de todos” (p.368).
Desde os primórdios da nossa presença na Terra que o contacto com a natureza assumiu particular importância; daí que hoje, em ambientes fechados, estejamos, segundo alguns especialistas (psicólogos), a sofrer de um transtorno de afastamento da natura que, ademais, supõe, na leitura de alguns, uma perda de pensamento crítico, uma atrofia da imaginação e da criatividade: “A mente em desenvolvimento da criança observa continuamente os fenómenos naturais e procura entender de que forma é capaz de afectar o mundo em que está a crescer. Porque é que a chuva cai do céu, porque é que o sol nasce todos os dias, porque é que as plantas florescem em determinadas épocas do ano e porque é que os gatos perseguem os ratos e os comem? O que são as sombras, de onde vem o vento, porque é que transpiro quando está calor? Quando falamos sobre a criação de consciência, aquilo a que realmente nos referimos é a como uma criança estabelece ligações entre os fenómenos e cria relações previsíveis que a ajudam a enquadrar-se no mundo. Uma exposição ao mundo natural limitada reduz as possibilidades de entender o que queremos dizer com «existência». Kellert conclui que «são poucas as áreas da vida que proporcionam aos jovens tantas oportunidades para o pensamento crítico, a pesquisa criativa, a resolução de problemas e o desenvolvimento intelectual como o mundo natural». A natureza é fonte de espanto e admiração, sem a qual a imaginação humana não existiria, e sem imaginação humana a consciência ficaria atrofiada” (p.395).
Por isso, pergunta, retoricamente, o autor, “de que estão os educadores [à espera] para reintegrar os alunos na natureza (…)?” (p.399). É que, segundo a Alliance for a Healthier Generation, “quase um terço das escolas primárias dos EUA não fazem intervalos regularmente e 25% das crianças não participam em nenhuma actividade física durante os seus tempos livres” (p.397). E, louvando-se no sempre invocado modelo finlandês, dá nota, o autor, de como a realidade fora da escola entra na sala de aula: na Finlândia, “em primeiro lugar, os alunos só vão à escola a partir dos sete anos de idade. Em segundo lugar, o sistema finlandês confere uma importância significativa ao equilíbrio entre a concentração em aula e as brincadeiras no pátio da escola. A cada 45 minutos, os alunos vão para o pátio da escola para uma pausa lúdica de 15 minutos. Em terceiro lugar, a sala de aula finlandesa estende-se para a comunidade fora das paredes da escola. As aulas são realizadas em vários cenários naturais do meio envolvente. O Ministério dos Assuntos Sociais e da Saúde finlandês afirma que a filosofia educativa do seu país se baseia na premissa de que «o núcleo da aprendizagem não é a informação predigerida a partir do lado de fora, mas a interacção entre a criança e o meio ambiente” (p.399-400). Ao exemplo finlandês, adicionam-se, ainda assim, outras experiências: “as escolas na América e na Europa também têm recreios com espaços verdes. Um terço dos 30 mil recreios escolares da Grã-Bretanha foram transformados em espaços verdes no âmbito do programa para a «aprendizagem através da paisagem». Programas semelhantes estão em curso na Suécia, Canadá e nos EUA” (p.400). Isto, sublinhe-se de novo, em um tempo em que “os jovens que crescem num mundo altamente mediado pela estimulação electrónica de todos os tipos e são constantemente bombardeados por um fluxo de informação estão a perder a capacidade de concentração. Nas salas de aula, onde a multitarefa se tornou a norma e as distracções são a regra, a capacidade de reflectir, organizar os seus pensamentos e procurar uma ideia para a conclusão de uma tarefa tornam-se processos cada vez mais evasivos e difíceis de reter” (p.398). De resto, “infelizmente, hoje em dia as crianças norte-americanas entre os oito e os 18 anos de idade passam cerca de seis horas e meia interagindo com meios electrónicos, como a televisão, o computador, os jogos electrónicos, etc. Num curto espaço de tempo, de 1997 a 2003, registou-se uma queda acentuada de 50% na proporção de crianças que passavam tempo ao ar livre, fazendo caminhadas, passeios, jardinagem e brincadeiras na praia. Actualmente, menos de 8% dos jovens passam tempo nestas actividades tradicionais ao ar livre” (p.392).
Note-se que a impor-se, em definitivo, tal modelo (que alguns dirão, mau grado os estudos avançados, excessivamente optimista quanto à humana natureza), um tipo de educação, voltado para a auto-suficiência do educando – um tipo de educação, com que, até hoje, tantas gerações foram ensinadas em casa, contra o qual já Martha Nussbaum se batera -, perde, de sobremaneira, pertinência (porque é a interdependência a ter que ser ensinada).
Tudo isto bem ponderado e acolhido, sem, contudo, deixarmos de atentar criticamente, é certo, numa certa ideologia que hoje não deixa de passar pelas nossas ruas, que tende a confundir-nos numa espécie de fusão cósmica, de inteligência colectiva que passa por pequenos pontos ou nós, a ideologia da rede, como que despersonalizando-nos e negando, em última instância, a individualidade, o fenómeno único e singular, que na história não se repetirá, que cada um de nós é. Tal realidade, não há programa, por mais atractivo que seja, que possa colocar em causa.
Aprendamos, então, com as boas ideias e preservemos, com prudência, o fundamental da tradição em que nos inserimos – aquela que descobriu em cada pessoa não um nó a participar numa inteligência mais vasta, mas uma dignidade que se nos impõe e da qual cumpre cuidar.

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)


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