O CREPÚSCULO DA DEMOCRACIA? ANNE APPLEBAUM

 

O crepúsculo da democracia? Anne Applebaum

1.Na biblioteca, cada vez mais numerosa, sobre a emergência de democracias iliberais durante a última década, em diferentes zonas do globo, O crepúsculo da democracia, de Anne Applebaum, historiadora, premiada, do Gulag, politóloga, académica na London School of Economics Institute of Global Affairs e colunista em algumas das mais prestigiadas publicações internacionais (do Washington Post à The Atlantic), cidadã ideologicamente filiada em uma direita liberal clássica (de feição thatcherista), procura dar o seu específico contributo para o esclarecimento das condições sob as quais é possível a democracia perecer (em um dado país).

2.Por muito que uma realidade seja intelectualmente consabida por um sujeito (ou por um povo), há circunstâncias históricas que a tornam como que palpável (sentida, compreendida na integralidade), obrigando a um re-conhecimento (outro), impossibilitando qualquer estado de negação (ou letargia/apatia) e implicando-nos, seja ao nível do pensamento (não é que eu saiba, afinal, o que sabia – “como é possível?!”, interrogamo-nos não sem estupor), seja da acção nesse desvendar e formatar de um tempo. Assim, sobre a precariedade dos regimes democráticos em que assentamos. Pode ter sido, entre nós, durante a crise financeira, iniciada em 2008 (nos EUA e que, por cá se repercutiu pouco depois), quando um, à época, conhecido interventor público afirmou ter tido muita gente (jovem) que com ele foi ter para marchar sobre (e arrebatar) o Terreiro do Paço; eventualmente, terão sido as imagens de uma Assembleia da República ladeada de manifestantes zangados, em fúria, impendendo sobre as grades, gritando sobre as medidas de austeridade; quem sabe, as imagens, tocantes, das lágrimas de um comentador, depois do jantar, na sicnotícias (?), ou uma ministra, de um governo europeu, que face ao descalabro social a que se assistia, irrompeu, igualmente, em pranto?;  abanados pelos vários mecanismos de excepção, acionados tanto pelo Estado (suspensões, cortes, supressões mais ou menos momentâneas, congelamentos…), como por uma sociedade civil a fervilhar (manifestações, irrupções, sucessivas, em actos públicos de figuras do Estado), em dias turbulentos. Definitivamente, foram as histórias, conhecidas paulatinamente, do que se passava a Leste, mas em plena UE (mas daí ao confinamento da «maior democracia do mundo», na Índia); a eleição, no coração das democracias, de um Trump a que se seguiria, no Brasil irmão, um Bolsonaro (que se pretendia siamês, ou o aluno que pensava suplantar o mestre - da Casa Branca); até os Proud Boys invadirem o Capitólio, naquele final de drama que, como lembrava Yascha Mounk evocando Aristóteles (de “A poética”), deve ser, simultaneamente, surpreendente e inevitável. Nem mesmo os mais optimistas ignorarão, por estes dias, que a democracia é um frágil adquirido.

3.E, porventura, talvez seja isso que Anne Applebaum, em uma primeira instância, pretende dizer-nos quando convoca a história pessoal da sua passagem de ano de 1999, na Polónia: na sala de festas, há um conjunto de pessoas que partilham um credo claro e estável, em um mundo ainda legível; dançam e cantam dezenas de pessoas que, entre outros interesses e afinidades, acreditam, comumente, do ponto de vista político, em um liberalismo clássico (ao nível económico), de feição thatcherista. Mais ou menos peso do estado na economia (no caso, menos), maior ou menor crença no mercado (no caso, maior), ou em valores como a competição e a concorrência são tópicos sugeridos – a discussão sobre a democracia, ela mesma, não ocupa, então, os espíritos (digamos que o credo liberal deste conjunto de pessoas não se fica pela dimensão económica, mas, pelo menos por aquela altura, abrange, igualmente, a dimensão política). Há, mesmo, uma cena particularmente curiosa nessa passagem de ano de Applebaum, no final dos anos 90: de modo inusitado, uma sua conviva vai à rua, às 3h da manhã, disparar tiros para o ar em modo de celebração. Uma extravagância típica de quando se está (se julga estar, claro) a salvo da história (houvera os Balcãs, permanecia Le Pen, surgiria Haider…). Mas a história regressou.

Voltámos, pois, em suma, ao longo da última década, espantados, a compreender que “nenhuma vitória política é duradoura”, há divisões subterrâneas que atravessam uma sociedade e das quais os seus membros nem se apercebem até ao momento em que um dado sucesso histórico despoleta tensões e inimizades entre os seus membros (amigos de longa data, familiares, vizinhos deixam de se falar…), que se julgariam improváveis; nenhuma solução é definitiva, nenhuma teoria capaz de explicar tudo, a possibilidade de fracasso real (as ideias de progresso, o optimismo sobre a história e os humanos, o encantamento do mundo, a teleologia da história, se permaneciam, cedem de sobremaneira em um novo clima), os humanos podem sucumbir às piores paixões; “reunidas as condições necessárias, qualquer sociedade pode virar-se contra a democracia”: “as democracias liberais sempre exigiram dos seus cidadãos participação, discussão, esforço, luta” (p.184). O que, suplantada a história, e desertificada a esfera pública (do debate político), se afigurou/afigura como um reclamar de um duro vencer de uma acumulada inércia (em cidadãos, em muitos casos e por consequência da desertificação e privatização vindas de identificar, pouco preparados para uma literacia política mínima).

4.Em um segundo momento, e de forma estrutural, o modo parabólico que encerra a passagem de ano, em 1999, para Applebaum, reconduz-nos a uma inventariação de possíveis causas/respostas explicativas para a transição, de vários dos convivas dos 90’s, de liberais para iliberais, de crentes numa democracia tout-court para se identificarem com modelos autoritários (neles se personificando, evidentemente, esta mudança de regime ocorrida em várias partes do mundo).

É possível, academicamente pelo menos, alvitrar-se que alguns dos indivíduos que passaram por esta mutação – e que tinham estado na festa da politóloga de direita - possam pertencer aquele 1/3 da população de cada país que Karen Stenner identificou como tendo uma «predisposição autoritária» (p.24), favorável à homogeneidade e à ordem. Porventura, algum desses homens reunidos na Polónia em finais da década de 1990, seja (esteja) só; sem família, amigos, conhecidos, obtendo o sentido do lugar no mundo apenas da pertença a um movimento, ou da filiação em um partido. Ou, ainda, possamos vinculá-lo ao grupo de pessoas que não tolera a complexidade e possui um instinto anti-pluralista, sendo, aqui, o autoritarismo concebido como um traço de personalidade (e não um traço de natureza ideológica).

E, no entanto, não são tanto estes casos que, em rigor, para o dilucidar de regimes iliberais mais importarão. Observemos o caso típico do arrivista, os homens e mulheres que se concedem, a si próprios, qualidades de valor insuspeito e se sentem despeitados pelo “regime” – que não os recompensou como, sem dúvida, “mereciam”. Este Homem ressentido, humilhado pela ausência de glória que as suas características implicariam não fosse a “corrupção”, a “bandidagem”, as falcatruas do “regime”, aí está pronto a ocupar, de mão firme e sem hesitação na limpeza em favor da “nova ordem”, a televisão (estatal), os museus, os tribunais, o que for preciso (eis a Polónia, ou a Hungria, de nossos dias). Em realidade, em muitos dos casos, tais figuras não serão isentas de certa (ou, mesmo, bastante) preparação intelectual. Em realidade, os demagogos precisam de quem lhes venda a imagem, de gente que consiga distorcer a lei; carecem, assim, de membros da elite intelectual e culta (os que trairão o compromisso com o debate racional, a verdade, um módico de honestidade na discussão – trata-se dos “clercs”). Entre este escol, além da inveja e vingança, palavras feias concretas realidades, acumuladas ao longo dos anos – agora, por fim, satisfeitas -, há, ainda, quem se dê a sofisticações como a de adoptar a “democracia iliberal” como contraponto, originalidade, face ao banal modelo liberal de importação ocidental (demasiado vacilante, demasiado individualista).

A atual direita autoritária, a Leste, brande a bandeira anti-comunista com inusitada intensidade; contudo, trata-se, sobretudo, de pura hipocrisia, dado que, na Polónia ou na Hungria actuais, as nomeações de quadros comunistas, agora fidelíssimos ao novo regime, são frequentes (p.37). E, bem mais, e de importância determinante, a nova direita é revolucionária (e não, como tradicionalmente, conservadora, portanto), é bolchevique (a concludente lição de Applebaum seria, de resto, ratificada no espectacular grotesco da invasão ao Congresso norte-americano, assalto à democracia representativa, por uma caterva que, muito provavelmente, a também jornalista incluiria nesse paradoxal movimento de uma “Internacional Nacionalista”, em que os vasos comunicantes entre líderes e respectivos staff, bem como nos públicos a que se dirigem, em palavras com infeliz capacidade performativa, se fazem em permanência como “O crepúsculo da democracia” demonstra [a título de exemplo, o staff de Trump e de Netanyahu a ajudarem o Vox, em Espanha, p.129]): “a nova direita é mais bolchevique do que burqueana: é composta por homens e mulheres que querem derrubar, contornar ou minar as instituições actuais, que querem destruir o que existe”, p.28). Há sonhos de violência purificadora, de um choque cultural apocalíptico, na nova direita, como, outrora, existiu na esquerda radical. Aliás, o estado iliberal de partido único foi inicialmente desenvolvido por Lenine (p.31) e é também praticado por China, Venezuela ou Zimbabwe (sendo que em países como Tunísia ou Venezuela se constata uma oposição, em muitas ocasiões, meramente simbólica). Se a paixão «de classe», marcaria o marxismo, sob o fascismo a paixão adquire o contorno «nacionalista». As «democracias iliberais» anunciam a preferência absoluta pelo nacionalismo. De aí, não ser de estranhar que colidam com outras referências ideológicas que, prima facie, em virtude até de símbolos de que se pretenderiam, abusivamente, apoderar (máxime, símbolos cristãos), poderiam suscitar-lhe alguma benevolência: “na Europa Continental, a nova direita despreza a Democracia Cristã, que usou o seu pensamento político baseado nos princípios cristãos para fundar e criar a União Europeia depois do pesadelo da Segunda Guerra Mundial” (p.28).

As mudanças demográficas ocorridas em alguns estados contribuíram, também, para que muitos cidadãos sentissem uma nostalgia dos ‘bons tempos’ senão, inclusive, um autêntico «desespero cultural» e o próprio fim da guerra fria, cuja cruzada moral permitia um empolgamento entretanto transformado em vazio, contribuiu para que alguns encontrassem no palavreado moralista dos novos ‘homens fortes’ um porto de abrigo. Acresce que, de acordo com Applebaum, em algumas partes dos EUA e do Reino Unido [onde a paixão nacionalista, como se sabe, tocou a rebate, como o Brexit evidenciou à saciedade] “há provas de que os novos imigrantes criaram uma concorrência indesejável em alguns postos de trabalho” (p.109).

Indicação e interrogação que nos são deixadas por Applebaum: o «iliberalismo» não é um problema do Leste europeu – “não existiu qualquer onda autoritária-nacionalista e anti-democrática depois de 1989 na Europa Central, fora da ex-Jugoslávia” (embora, registe-se, “a Hungria seja o único país que encerrou uma universidade inteira e foi o único país da Europa que usou de pressões políticas e económicas para pôr a maioria dos meios de comunicação privados sob controlo do partido do governo” (p.140) – e importa perceber “como é que países com trajectórias políticas, estruturas de classe e ciclos económicos distintos – (…) Europa ou os Estados Unidos, mas também a Índia, as Filipinas e o Brasil – desenvolveram, simultaneamente, uma forma semelhante de raiva política entre 2015 e 2019 (?)” (p.110). Face a tais questionamentos, respostas como o incremento da imigração, o revivalismo nostálgico, a desilusão com a meritocracia, o apelo das teorias da conspiração, a natureza conflituosa do discurso moderno (hiper-mediatizado e presente em redes sociais onde a emoção e a extravagância competem para vencer na economia da atenção) são possibilidades explicativas. Que podem, ainda, perceber-se melhor se confrontadas com um mundo de ontem: existência, então, de diálogo centro-esquerda e centro-direita, predomínio de emissoras televisivas nacionais – BBC no Reino Unido, 3 estações televisivas nos EUA -, jornais de grande alcance, um único debate a nível nacional (em vez de uma pluralidade de canais, de grupos, de milhares de fragmentos de conversas, interesses, atenções…quando estas existem e não são pura dispersão). Eis a revolução da internet a explodir de consequências sobre o político (“o género de revolução na comunicação que, no passado, teve profundas consequências políticas”, p.112), em um tempo que sugere estar despido de autoridades – políticas, culturais ou morais – e, assim, sem fontes de confiança (no entender de muitos cidadãos). Ora, “os próprios algoritmos das redes sociais incentivam as falsas percepções do mundo” (p.114), sendo que o meio de comunicação utilizado para o debate transformou a natureza desse mesmo debate: o reddit, o twitter e o Facebook são adequados à ironia, à paródia, ao cinismo e, em diferentes zonas planetárias, vão vencendo eleições políticos “irónicos”, “paródicos”, “farsantes” (p.116). Aos poucos, o mundo virtual semioculto começa a adquirir uma presença no mundo não digital. No tempo que vivemos, a máxima de que «a política é a guerra por outros meios», vai-se impondo – o vencedor de eleições tende a «ficar com tudo».

Os founding fathers norte-americanos não estavam assim tão convencidos de que a democracia liberal era irreversível: “a história era circular”, “a natureza humana era imperfeita”, “eram necessárias medidas especiais para evitar o resvalar da democracia de volta à tirania” (p.141). Não se pense, contudo, que o mais recente título da perspicaz politóloga Anne Applebaum, “O crepúsculo da democracia”, contém um diagnóstico ou profecia destinada a cumprir-se inevitavelmente. Uma fatalidade, um destino trágico. Não é disso que se trata: a autora quis colar-nos à pele o aviso – é possível o retrocesso, a democracia liberal não permanecerá se cada geração não quiser lutar por ela. Cabe-nos, agora, decidir se não queremos que os sinos dobrem pela democracia e, bem assim, empenharmo-nos, vigorosamente, na sua defesa e revivificação.

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A NORMALIZAÇÃO DA DIREITA RADICAL

HUMANO, AMIGO HUMANO (IRENE VALLEJO)

QUE "POLÍTICA DECENTE"? (MICHAEL WALZER)