Os
homens-fortes – contextos, percursos,
biografia, métodos, perfis -, ou uma história do nosso tempo. Gideon Rachman
1.Se a concretização dos populismos e da era do homem-forte, as mutações de signo iliberal e o adensar de forças autocratas
(pelo mundo), em cada (específico) país em que tais realidades políticas
opera(ra)m, implica reconhecer a importância que cada dada liderança (aí)
assumiu, então é mister adentrarmo-nos nas concretas circunstâncias, de
emergência no proscénio da história, de homens como Narendra Modi, Rodrigo
Duterte, Recep Tayyip Erdogan, Viktor Orbán, Vladimir Putin, Xi Jinping, Boris
Johnson, Donald Trump, Mohammed bin Salman, Jaroslaw Kaczynski, Jair Bolsonaro,
Andrés Manuel López Obrador, Benjamin Netanyahu, Abiy Ahmed. Prémio Orwell para escrita política,
editor de política internacional do Financial
Times, antigo correspondente em Washington, Bruxelas e Banguecoque da The Economist, Gideon Rachman preparou
um conjunto de fichas, anotações, retratos, perfis
de cada um dos políticos vindos de mencionar – em uma lista que, aliás, como
todas as listas, implica inclusões ou exclusões mais ou menos controvertidas,
mas que, cremos, no essencial suscitarão consenso bastante em face da procura
de assim se traçar um contorno amplo de lideranças musculadas e de, nelas, o reforço das pulsões de tipo ditatorial/democraturial pelos diferentes continentes - oferecendo-nos, na
diversidade de regimes culturais/políticos (Modi vai a eleições de 5 em 5 anos,
Putin e Xi Jinping alteraram as constituições dos seus países para poderem
governar no resto das suas vidas: “algumas pessoas podem questionar se é
legítimo ou esclarecedor comparar um líder eleito democraticamente, como Modi,
com Xi Jinping, que é o líder de um Estado de partido único, ou até Putin. A
ideia de um «estilo de homem-forte» não se torna desprovida de sentido ao
englobar líderes que governam em circunstâncias políticas e culturas tão
diferentes? (…) Contudo, há algumas características da liderança de homem-forte
que são comuns a democracias e a ditaduras”, p.97), um conspecto precioso para
mapear o nosso tempo (“A era do homem forte”, Vogais, 2023).
2.O que resulta, desde logo, de uma
visão de conjunto que pode ser traçada relativamente ao que comungam,
politicamente, estas lideranças e, nesse acervo, o que representam e
condensam/fixam deste (já considerável) momentum
(político) que atravessamos é o seguinte: i) muitos destes homens, quando
acederam ao poder, foram percepcionados, a partir do exterior (seus homólogos,
estudiosos de relações internacionais,
politólogos, media), como reformistas
(Abiy Ahmed vence o Nobel da Paz; a BBC
comparou a ascensão de Xi Jinping na China à de Gorbatchev na URSS; em 2015,
Obama elogia Modi na capa da Time e
passaria mais tempo com Erdogan do que com qualquer outro líder internacional
durante o seu primeiro mandato; Bin Salman foi visto como a grande esperança
para um Médio Oriente reformado; Putin começa por prometer, relativamente à
Rússia que liderará, um amplo conjunto de liberdades individuais e políticas);
ii) quase todos prometeram fazer os respectivos países “grandes outras vez” (pronunciada
ênfase nacionalista nesta “liga
diferente”(p.194), como lhe chamava a campanha de Netanyahu, em cartaz junto a
outros homens-fortes nas últimas legislativas); iii) o culto de personalidade foi uma característica
que praticaram afincadamente (por exemplo, as ruas de Xangai apresentavam Xi
Jinping com raios a saírem-lhe da cabeça,
uma app permanentemente atualizada
exibia o “Pensamento de Xi Jinping”; crianças da escola “primária” a assistirem
a um discurso de 3h23 minutos de Xi; Modi emprestou o seu nome a um campo
gigante de críquete na Índia, foram feitos vídeos com a sua vida em tom hagiográfico, descrito, quase sempre, o
líder indiano, como um asceta apenas ao serviço do seu povo); iv) quanto mais
tempo no poder, mais arbitrários e autocráticos se torna(ra)m os homens-fortes (no dizer de Erdogan, “a
democracia é como um autocarro, que apanhamos até chegar ao destino. E depois
saímos”, p.61); v) ameaças ao poder
judicial, ataque à liberdade de
imprensa (e, atente-se, há mais jornalistas presos na Turquia do que na
China), assédio a ONG’s; nó apertado
às instituições independentes
(incluindo as universidades, uma das
quais fechada, de forma inédita na UE, por Orbán) e à função pública, captura das instituições culturais (como Museus e, com eles, a reescrita da
História, tal como sucedeu na Hungria) e a Escola
(de novo, em especial, visando os manuais de História, como na Polónia de Kaczyński)
e, bem assim, o incutir do medo da crítica – receio incutido quer ao cidadão
comum, quer a intelectuais públicos -,
ao(s) Executivo(s) foram ingredientes
essenciais destes modos de governar (a AMI
foi obrigada a fechar escritórios na Índia); numa palavra, utilização da democracia para destruir a democracia
(por dentro); vi) o estilo de liderança (dos) homens-fortes passou por formular,
deliberadamente, para captar a atenção das populações, afirmações chocantes (apresentando-se, desta
maneira, estes, como homens decididos frente a - outros, seus adversários
eleitorais, apresentados, ao invés, como - temerosos, que se ficariam por
declarações conciliadoras ou, mesmo, tíbias e sem o punch necessário; o establishment
falhara e só estes homens duros,
garantiam-no eles, se encontrariam à altura de consertar o que ia mal na vida
coletiva de cada um dos países que lidera(va)m); vii) reclamaram-se como a voz
do povo, identificaram-se com este,
assumindo que o personificavam (como se o povo
fosse susceptível de ser tomado uniformemente),
contra as elites - liberais, cosmopolitas/globalistas e corruptas
(centralização do poder e identificação do líder com a nação: no dizer propagandístico do presidente do parlamento russo,
Vyacheslav Volodin, “se Putin existe, a Rússia existe. Se Putin não existe, a
Rússia não existe”, p.48); viii) em múltiplas ocasiões, estes homens
apresentaram-se não apenas como líderes políticos, mas (também) espirituais e utilizaram a religião para
unir as populações; ix) em diversos casos (Trump, Bolsonaro, Obrador, Netanyahu
– “a maior fraude de sempre”, diria Bibi sobre eleições que perdeu), tais
lideranças contestaram processos e resultados eleitorais; x) em múltiplas
ocasiões, o nepotismo adveio no seio de Administrações que estes homens
constituíram (Trump levou o genro Jared Kushner para o governo; com Erdogan, o
genro Berat Albayrak foi elevado a ministro da Energia e, depois, à pasta das
Finanças; Duterte convocou amigos e colegas de infância para o seu governo e na
câmara municipal de Davao, a filha suceder-lhe-ia e o filho seria
vice-presidente; o genro de Órban tornou-se um dos homens mais ricos da
Hungria, beneficiando de adjudicações, com um único licitante, em encomendas e
Estado que valeram muitos milhões); xi) a utilização de mentiras, factos alternativos, teorias da conspiração em grande escala foram uma constante nestas
lideranças, redundando, finalmente, a verdade em uma perspectiva (mais), uma interpretação,
uma versão (outra) entre outras dos
acontecimentos; xii) o contorno das leis,
o passar por cima destas, o desprezo
pelas regras e procedimentos, tanto na ordem interna como externa, foi algo que
uniu (dir-se-ia, mesmo, que fez parte do seu apelo/sedução), igualmente, os homens-fortes que na última década têm
marcado fortemente a paisagem política mundial (“o bem da nação está acima da
lei”, afirmou o deputado Kornel Morawoecki, do PiS, gerando uma ovação de pé pelos seus correligionários, no
Parlamento polaco); xiii) a fragilidade de milhões de pessoas que em virtude da
guerra tiveram que fugir dos seus países para conservar a vida e aportaram á
Europa, em particular em 2015, mormente oriundos de sociedades em que a maioria
da população afirma seguir o credo
islâmico despoletou medos, ansiedades, preconceitos que muitos destes
líderes aproveitaram para acirrar e para, neles, se erguerem e/ou manterem no
poder. As mudanças em termos demográficos e sociológicos, o receio da perda de
um determinado estatuto nas suas sociedades por parte de populações que, mesmo
que claramente maioritárias, não o eram/serão em termos similares aos do
passado (o caso dos “caucasianos” nos EUA), foram determinantes no detonar
destas lideranças.
3.As Filipinas e o sudeste asiático têm
sido, ao longo das décadas, um barómetro
precioso e, simultaneamente, influenciador
no balancear dos povos e dos Estados entre democracias
e autocracias (“as Filipinas como o
Sudeste Asiático como um todo desempenham um papel chave na luta global entre o
autoritarismo e a democracia ao longo dos últimos 40 anos. Tendo em conta que o
Sudeste Asiático é o «jardim das traseiras» da China, o significado da região
enquanto indicador para a democracia internacional provavelmente aumentará nos
próximos anos”, p.173). De aí que a eleição de Rodrigo Duterte, em Maio de 2016,
como Presidente das Filipinas, um país que tinha, ao nível da Economia,
atingido uma velocidade de cruzeiro
ao longo dos anos (incluindo taxas de
crescimento de 6%/ano), tenha sido um alerta grave. Duterte seria o “mais
abertamente brutal dos homens-fortes” (p.172), com uma política de execuções extrajudiciais
de traficantes e consumidores de droga. No limite, tal prática poderá ter
levado à morte de 27 mil pessoas; do que não restam dúvidas é das crianças que
perderam a vida no fogo cruzado (e da sobrelotação, levada ao paroxismo, das
prisões). Esta política, que abalou as consciências pelo mundo, todavia, havia
sido já praticada quando Duterte estivera à frente da Câmara Municipal de Davao
(gabando-se, então, inclusive, em prédica televisiva, de ser um dos operacionais
que colocaram termo à vida de pessoas que alegadamente traficavam ou consumiam
drogas). Na utilização de fake news e
no impulso às mesmas via redes sociais
(108 milhões de habitantes, 70 milhões de utilizadores do Facebook), Duterte e a sua equipa de campanha são, hoje, vistos
como precursores de muitos dos seus homólogos homens-fortes. E foi nesse tipo de propaganda que Duterte, alguém
que se apresenta como um homem simples com origens humildes – e que, deste
modo, preferia manter o título de presidente
da Câmara do que o de Presidente,
sendo, no entanto e em realidade, herdeiro de elites políticas -, um actor com
linguagem vulgar, que criou o sentimento de pânico nalguma parte das classes
médias com a ideia de (as Filipinas serem um) «narcoestado»: “os especialistas
ridicularizaram esta afirmação. Existe, sem dúvida, um problema de drogas nas
Filipinas, em particular no que diz respeito ao uso de metanfetaminas ou
«shabu» nas zonas mais pobres do país. Mas, de acordo com a ONU, a utilização
de estupefacientes em geral, nas Filipinas, está abaixo da média mundial, com
cerca de 1 por cento da população a consumir metanfetaminas em 2016” (p.176). Distinguiu-se
de outros líderes-fortes pela
ausência de ideologia - tanto servindo herdeiros de Ferdinando Marcos como, por
exemplo, continuando políticas que disponibilizam ensino superior gratuito, sem
propinas, portanto, aos seus cidadãos - e, ainda, por uma política exterior ziguezagueante (nas relações com China e
EUA, num país muito pró-americano, em
que metade da população fala inglês). A câmara municipal de Davao, a que
presidiu, continua a ser a que governa a cidade com o maior número de
homicídios no país.
4.Narendra Modi, nascido em 1950, numa casta baixa, na pequena cidade indiana
de Vadnagam, ingressou aos 8 anos num movimento nacionalista hindu (cujo fundador era admirador de Mussolini). Num
país com 1400 milhões de habitantes – o mesmo, sensivelmente, do que a China,
formando, estes dois tigres asiáticos,
cerca de 40% da população mundial -, 80% dos quais hindus, esta pertença
arreigada (ascendeu ao poder ao defender a destruição de uma mesquita, na cidade de Ayodhya),
combinada com as suas origens efectivamente humildes, o seu conhecimento de rua
de vendedor (na loja paterna) de chá, uma história recente indiana de dominação
inglesa (durante 200 anos; a divisão da Índia, que acompanhou a independência,
criou dois Estados, Índia e Paquistão, sendo este último maioritariamente
muçulmano. As transferências de população forçadas e a violência que
acompanharam a divisão levaram à morte de dois milhões de pessoas, pp.99-100),
a capacidade oratória e, nela, a convocatória de uma vitimização étnica; um
casamento arranjado, concretizado aos 13 anos de vida e, pouco tempo depois,
uma separação e, desde então, uma vida sem acrescento à prole inibindo, pela
natureza dos factos, os adversários de apontarem à preferência e corrupção a
favor da família (como que inexistente) num país onde a competição por
empregos, oportunidades de ensino e recursos é muito feroz, e quaisquer
privilégios atribuídos politicamente muito problemáticos, fizeram de Modi um
caso sério na política indiana. Cultivou não apenas a imagem de um político
ascético, que deixava as controvérsias para os seus lugares-tenente (como se daquelas estivesse ausente ou acima) e
preocupado, exclusivamente, com o interesse nacional, mas também e ainda um
pragmático, favorável às empresas
(nomeadamente, no seu estado natal de Gujarate, na costa ocidental do país, com
60 milhões de habitantes, e onde o crescimento económico foi acima da média
nacional, p.101). Carismático, tribuno de relevo, seria associado (como
incentivador) a um pogrom
antimuçulmano, no ano de 2002 (no qual morreram mil pessoas, em Gujarate), o
que acabaria por afectar, entre os liberais
(democratas), a sua imagem. Figuras influentes do (seu) regime propuseram,
ao longo dos anos, o fim do direito de voto dos indianos muçulmanos a menos que
estes reconhecessem que os seus antepassados indianos eram hindus. O Estado liberal – enquanto Estado, entre outras
características e obrigações, que respeita os direitos das diferentes minorias – atacado fortemente, com uma
curiosa narrativa, atendendo ao país ser esmagadoramente assente em uma
população que professa o hinduísmo,
de os hindus serem oprimidos (na sua própria casa) há 1200 anos (e de as elites governantes, em décadas
anteriores, estarem capturadas por muçulmanos ou lideradas por budistas).
Assim, as leis de revisão de nacionalidade, discriminatórias para com indianos
muçulmanos (200 milhões de pessoas), deram, igualmente, origem a fortes
tumultos nos anos mais recentes (nomeadamente, em 2018).
Em 2016, Modi, eleito pela primeira vez
dois anos antes (conseguindo consolidar a sua posição com o apoio de pouco mais
de um terço do eleitorado), abole 80% da moeda do país que, apesar das
intenções declaradas de combate à corrupção, penalizaria, na prática, os mais
pobres (“a desmonetização foi uma medida populista clássica”, p.104). Como 50%
dos indianos ainda vivem da terra, as medidas liberais clássicas na economia como a eliminação do preço garantido aos agricultores,
revelar-se-ia fatal para muitos destes (apesar do respaldo que a reforma
mereceria por parte dos tecnocratas)
e a legislação, neste domínio, teve, mesmo, que ser revista (voltando à primeira forma). A reacção à pandemia da
Covid19, por parte do governo Modi,
revelar-se-ia desastrosa, apresentando dos piores resultados a nível mundial
(mesmo que o culto de personalidade, na Índia de Modi, implicasse que a quando
do certificado de vacinação, cada indiano levasse, nele, impressa uma
fotografia do Primeiro Ministro).
Modi, por outro lado, destacara-se na promessa, e cumprimento desta, da
construção de casas de banho para milhões de indianos. Com o passar do tempo no
Executivo, e em novo mandato, o
ataque às liberdades individuais, ao poder judicial, aos intelectuais e aos
académicos fez sentir-se de sobremaneira: “pela primeira vez desde 1997, a
Índia – que já travou três guerras pós-independência com o Paquistão, passou de
país livre para país «parcialmente livre», de acordo com a classificação da Freedom House”. Esta instituição plasmou
e lamentou, em relatório de 2021, que “Modi e o seu partido estejam a conduzir
tragicamente a Índia para o autoritarismo” (p.114). E, em realidade, pode
argumentar-se, atenta a situação internacional, que “a deriva da Índia para o
iliberalismo estava na verdade a fortalecer a tendência global em direcção ao
autoritarismo” (p.115).
5. “Os seus rostos não são visíveis,
estão antes escondidos dos nossos olhos […] Não são nacionais, mas
internacionais. Não acreditam no trabalho, mas especulam com o dinheiro. Não
têm uma pátria, mas sentem que o mundo inteiro lhes pertence” (p.124). Assim,
em discurso proferido em 2018, Viktor Orbán voltava a utilizar a “clássica
imagética antissemítica” em pleno coração da Europa.
O homem nascido em 1963, a 50 km de
Budapeste, na pobreza, numa casa sem água canalizada (apenas aos 15 anos
contactaria com uma casa de banho moderna), filho de família de trabalhadores
agrícolas (sendo que o seu pai possuía, já, uma licenciatura), viria a ser um
aluno brilhante e um orador carismático na Faculdade de Direito de Budapeste
(escreveria uma tese sobre Gramsci), entrando, barbudo, aos 26 anos, pela casa
dos seus compatriotas, com afirmações vincadas contra o regime comunista então
no poder – popularidade que capitalizaria após a mudança política estrutural
ocorrida no país. Durante o seu percurso académico, seria bolseiro do
filantropo judeu húngaro George Soros. Já no poder, Órban irá atacar fortemente
o seu benemérito e obrigar a Universidade que este financiara – e que trouxera
académicos de grande prestígio internacional para a Hungria – a mudar a sua
sede para Viena.
A crise de refugiados de 2015, na
sequência da guerra na Síria, e os acontecimentos com o Charlie Hebdo proporcionaram a Órban a oportunidade de se balizar
como o porta-estandarte da política
anti-imigração na Europa, em particular a oriunda de sociedades
maioritariamente muçulmanas: “tolerância zero contra os imigrantes […] Não
queremos ver entre nós quaisquer minorias cujo contexto cultural seja diferente
do nosso. Queremos manter a Hungria para os húngaros” (p.116). Na Hungria,
foram recusados comida e abrigo aos refugiados e construída uma cerca de arame
farpado de 175 km’s com o intuito de evitar que migrantes aportassem aquele
país. O Tratado de Trianon, de 1920, na sequência da I Guerra Mundial, esteve
na origem da perda de 2/3 do território húngaro, sendo que Órban evocou,
permanentemente, esse facto para revalorizar a centralidade da nação. Era algo
que, afirmava o PM húngaro (depois de eleito em 1998 pela primeira vez, regressaria
em 2010 ao poder, após um escândalo de corrupção no interior do governo
socialista no rescaldo da crise financeira de 2008), o liberalismo não compreendia (Viktor Orbán e Jaroslaw Kackzynski
descreverão o “liberalismo” como um “totalitarismo”). Orbán, “cínico e
estratégico” (p.120), pretendeu-se um teórico (ao contrário do seu homólogo
polaco, pouco dado aos palcos internacionais, não se expressando em inglês e
preferindo os gatos e os livros em casa) e, enquanto passava a ser um “ogre dos
liberais”, erigia-se a herói dos conservadores
mais tradicionalistas pela defesa
contundente da sua “democracia iliberal” (convidado para grandes comícios da CSU, na Baviera, ou pela equipa de
Bannon/Trump no Texas). Quando acede, de novo, ao Governo, em 2010 (tivera uma
primeira experiência entre 1998-2002), obtendo dois-terços da maioria no
Parlamento, usa os “seus poderes para fazer recuar o Estado de Direito. Em 2011, foi promulgada uma nova Constituição no
Parlamento húngaro que concedeu à maioria parlamentar o poder para nomear
juízes para o Tribunal Constitucional. O tribunal foi ficando com cada vez mais
juízes simpatizantes de Órban e com cada vez menos poderes de revisão.
Representantes de confiança do Fidesz
[partido de Orbán] ficaram responsáveis pelos meios de comunicação social do
Estado, e os amigos e comparsas de Orbán começaram a comprar o resto da
imprensa” (p.123). Até o currículo do jardim
de infância, no sentido de incutir uma maior ênfase na “identidade
nacional” ou no “patriotismo” (e de uma dada visão do “cristianismo” –
seguramente não o cristianismo hospitaleiro, compassivo, acolhedor para com
todos, independentemente das suas origens ou filiações de nacionalidade,
étnicas ou religiosas), foi alterado.
Entretanto, a Transparência Internacional estimava que 40% dos contratos públicos
da Hungria tinham sido atribuídos na sequência de concursos que envolveram
apenas um licitante. E, em 2017, “uma investigação por parte do Organismo
Europeu da Luta Antifraude da União Europeia (OLAF) recomendava que István
Tiborcz, o genro de Orbán, fosse acusado por as suas empresas terem adulterado
licitações no valor de dezenas de milhões de euros em contratos da União
Europeia para a iluminação municipal. Como não será de espantar, a Hungria
ignorou essa recomendação (…) Tiborcz é agora uma das cem pessoas mais ricas da
Hungria. Supõe-se que o segundo homem mais rico do país será Lorinc Meszaros,
um amigo de infância de Orbán” (p.125).
Orbán é, atualmente e após a saída de
cena de Angela Merkel, o PM de mais longo mandato no seio dos líderes de
executivos dos países da UE-27. Um segredo “embaraçosamente revelado foi o
facto de o governo alemão ter tolerado Orbán porque este lhe era útil. Durante
grande parte dos governos Orbán-Merkel, os votos do Fidesz no Parlamento
Europeu ajudaram a garantir a maioria relativa do Partido Popular Europeu (PPE)
(…) Consequentemente, a CDU fez os possíveis para fechar os olhos à erosão da
democracia na Hungria, não fosse o confronto com Orbán custar ao PPE a sua
preciosa maioria parlamentar” (p.126). Só quando atacou Juncker, prestigiado em
Bruxelas, Orbán perdeu o apoio do PPE, do qual acabou por sair, pelo próprio
pé, em 2021.
Por sua vez, Kaczyński, o líder do Partido Lei e Justiça, na Polónia,
eleito pelas pequenas localidades e zonas rurais, elevou as teorias da conspiração a um nível
bastante elevado quando sustentou que a morte do seu irmão em território russo
– apesar de todas as averiguações e conclusões remeterem para um acidente e
falha humanos – foi provocada por manobras de políticos daquele país, quando
não, em pleno parlamento polaco, acusou os opositores de lhe terem causado a
morte. Além da captura do poder judicial e dos árbitros do sistema, à semelhança do ocorrido na Hungria,
prosseguiu, também, uma forte guerra
cultural, declarando combate, nas eleições de 2020, aos homossexuais (o
académico, intelectual público e teólogo católico Tomás Halík escreveria que a
colagem, de parte da hierarquia católica ao regime do PiS, fez pior ao catolicismo polaco e sua credibilidade do que a
perseguição dos anos comunistas, dos
quais a Igreja saiu como uma das forças de maior respeito e confiança do país).
6.Um estudo profundo sobre as eleições
presidenciais norte-americanas de 2016, das quais Donald Trump sairia vencedor,
intitulado ‘Identity Crisis’, da autoria de John Sides, Michael Tesler e Lyyn
Vavreck demonstra que o melhor preditor de voto em Trump passou pelas atitudes
(dos eleitores) em relação à raça e à etnicidade. Isto é, “Trump tornou-se um
defensor dos eleitores caucasianos que se sentiam económica e socialmente
inseguros e que, o que é fundamental, culpavam as minorias étnicas pela sua
situação” (p.158). Trump teve a maioria dos votos entre caucasianos, tanto nas eleições de 2016 como nas de 2020. E,
ademais, a maior margem de vitória entre os caucasianos sem formação
universitária desde 1980. Ou seja, as mudanças demográficas e de imigração
constituíram um apelo determinante em Trump, desde logo em 2016. Michael Anton chamou-lhe
“Eleição do Voo 93” (numa clara alusão ao voo do 11 de Setembro de 2001, em que
os passageiros assumiram o controlo do avião aos sequestradores que tencionavam
despenhá-lo na Casa Branca ou no Congresso em Washington. O avião despenhou-se
num campo da Pensilvânia, matando todos os que se encontravam a bordo).
Isto é concomitante com o que se
passara 6 meses antes com o Brexit (referendo
que mobilizou 72% do eleitorado, mais do que em qualquer acto eleitoral nos 25
anos precedentes, o que sugere a possível corroboração de diferentes estudos
que indicam que o discurso populista consegue chamar às urnas muitos dos que
eram habituais abstencionistas): tal como no rust belt norte-americano, a “angústia económica”, manifestada nas
zonas desindustrializadas do Reino
Unido – que votaram “leave” (“abandonar”) por oposição às grandes metrópoles
que preferiram “remain” (“permanecer”) -, deve ser lida de modo abrangente e
complexo: esta existe, sim, sem dúvida, mas é parte de uma questão maior e que
se prende com a identidade e o modo como
os que sindicaram a saída da UE ou
uma presidência Trump, respectivamente, preencheram esse conceito em termos de
comunidade em que se (re)vêem (ou, o mesmo é perguntar, “o que é ser britânico
ou norte-americano” (?); neste sentido, para M. Anton o pensamento de um
eleitor de Trump passaria pela rejeição de muitos (novos) refugiados ou
imigrantes (nos EUA), associando a tal recusa um “quero que o meu país viva,
quero que o meu povo viva” - como se a ida, para os EUA, de mais imigrantes
colocasse em causa tal país, povo, identidade…que sempre reclamou, de resto,
ser a de uma sociedade que se reclamava de oportunidades para todos os que
quisessem para ali migrar…mesmo que do mito
ao facto vá uma distância, em
especial no tipo de oportunidades e numa mobilidade social (ascendente) que, no
caso norte-americano, está longe de preencher os melhores registos mundiais).
“A campanha Remain concentrou-se
quase inteiramente nos benefícios económicos da permanência da Grã-Bretanha na
União Europeia. Mas sondagens posteriores revelaram que os eleitores Leave não foram influenciados, em
primeiro lugar, pelas questões económicas. Como Roger Eatwell e Matthew Goodwin
argumentavam, numa análise pós-referendo, «os remainers falavam incessantemente sobre o risco económico, ao passo
que os leavers se preocupavam, acima
de tudo, com as supostas ameaças à sua identidade e grupo nacional». Seis em
cada dez eleitores Leave disseram que
os danos significativos à economia britânica eram um «preço que valia a pena
pagar pelo Brexit” (pp.137-138). Para
o caso norte-americano, “o stress económico era apenas parte da questão. Muitos
dos que votaram em Trump foram igualmente impelidos por uma sensação de
estatuto perdido, bem como de perda económica direta. Como Cameron Anderson, um
psicólogo social de Berkeley realçou: ‘é muito difícil para os indivíduos e os
grupos aceitarem a perda de estatuto e poder […] Respondem a essas ameaças com
stress, ansiedade, raiva e, por vezes, até violência” (pp.158-159). Projecta-se,
para os EUA, que na década de 2040, os caucasianos
sejam menos de 50% da população, embora continuem a ser o maior grupo. A maior
minoria emergente é a população hispânica dos EUA, que deverá representar 24,6%
da população em 2045, comparada com os 49,7% dos caucasianos, 13,1% dos negros
e 7,9% dos asiáticos.
Talvez tenhamos ficado pela mensagem de
uma campanha bem-sucedida por parte de Boris Johnson relativa à saída do Reino
Unido da UE assente numa narrativa que dizia que aquilo que os britânicos
poupariam em transferências para a
Europa permitiria robustecer o (seu) Serviço
Nacional de Saúde, mas, por estranho que pareça, uma grande parte da
campanha ancorou-se, também, no medo da entrada da Turquia no clube europeu (apesar de há muito tal
ser um assunto encerrado, e de veleidades não serem tidas, nem do lado turco,
nem do lado europeu quanto a tal potencial filiação). O slogan “recuperar o controlo” foi bastas vezes entoado como um
refrão, pela campanha realizada pelos defensores do Brexit, que procurava sugerir e ser reconduzido à recuperação de
fronteiras e ao travar da imigração (pelos britânicos; nota: não só a imigração
não diminuiu, como a burocracia aumentou no pós-Brexit, no Reino Unido). Curiosamente, Boris, como era universalmente conhecido, tinha exaltado a (sua)
ascendência de um avô turco liberal, jornalista conceituado. Do ponto de vista
familiar, aliás, Johnson teve no seu pai um funcionário da UE, ele próprio
estudaria na Escola Europeia de Bruxelas
e um dos irmãos demitir-se-ia, mesmo, do governo liderado por Alexander (Boris
Johnson) em protesto contra as políticas do irmão em favor do Brexit. Contudo, é certo igualmente,
Johnson viria a graduar-se em Eton
(Secundário) e no Balliol College de
Oxford, por onde passaram muitos futuros PM’s britânicos (firmando, desde
então, uma reputação tanto da sua excentricidade, quanto de uma certa marca
intelectual – que prosseguiria quando passou a escrever nos jornais e se fez
uma figura popular). As semelhanças traçadas entre Johnson e Trump incluíram as
dimensões mais pessoais e privadas – do cabelo, à diferença de idades de cada
um destes homens para as suas terceiras esposas, 23 e 24 anos mais novas
respectivamente, até à presença decisiva, quanto ao futuro político de ambos,
na televisão, do Have I Got News for You
até ao The Apprentice,
respectivamente – bem como as dimensões políticas de relevo, da (em ambos os
casos) calamitosa gestão da pandemia covid19
(no Reino Unido, um grande número de mortos, aliás, o mais elevado da Europa
Ocidental; Boris Johnson, o primeiro líder
mundial a ser admitido num hospital, baixando aos cuidados intensivos, vítima do novo coronavírus), passando pela utilização deliberada da mentira como
estratégia política (Boris Johnson negou conteúdos fulcrais do acordo do Brexit com a UE, os quais, de resto, a ex-PM conservadora Theresa May considerou
inaceitáveis de subscrever por qualquer chefe do Executivo britânico; de acordo
com um estudo do The Washington Post,
Trump mentiu, ou deu informações erradas, por mais de 22 mil vezes durante o
seu mandato), até à admiração por personalidades populistas, que não cumpriam as leis, ou de tendência autocrática (da admiração de Johnson por
Berlusconi, condenado e preso por fraude fiscal, até à reverência de Trump por
Ji Xinping: “Xi Jinping explicou a Trump que, no fundo, estava a construir
campos de concentração em Xinjiang. De acordo com o nosso intérprete, Trump
disse que Xi Jinping devia avançar com a construção dos campos, que achava que
era a coisa certa a fazer” (contou John Bolton, no seu livro de memórias,
p.165). Em entrevista a Bob Woodward (incluída em livro), Trump afirmara:
“quanto mais duros e maus, melhor me entendo com eles” (p.166). Nada de muito
diferente, afinal, do que afirmara numa entrevista de 1990 à Playboy – “essa entrevista tornou-se de
leitura obrigatória para diplomatas e correspondentes a caminho da América de
Trump, tal como as gerações anteriores que procuravam compreender a China ou a
União Soviética poderiam ter tentado ler o Pequeno
Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung ou Que
fazer?, de Lenine”, p.159 – quando tratou Gorbatchev como fraco e comentou
o massacre da praça Tiananmen, que ocorrera nove meses antes, da seguinte
maneira: “foram violentos, foram terríveis, mas acabaram com eles com força.
Isso mostra o poder da força. O nosso país, neste momento, é visto como fraco”
(p.160).
Os EUA não foram o primeiro país, longe
disso, a sucumbir à política do homem-forte
– Rússia, Turquia, China, Índia, Hungria, Polónia, Reino Unido -, mas “o que
acontece na América define o tom da política em todo o mundo” e “de Brasília a
Riade e a Manila, aspirantes a Trump prestaram atenção e aprenderam a lição”
(p.169).
7.Durante quase 30 anos, entre
1948-1977, a política israelita foi dominada pelo Partido Socialista do pai-fundador do país David Ben-Gurion.
Apenas, pois, já na reta final dos anos 70, o partido de direita Likud ascende ao poder. É interessante
observar as diferenças de contexto social e de proveniência geográfica dos
partidários destas duas correntes: “os trabalhistas
eram liderados por exilados da Europa de Leste de ascendência asquenaze,
que provinham da esquerda e eram encarados como a elite intelectual e social do
novo Estado de Israel. O Likud, por
contraste, ia buscar grande parte do seu apoio aos judeus sefarditas que tinham sido expulsos ou haviam emigrado a partir das
nações árabes, e mais tarde a imigrantes chegados da Rússia depois do colapso
da União Soviética. Era o partido dos forasteiros que se reunia contra a elite
complacente e liberal” (p.192).
Filho de um intelectual de direita nascido em Varsóvia, Benjamin
Netanyahu nasce, em 1949, em Tel Aviv, passando, no entanto, uma parte da
infância, entre os 8-10 anos, em Nova Iorque e Filadélfia, e licenciando-se em
gestão e arquitectura no MIT.
Netanyahu compreende, na perfeição, toda a dinâmica da política
norte-americana, fala um inglês perfeito (que o ajudou a ser embaixador da ONU
entre 1984-1988), dirige muitas reuniões do seu núcleo-duro na língua de Shakespeare, percebe a oportunidade e o
momento quando um líder como Trump ascende à liderança dos EUA – não por acaso,
a histórica mudança da embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém dá-se nesta
altura (2018), bem como a retirada dos EUA do acordo nuclear que tinham com o
Irão (potência regional com quem Israel tem relações conturbadas) e os EUA
reconhecem a soberania israelita sobre as colinas de Golan, que tinham sido
retiradas à Síria durante a guerra dos
seis dias em 1967. Sob a égide dos EUA, pela primeira vez os aviões
israelitas são autorizados a voar sobre a Arábia Saudita (dois países que
partilham a antipatia com o Irão) e, sobretudo e mais importante, afirmaram-se
laços diplomáticos entre Emirados Árabes Unidos e Israel. Entretanto, a comum
desconfiança face ao Islão, levou Modi, em 2017, a ser o primeiro PM indiano a
visitar Israel. Um ano depois, Netanyahu receberia Duterte: “temos a mesma
paixão pelos seres humanos” (afirmou, então, este último). Em 2019, a vez de
acolher em Israel Jair Bolsonaro.
Netanyahu tem no filósofo Yoram Hazony
o seu pensador político favorito e a equipa de Trump garantia que para se
perceber o presidente norte-americano eleito em 2016 era necessário ter em
atenção este autor (com o qual, diga-se, Orbán se encontrou e cita como
influencia intelectual). Em 2018, Hazony publicou “A virtude do nacionalismo”,
livro no qual afirma que “a única verdadeira fundação de ordem política de
liberdade humana é a nação, com base numa língua, cultura e religião
partilhadas. Todas as nações de sucesso (…) necessitam estar organizadas em
torno de um grupo ‘cujo domínio cultural seja claro e indisputável e contra o
qual a resistência pareça fútil’” (p.195). Desde o ano 2000 no poder, com breve
interrupção, Bibi, como é conhecido,
é já o PM israelita que mais tempo
passou no poder, depois de ter sido o mais jovem a ser eleito (em 1996), ao
longo da história. Embora tenha chegado a aceitar a solução de dois Estados, Netanyahu nunca pareceu
convicto dessa afirmação e do respeito pelos palestinianos. Na ordem interna, a
mais recente legislação que procura ultrapassar, no Legislativo, decisões do
judicial, tem gerados megaprotestos no país, alegando-se em causa estar a
passagem de uma democracia a uma ditadura (se tal pacote legislativo for
avante).
Mohammed bin Salman entrou no governo
em 2015; filho do rei Salman (que era o 25º filho do primeiro monarca da
família), teria 5 irmãos, sendo que dois destes morreriam. Foi governador,
bem-sucedido, de Riade. Nomeado formalmente em 2017 como Príncipe herdeiro, nunca
a liderança saudita esteve tão identificada com um homem carismático como com
ele. Compreendia a importância da opinião pública e redes sociais num país de
34 milhões de habitantes, no qual dois terços têm menos de 30 anos. Sendo que a
opulência da realeza saudita não tem rival, Salman adquiriria um château nos arredores de Paris por 300
milhões de euros. Interveio militarmente no Iémen, sem sucesso. Tomou as rédeas
sobre a polícia religiosa e deu permissão às mulheres para conduzirem. As
liberdades sociais expandiram-se – a sociedade estava mais solta, tornava-se
mais fácil viajar e criar o próprio negócio – perante, contudo, um pano de
fundo de terror (os serviços secretos ocidentais receberam a notícia de que
Salman colocara a própria mãe em prisão domiciliária; o primeiro na linha de
sucessão do rei Salman, um primo de MBS, foi colocado em prisão domiciliária em
Jedah; houve detenções em massa dos críticos do Príncipe Herdeiro; intimidação
de intelectuais. O jornalista Jamal Khashoggi, que denunciaria este clima,
passado um ano foi morto no consulado saudita de Istambul, com a CIA a concluir
que o brutal assassinato teve a aprovação de bin Salman).
8.Conquanto os telejornais insistam, até à exaustão, num determinado tema, mas
sucumbam à novidade do dia ou semana seguintes, talvez o público português que
assistiu ao caso da tentativa de golpe de estado na Turquia de Erdogan, em
2016, e às prisões dos dias seguintes, possa ter permanecido meditabundo e sem
esclarecimento quanto à dúvida que pairou, então, no ar: teria, mesmo, havido
tentativa de golpe de Estado, ou tratar-se-ia de uma encenação do/no interior
do próprio regime?; Fethullah Gulen estaria, efectivamente, ligado ao (suposto)
golpe, ou fora este desenhado para colocar Gulen e os seus partidários debaixo
de fogo? Obras como “A era do homem-forte”, de Gideon Rachman têm a virtude de
permitir um relato completo e inteligível do conjunto dos acontecimentos:
“efectivamente, há provas de que os apoiantes de Gulen estiveram fortemente
envolvidos na conspiração contra Erdogan” para “prender e, talvez, matar
Erdogan no hotel onde este passava férias. Erdogan foi avisado com uma hora de
antecedência e partira. No momento em que o Parlamento turco era bombardeado
por caças, Erdogan apareceu na televisão – através do Face Time – e apelou aos turcos para que fossem para a rua bloquear
o golpe militar” (p.63). Passadas 24 horas, Erdogan tinha recuperado o poder,
mas 250 turcos tinham morrido. Seguiram-se as detenções de dezenas de milhares
de funcionários públicos, revogados os passaportes de 50 mil pessoas, 4 mil
juízes e procuradores foram demitidos e mais de 100 media foram encerrados
(p.63).
Quando chega ao poder (sendo que
Erdogan é PM, pela primeira vez, em 2003; mais tarde, a presidência será
revestida de mais fortes poderes constitucionais e a esse cargo se abalançará o
governante), e com vista ao cumprimento dos critérios
de Copenhaga para adesão à UE (“se a UE quer ser um clube cristão que o
diga agora”, 2004), Erdogan - nascido, em 1954, numa zona pobre de Istambul, filho
de um capitão de ferry boat, tendo
aderido, na adolescência, ao Partido de
Salvação Nacional, foi trabalhador fabril e futebolista semi-profissional,
chegando à Presidência da Câmara de Istambul em 1994, mais devoto (muçulmano)
do que anteriores líderes turcos ainda que sem questionar a herança (secular)
de Ataturk -, adopta uma legislação que reforça os poderes das minorias, a
independência do poder judicial, a abolição da pena de morte. Ouve,
pacientemente, as perguntas dos jornalistas, é carismático. Os liberais aplaudem o facto de Erdogan ter
acabado com a proibição do uso do véu pelas mulheres que estudavam nas
universidades (dado que tal representaria estímulo da liberdade e dos direitos
daquelas), mas os islamitas também,
pois descortinaram aí um avanço na devoção religiosa (nas mesmas – e no país).
Hoje, todas as mulheres de políticos de topo do AKP [partido de Erdogan] usam véu.
Se, já em 2007, durante uma primeira
conspiração para derrubar Erdogan (que venceu três eleições sucessivas) haviam
sido detidas altas patentes militares turcas, na sequência do golpe de estado
falhado de 2016 uma das figuras mais relevantes a ser detida foi Selahattin
Demirtas, político e elemento fundamental da oposição. Em 2015, o seu partido
tivera votos suficientes para negar a maioria absoluta ao AKP pela primeira vez desde 2002. Acusado de apoiar o terrorismo,
teve pena de até 142 anos de prisão; se a comunidade jurídica internacional não
ficou convencida com as provas, o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem mandou libertar imediatamente Demirtas. O
regime turco ignorou (tal ordem) e
Erdogan seguiu na senda da política dos homens-fortes:
encarcerar adversários políticos. Erdogan tornou-se o líder turco com mais anos
de poder (com 5500 dias no cargo de PM ou PR). Em 2020, num gesto do maior
simbolismo quanto ao minar das fundações do estado secular de Ataturk,
reconverteu Hagia Sophia numa
mesquita: “este foi o maior sonho da nossa juventude, e foi agora realizado”
(p.66). A catedral, construída pelo Imperador Justiniano em 536, tornou-se uma
mesquita depois da queda de Constantinopla, em 1453. Com Ataturk, passou a ser
um museu. Erdogan, verdadeiro sultão otomano a viver num palácio presidencial
com 1000 divisões, dizia em 2020, já com 17 anos no poder, que aquele era o
desejo de todos os muçulmanos no mundo (ele que se via como guardião de - mais
do que um país - uma cultura).
9.Ao chegar ao poder em 2012, Xi
Jinping, prometendo diminuir a pobreza, previu um crescimento económico de 7%
ao ano – pela contínua urbanização do país. Nunca usaria o seu poder para
ameaçar o mundo. Acreditou-se, inclusive, que lançaria um Parlamento eleito pelo
povo. Mas cedo se veio a observar uma profunda admiração e seguimento de Mao
Tsé-Tung. Em Março de 2018, a China aboliria os limites do mandato da
Presidência (que haviam sido introduzidos por Deng Xiaoping em 1982) e não
apenas turmas do ensino primário eram convocadas para escutar discursos do novo
«grande timoneiro» durante mais de 3 horas, como os diretores de faculdades
eram convocados a assistir e tirar selfies para ilustrar como (e onde) o
estavam a fazer (os que não compareceram foram chamados a dar explicações da
sua ausência). Uma app é criada e
incentivada a ser utilizada com “O pensamento de Xi Jinping” (a dever ser
estudado) e em diferentes cidades “pensamentos” de Xi povoam os cartazes no
horizonte (em Xangai, o «grande líder» surge com raios de luz a saírem da
cabeça). O culto de personalidade é, então, como se vê, erigido a níveis
exorbitantes: “vivemos, cada vez mais, num estado totalitário” (refere um
académico chinês, citado por Gideon Rachman, p.76).
Xi é um filho da elite política do
país. O pai, alçado a chefe de propaganda do Partido Comunista, viria a ser
vice-primeiro ministro, em 1962. Xi Zhongxun, vendo-se envolvido em uma querela
doutrinária obscura, tornou-se, durante 15 anos, «não pessoa», entre a prisão e
o trabalho operário fabril. Xi, ao pior estilo da Revolução Cultural, teve que
denunciar o pai e veria a sua irmã suicidar-se. Com o progenitor caído em
desgraça, Xi foi obrigado a abandonar os estudos e partir para trabalhos
agrícolas e de construção civil. Só após década e meia, recuperada a figura
paterna pelo regime, pôde então cursar na “Oxford” chinesa. Posteriormente,
casar-se-ia com uma cantora famosa, colocaria a sua filha numa escola de língua
francesa na China e esta candidatar-se-ia, sob anonimato, a Harvard, onde
acabaria por ingressar (aí realizando os seus estudos superiores).
O país herdado por Xi, eleito na
Assembleia Nacional Popular com 2952 votos a favor, um contra e três
abstenções, era mais de 50 vezes mais rico do que o de Deng Xiaoping. A
primeira medida que tomou ao aceder à Governação foi uma campanha implacável
anticorrupção, derrubando algumas das pessoas mais poderosas da China e um
impressionante número de membros relevantes do partido. 14% dos quadros de
topo, calcula-se, terão, neste contexto, sido detidos (“desde finais de 2012,
as autoridades investigaram mais de 2,7 milhões de funcionários e condenaram
mais de 1,5 milhões. Isto inclui os sete funcionários de topo (do Politburo e
do gabinete) e cerca de duas dezenas de generais de alta patente”, p.81). Em
2015, um colapso no mercado bolsista levou à detenção de indivíduos envolvidos
na regulação financeira.
Na China de Xi passam-se filmes nos
quais Gorbatchev é retratado como vilão e são esconjurados conceitos como
“valores universais”, “sociedade civil” ou “conceito ocidental de jornalismo”
(p.83). Se antes de Xi chegar ao poder, os intelectuais liberais eram parte
importante do debate político, foram, entretanto, silenciados.
A covid19, cujo primeiro caso surge, em
2020, em Wuhan, a 800 km de Xangai, é descrita pelo governo chinês como uma
catástrofe natural; nos primeiros dias da crise provocada pela pandemia, o
jovem médico dr. Li Wengliang, que contraiu a doença, fez soar o alarme num
grupo de discussão online, e logo é
visitado pela polícia que o obriga a prometer «parar de espalhar rumores» e a
assinar uma confissão; críticos da gestão da pandemia, como o membro do partido
e magnata do imobiliário Ren Zhiqhiang, levam longuíssimas condenações de
prisão, por motivos aparentemente outros (corrupção), mas a não mais do que a
delitos de opinião correspondem. Simultaneamente, o regime chinês começou a
espalhar a perspectiva de que a covid19 poderia não ter tido origem na China
(mas sim “simultaneamente em vários países do mundo”, p.87). A nível
internacional, porém, a imagem e credibilidade chinesas estão em cheque: os
estudos de opinião mostram uma grande desafeição das opiniões públicas pelo
tigre asiático (Alemanha, Coreia do Sul, Japão…). Não é apenas a covid19 a
evidenciar a brutalidade e repressão do regime: em 2019, em Hong Kong, o medo
de aprovação de uma lei que permitiria a extradição de cidadãos para a China
continental levou à existência de fortes protestos nas ruas. Mais de 2 milhões
de pessoas – numa população de 7,4 milhões – manifestaram-se ruidosamente. Tal,
durou meses. O regresso de Hong Kong, em 1997, à Administração chinesa era
visto por esta como um grande rejuvenescimento da nação. No Verão de 2020,
foram tomadas medidas legislativas (e envio de funcionários do partido para as
monitorizar) de modo a pôr cobro a esta situação e em poucos meses os
principais líderes do movimento democrático de Hong Kong foram detidos e
enfrentaram sentenças de longos anos de cadeia. A repressão dos muçulmanos
iugures (mais de 1 milhão, cerca de 10% da população uigur, colocados em
“campos de reeducação”) pela China, por outro lado, tornava ainda mais sombria
a governação de Xi. Os testemunhos de exilados e refugiados pintavam um retrato
aterrador. A acusação de «genocídio cultural» foi validada por advogados dos
direitos humanos (p.92).
Por fim, e nos anos mais recentes, e
ainda com a bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, as fantasias
relativas à conquista de Taiwan, que já aí estavam, foram alimentadas mais
ainda nos círculos nacionalistas do país.
Pedro Miranda
(no reparo do dia, da universidadefm, e aqui em versão integral)
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