DO ESTADO DA CIVILIZAÇÃO

 

Do estado da civilização

1.Quando a Primeira Guerra Mundial se conclui, com o seu cortejo de milhões de mortos e feridos – “não se trata apenas do facto de, num período de quatro anos, mais de nove milhões de homens terem sido enviados para o fogo da frente, conferindo a nova nota à mortalidade. O que é decisivo é o número de caídos e de vítimas civis parecer resultar das tensões internas do próprio acontecer cultural” (Peter Sloterdijk, “Depois de Deus”, Relógio d'Água, 2021, p.10) -, Paul Valéry constata (em A crise do espírito, 1919) que também as altas culturas (e não apenas os indivíduos), as civilizações – integradas pela linguagem, pelo direito e pela divisão do trabalho – são mortais.
Ora, em uma época, como aquela que atravessamos, em que a barbárie de uma guerra de agressão está, de novo, instalada, desde há dois anos, na Europa (ceifando centenas de milhares de vidas); quando o Médio Oriente explode de ódio (fazendo colapsar inteiras cidades, onde nada, nem ninguém, fica de pé), enquanto Tigray, na Etiópia, em cerca de 700 dias de conflito, gerou 600 mil mortos entre os civis (o mais mortífero conflito do século XXI, como vem sublinhando Bernardo Pires de Lima), impõe-se-nos – seja do estrito ponto de vista ocidental, seja em um olhar global para/com outras “civilizações” regressarmos a perguntas fundamentais que ressoam, e de que maneira, em nossos dias: “o que são as nações de cultura e o que significam as civilizações se permitem tais excessos de vítimas e de autossacrifícios, se, não só os permitem, mas os provocam devido aos seus impulsos mais específicos? O que denuncia este consumo maciço de vidas sobre o espírito da época industrial? O que significa esta nova falta de consideração sem precedentes pela existência individual? Na palavra «mortalidade», aplicada às civilizações, ressoa daí em diante a alusão a opções suicidas (…) Uma cultura que se tinha manifestado e desmascarado no seu impulso para a guerra mundial” (Sloterdijk, 2021, pp.10 e 63 – no fundo, e em suma também, em que acreditam, que convicções têm, pelo que são permeados aqueles que integram e compõem estas civilizações, afinal?).
 
2.A economia, ou a cultura? A cultura espoletada pela economia (e, portanto, esta última como mola propulsora ou ignição). Na procura da genealogia do incessante crescimento de movimentos, partidos, governações, personalidades políticas, espalhadas pelo mundo (da Polónia à Índia, das Filipinas ao Brasil, da Hungria aos EUA, da Turquia ao Reino Unido, da Rússia à Arábia Saudita, da China ao México ou à Etiópia…vide A era do homem-forte, Gideon Rachman, 2022), marcados por uma fúria de tipo populista – a visão política (e de sociedade) assente na divisão formulada entre um povo puro e uma elite corrupta -, bem como do recuo das democracias liberais Martin Wolf (em A crise do capitalismo democrático, Deusto, 2023), entre causas de natureza económica e origens de índole cultural para explicar o que vivemos, politicamente, há mais de uma década, responderá pela mobilização de atitudes culturais  - de desprezo pelo estrangeiro, de racismo, de recusa do liberalismo político [nomeadamente, no que este contém de restrições e regras de respeito por minorias étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras e, em algumas regiões do globo] -, em função do declínio económico (é a economia!, insiste), marcado por políticas de austeridade que se revelaram muito nefastas, em especial para muitos sectores das populações europeias (ao longo da nossa história recente, convocando-se, aqui, igualmente, o sucedido há um século): “um notável estudo do impacto político da quebra de 1931 do Danatbank, então o segundo maior banco da Alemanha, apoia firmemente a interacção das dificuldades económicas com as predisposições culturais na geração do extremismo político de direita. Os autores concluem que «os votos nazis aumentaram mais nos lugares afectados pela quebra [do Danatbank]. A radicalização como resposta ao impacto [da quebra] exacerbou-se nas cidades com uma história de anti-semitismo. Depois da tomada do poder por parte dos nazis, tanto os progrom como as deportações foram mais frequentes nos lugares mais afectados pela crise bancária. Os nossos resultados sugerem uma importante sinergia entre as dificuldades financeiras e as predisposições culturais, com consequências de longo alcance» (…) Um [outro] estudo mostra que nos Estados Unidos as recessões económicas pioram os preconceitos raciais (…) De maneira similar, um estudo do Reino Unido argumenta que «a austeridade criou o Brexit». A austeridade fiscal posterior à crise [surgida, em 2007, nos EUA, com a queda do Lehman Brothers] centrou-se nas zonas mais desfavorecidas do Reino Unido, que também são as mais dependentes do dinheiro público. O gasto público total em prestações e protecção social reduziu-se em torno dos 16% nos distritos mais afectados, que eram também os mais pobres. As estimativas sugerem que, se não fosse a austeridade, o referendo popular teria dado como resultado uma vitória do Remain [Permanecer na União Europeia] (…) A Suécia é outro exemplo fascinante (…) «a rápida ascensão dos Democratas da Suécia produziu-se depois dos acontecimentos que pioraram a situação económica relativa de amplos segmentos da população. Em 2006, uma coligação de partidos de centro-direita tomou o poder e aplicou um programa de reformas de grande alcance de cortes orçamentais e austeridade da segurança social com o objectivo de ‘fazer com que trabalhar seja rentável’. Em apenas seis anos, estas reformas provocaram grandes mudanças na desigualdade [nomeadamente, entre os insiders no mercado de trabalho e os outsiders naquele, sendo, também, que muitos viram no centrar, à esquerda, nos primeiros e esquecimento dos segundos um dos motivos pelos quais o voto, entre os suecos, foi, crescentemente, para uma direita mas radical] (…). Baseando-se em provas de maneira correcta, Martin Sandbu, do Finantial Times, concluiu: “o que realmente ocorreu na Suécia e noutros países é que os sentimentos anti-imigração e anti-liberais viram-se arrastados ao serviço político pelo aumento da insegurança económica. Ainda que tais atitudes existissem no passado, de forma mais ou menos latente, é a mudança económica o que as converteu em forças políticas” (pp.143-148).
 
3.Não deixa de impressionar ao olhar de um observador que procure encontrar-se minimamente atento ao mundo com o qual se depara o modo como, em diversos países, as populações subscrevem programas políticos que beneficiam (economicamente) uma ínfima minoria no seu interior (e prejudicam, simultaneamente, a esmagadora maioria daquela, ao nível dos recursos disponíveis) – “ao fim e ao cabo, como pode um partido político dedicado aos interesses materiais do 0,1% com mais renda [no caso mais extremo, mas não exclusivo, o dos EUA] ganhar e manter o poder numa democracia de sufrágio universal?” (p.241). A explicação de Martin Wolf reside, em parte, na estratégia de elites políticas que buscam colocar toda a ênfase na identidade racial, no nacionalismo, nas guerras culturais (armas, direitos de género, etc), alcançando, em boa medida, o efeito de, na diversidade de ligações que compõem uma identidade pessoal (nacionalidade, localidade, profissão, familia, amigos, interesses culturais, clube, cidadania, religião, etc.) negar o que nela existe de uma dada condição económica (se a pessoa se encontra entre a classe média, média-alta, média-baixa, em especial, se pertence a um contexto económico-social pobre) e de quanto esta (última) importa na composição de uma democracia em que os bens económicos – alvos de apreciação social e, por isso, relevantes – sejam equitativamente repartidos e não, como, atualmente, em múltiplas latitudes, concentrados em (muito) poucos. O Nobel da Economia Joseph Stiglitz contara, já, em “O preço da desigualdade” (Bertrand, 2013), um curioso episódio – desde então, várias vezes repetido em ensaios políticos – de umas primárias republicanas nos anos 80. Perante a arguição de que uma grande baixa de impostos geraria um enorme crescimento económico, e que essa era a sua grande aposta política, por parte de Ronald Reagan, o seu oponente (naquela disputa interna dos Republicanos), George Bush diria que se tratava, tal perspectiva, de “economia vudu”. Bush, que viria a ser vice de Reagan (numa administração que teria um enorme défice orçamental, como mais tarde sucederia após as reformas fiscais, no mesmo sentido - político e de afectação dos diferentes sectores sociais e visando favorecer os mesmos -, de George W. Bush e Donald Trump), acertaria em cheio: “em vez disso, o crescimento abrandou, as receitas fiscais caíram e os trabalhadores sofreram (...) A sordidez de tudo isto será disfarçada pela estafada afirmação de que menores taxas de imposto fomentarão o crescimento. Não existe base teórica ou empírica que confirme isto, especialmente em países como os EUA” (José Stiglitz, “As reduções fiscais para ricos não resolvem nada”, Economia, Imobiliário e Emprego, Expresso nº2336, p.39). Agora, o Editor-Chefe de um jornal (tão claramente pró-business) como o Finantial Times, Professor Visitante em Oxford e Nottingham, prémio Ischia de Jornalismo Internacional em 2012, Martin Wolf, em “A crise do capitalismo democrático”, reforça o ponto, recordando que o período em que o crescimento económico foi maior nas economias de renda alta coincidiu com a aplicação das taxas de imposto mais elevadas que conhecemos até hoje e, bem assim, desacreditando, uma vez mais, a ideia do gotejamento, de uma economia trickle-down, em suma, a perspectiva de que enriquecer adicionalmente os já mais favorecidos irá trazer grande prosperidade à demais população: “A economia da oferta demonstrou ser um excelente slogan político. Não obstante, em realidade, não existe tal relação entre a taxa marginal de imposto e a taxa de crescimento económico. Não é de estranhar. Ao fim e ao cabo, as taxas marginais de imposto eram muito mais elevadas nas décadas de 1950 e 1960, que foram também as décadas de maior crescimento para as democracias de renda alta. E, tão pouco, os cortes fiscais da era Reagan desencadearam uma forte aceleração do crescimento económico. Estas ideias simplistas do “gotejo” são bons argumentos políticos, mas questionáveis do ponto de vista económico. Os cortes nos impostos para as empresas por parte de Trump coincidiram com esta ideia. [Estas, porém] Não conduziram a um aumento significativo do investimento privado real não residencial. Reduzir a taxa do imposto sobre as sociedades é, sobretudo, dinheiro caído do céu para os accionistas (…) [nota de rodapé 434]: “não há dúvida de que quase todo o mundo beneficiou das enormes melhorias nos conhecimentos económicos e da produtividade dos últimos dois séculos. (…) No entanto, é muito diferente sustentar que as manipulações do sistema fiscal destinadas a beneficiar os mais ricos e prósperos beneficiam todos”, pp.241-242).
 
4.Martin Wolf, que rejeita, politicamente, a visão dos que referem que o objectivo que, enquanto sociedade, deveríamos prosseguir devia ser o decrescimento económico, não acredita num homem (novo) ecológico que mude radicalmente o seu modo de agir, e que, assim, se soma aos (autores) que pensam que a alternativa tecnológica tem que ser equacionada na mitigação do aquecimento global ao mesmo tempo que olha para os estudos, de repercussão financeira, realizados para o Reino Unido e EUA e considera que a percentagem do PIB necessária para pagar a existência de um Rendimento Básico Incondicional (com um valor minimamente razoável por pessoa) o inviabiliza, aduz, ainda, que um dos problemas, à esquerda, é, quanto ao “mercado de trabalho” – e como se veio de sublinhar - cuidar dos insiders, mas não tanto dos outsiders (procurar assegurar as reivindicações dos que se encontram no interior do sistema de forma menos precarizada, mas não tanto os que vão trabalhando sem conseguir vínculos laborais minimamente estáveis; ainda e que, como podemos analisar no detalhado quadro de alterações da legislação laboral, nas últimas três décadas, para o caso português, proporcionadas por/no trabalho do Prof. Rui Branco, “Protecção social no Portugal democrático” (FFMS, 2023) a solução não possa ser, sob pretexto de igualizar direitos, diminuir aos primeiros…para assim se aproximar da desprotecção dos segundos…pior emenda do que o soneto). No seio das guerras culturais (permanentemente atiçadas e em curso), também a propagação, sem uma contextualização e problematização bastantes, de chavões como, por exemplo, o do “privilégio masculino” surge, evidentemente, como ofensivo para homens, em contextos tradicionais, que se auto-compreendiam como tendo obrigação de providenciar o sustento da casa – ou, pelo menos, ser a principal fonte de sustento da mesma -, verem-se, em zonas desindustrializadas de diferentes países, revoltados por lhe atribuírem o “privilégio”…de se acharem desempregados e dependentes da ajuda da companheira para sobreviverem. O choque entre os valores de uma elite cultural de Weimar e o homem de rua na origem – assinala Wolf – de muitos males de há cerca de um século; hoje, entre os ‘progressistas’, muitos dos quais claramente empoderados e com credencialismo académico, o perder o pé, ou desestimar, não compreender muitas tradições, crenças, visão de mundo de uma parte substantiva do povo em que se inserem contar-se-ia entre os motivos de um mundo enterrado numa vozearia de surdos.
É, pois, um investigador que assim observa e interpreta a realidade em seu redor, e que constata que, evidentemente, o capitalismo não tem, em nossos dias, qualquer “alternativa credível” que sindica, depois, de que tipo de capitalismo estamos a falar como sendo o que predomina hoje (e nas últimas quatro décadas) e, outrossim, aquele que se apresenta como o desejável. E aqui Wolf rejeita – ele que quer reformar que não substituir, o sistema económico-social-cultural em que assentamos - o capitalismo rentista, em que os jogos estão feitos, o qual, na verdade, na sua feição laissez-faire se torna não democrático para a grande maioria da população: “Em última instância, a insegurança gerada pelo capitalismo laissez-faire para a grande maioria, que possui poucos bens e não pode ‘segurar-se’ [contratar seguros sucessivos] ou proteger-se contra desgraças tão evidentes como a perda inesperada de um emprego ou uma doença incapacitante é incompatível com a democracia. Isso é o que os países ocidentais aprenderam no começou e em meados do século XX. É o que voltaram a aprender nas últimas quatro décadas. Apenas a autocracia, a plutocracia ou uma combinação de ambas pode prosperar numa economia que gera tanta insegurança e um sistema político que mostra tanta indiferença” (p.263).
Louvando-se em Torben Iversen, de Harvard, e David Soskice, da London School of Economics, em “Democracia e prosperidade: reinventando o capitalismo num século turbulento”, para um capitalismo que não se aparte (definitivamente) da democracia (risco muito real este, argumenta), Martin Wolf identifica como elementos fundamentais a ter em conta: “os governos [estados] desempenham um papel central: têm que garantir que as empresas estejam sujeitas à competição; que a população esteja bem formada; que as infra-estruturas das quais depende a economia sejam de primeira ordem e que a investigação que impulsiona o avanço tecnológico conte com o financiamento adequado. De facto, não foi o mercado contra o Estado, como muitos creem, mas sim o mercado com o Estado. Ainda que em diferentes graus, nas economias prósperas isto é verdade em todo o lado” (p.263).  Propõe, pois, como objetivos reformistas a implementar nos tempos mais próximos: a) um nível de vida crescente, amplamente partilhado e sustentável; b) bons empregos para quem possa trabalhar e esteja disposto a fazê-lo; c) igualdade de oportunidades; d) segurança para quem dela necessita; e) fim dos privilégios especiais para uns poucos.

Pedro Miranda


P.S.: sigo aqui a edição, e referência às páginas, de "La crisis del capitalismo democrático", de Martin Wolf. Em baixo, a imagem dos destroços de Monte cassino, após a célebre batalha de 1944.



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