"A ZONA DE INTERESSE", DE JONHATAN GLAZER

 

A ZONA DE INTERESSE, DE JONATHAN GLAZER

O pai extremoso que conta histórias às crianças ao deitar – mas narrativas ancestrais germânicas, nas quais há bruxas a queimar, lugares quiméricos o dos arianos que se encontram prontos a lançar um fogo “purificador” ao “outro”, num contorno, portanto, ainda ambíguo [a pureza de embalar os meninos no ocaso do dia e os mitos de “fogo” nesse embalo; cultos pagãos que veremos perpetuarem-se durante os dias de Oswiecim] e que lança a fronteira paraíso/inferno omnipresente no filme (aqui, nessa construção sonho-defunto que justifica, para o casal, qualquer “sacrifício” [seu e, fundamentalmente, dos humanos aos quais colocam termo], de um lugar idílico colado a uma linha de montagem da morte de humanos, evidentemente, um paraíso absolutamente obsceno) -, o melómano que remete a concertos de música clássica a que assistiu recentemente (e o homem lido, deitado no sofá com o respectivo volume nas mãos, assim o encontramos por casa, que não desconheceria Kant, como diria Steiner), o burocrata que num salão de festas nazi, com centenas de participantes, só pensa na dificuldade que haveria em gaseificar aquela gente toda, se necessário fosse, dada a “altura do edifício” (e que se move sobre a patente do arco crematório a adquirir, utiliza, em permanência, a linguagem da eficácia – o pensamento que só calcula como ausência de pensamento - quando esta significa, em realidade, o abate do humano, para Rudolph Hoss (Christian Friedel), porém, nunca fim e sempre meio, o workholic que no “magnífico campo” [a língua traída e conspurcada] de Auschwitz exerceu soberanamente durante quatro anos – e que na disponibilização, à indústria, de trabalho escravo, mereceu telefonemas de elogio e conforto, por parte de “vários CEO”, junto dos hierarcas - e agora se sente distinguido porque há uma “Operação Hoss” à sua espera, os judeus húngaros a deportar, com zelo, para os diferentes campos de concentração e extermínio nazis, o arrivista que, dizem-lhe, irá reportar, diretamente, a Eichmann, constrói piscina, canteiros, horta familiar (a qual germinará, também, com recurso à cinza dos que acabaram de perecer), uma casa para a qual levará o que, paredes meias, roubará aos judeus (não é que encontrei, ontem, numa pasta de dentes um diamante? Os judeus são muito inteligentes, nota a mulher de Hoss, Hedwig [Sandra Huller], no seu gelo sem quebras, indignação e desespero quando ao marido é atribuída outra posição que não a de Auschwitz, indignação e desespero estes, evidenciados, claro, por oposição aos tranquilos e sinistros banhos de sol e mergulhos na piscina da vivenda com a morte ao lado, o casal amigo que ali foi passar férias e envia carta a agradecer, nunca umas férias foram tão agradáveis…, indignação e desespero recompostos logo depois, firmeza sucessiva, para a garantia de que mesmo existindo aquela notificação a Hoss ela e os filhos dali não sairão, nem nos melhores sonhos imaginavam tanto, e tal não se poderia perder de um dia para o outro, do pé para a mão…e quando de Berlim o marido liga, excitado com nova operação que o devolverá, aliás, a Auschwitz, de imediato o despacha com o sono…e com os jogos de prazer, infidelidade praticada por ambos os membros do casal, insinuados com uma contenção notável por Glazer, e que demonstram o cinismo e hipocrisia de qualquer ideia de “contaminação” da “pureza da raça”. O uso, puramente ideológico, sem convicção e puramente instrumental de mantras do Terceiro Reich, para proveito exclusivamente egotista, exacerbado, no seu ridículo extremo, quando Hedwig afirma que a vivenda em Auschwitz faz parte do seu “espaço vital”, estamos a cumprir rigorosamente o que o führer mandou…outro dos topos a que o filme se atém).
Jonathan Glazer não precisa de, nem quer, mostrar, e nunca mostra, o lager, mas os gritos, ininterruptos, de horror, de uma banda, a par das palavras de ordem e humilhação, por outra (o som dos tiros e dos cães compõe, igualmente, a doentia música de fundo), os edifícios que sabemos de cor, as nuvens que dissiparam o humano e consumiram Wiesel, o cheiro horrível (a carne humana queimada) que fica subentendido, toda uma paisagem de desolação subsumida, ali estão, testemunhando o estertor da estupidez a quem o mal não gera mais do que o assentimento de colaboração, o grau de denegação, e a alienação voluntária (as crianças, com soldados de chumbo, brincando, grotescamente, com quem está nos campos como vítima inocente, imitando, para lá dos seus muros e janelas, antevendo, num arrepiante mexer do cortinado, o trágico para o qual o seu pai trabalha, compreendem, elas mesmas [quanto mais os adultos!], o mal extremo, mas, ainda, como que cenarizam, naquele brincar e na fala ao boneco insistindo, como se fosse possível, na autoilusão, no deitar sortes com dados, o grau de cegueira consciente de toda a família)  e, raramente tão bem mostrado, o vómito que os lugares clássicos que Martin Amis revisitou e que o realizador tão bem traduziu visualmente (o branco que assoma na inocência dos assassinados em contraponto ao vermelho sangue de flores do mal, cores que, em momentos diversos, nos atingem enchendo a tela) produzem. O (literal) vómito final em Hoss, a bebida em excesso na sua sogra, e até a carta que a mãe deixou a Hedwig e que esta atira à fornalha, são a reivindicação de um latido último que, mesmo pretendido silenciar a todo o custo, atravessa as entranhas: sabiam e, por isso, talvez nem sempre dormissem.

Pedro Miranda




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