O "CADERNO AFEGÃO", DE ALEXANDRA LUCAS COELHO

 

O caderno afegão, de Alexandra Lucas Coelho

 

Numa época em que nos enredamos em um torvelinho de notícias sucessivamente substituídas pela novidade seguinte (que logo abandonamos, também), convite a fixarmo-nos, com redobrada atenção, na realidade do Afeganistão – que, ainda há semanas, debatíamos de forma apaixonada, mas da qual, como quase tudo o mais, rapidamente parecemos cansados - que lá nos confins do mundo tem marcado a vida política internacional das últimas décadas.  Fazê-lo com recurso ao “Caderno afegão” (agora reeditado, pela Caminho), de Alexandra Lucas Coelho é aceitar entrar em um fascinante e complexo universo de signos contraditórios, tradições que desafiam qualquer quadro simplista, adentrarmo-nos no conhecimento aturado de uma história multisecular, abeirarmo-nos de uma paisagem física e humana de cortar a respiração. Tudo narrado por um olhar afiado, de lâmina – para utilizar os termos da autora - de uma extraordinária jornalista/escritora que nos dá a conhecer o absolutamente singular que sussurra mesmo no ambiente mais sufocante. Um livro extraordinário, uma viagem de um mês, em 2008, pelos mais variados recantos afegãos, em uma reportagem pública que nos oferece um amplo horizonte interpretativo de um Afeganistão tantas vezes mal conhecido, no qual a aventura/risco pessoal (da narradora) se deixa perceber, de igual modo, com grande mestria.
 
1.O primeiro enviado ocidental à corte de Cabul foi o escocês Mountstuart Elphinston que, em 1808, aos 29 anos, elaboraria um verdadeiro guia (“An Account of the Kingdom of Caubul”, publicado em 1815) sobre a paisagem afegã, fosse este centrado na botânica - «flores inglesas, como rosas, jasmins, papoilas, narcisos, jacintos, nardos, goivos, etc, são encontradas nos jardins e muitas delas selvagens» -, na zoologia – «o único sítio onde ouvi falar em leões foi nas colinas em redor de Cabul, e eram pequenos e fracos, comparados com o leão africano», enquanto os tigres «podem ser encontrados na maior parte das zonas arborizadas», e «lobos, hienas, chacais, raposas e lebres são comuns por todo o lado -, ou, sobretudo, na história, política e antropologia: «entre os afegãos orientais [pashtun], a expiação de um assassinato é feita dando 12 jovens mulheres, seis com dote e seis sem. O dote de cada é 60 rupias (7,10 libras), parcialmente em bens. Por cortar uma mão, uma orelha ou um nariz, dão seis mulheres; por partir um dente, três mulheres; por uma ferida acima da testa, uma mulher; uma ferida abaixo da testa (a não ser que leve um ano a curar) ou outra qualquer ofensa é expiada por desculpas e submissão». A idade comum para casar é de 20 anos para os homens e 15 ou 16 para as mulheres: «os homens incapazes de pagar o preço de uma mulher frequentemente ficam solteiros até aos 40 e por vezes há mulheres solteiras até aos 25. Por outro lado, os ricos às vezes casam antes da puberdade; as pessoas na cidade também casam cedo, e os afegãos orientais casam rapazes de 15 com raparigas de 12, e até mais novas, se podem pagar a despesa». As mulheres do campo «andam descobertas» e as da cidade «estão sempre embrulhadas num largo lençol branco, que as cobre até aos pés, e esconde completamente a silhueta», ou seja, a burqa. As «das classes altas aprendem frequentemente a ler, e algumas revelam consideráveis talentos para a literatura».
Elphinston conclui, não sem surpresa nossa, que a condição das afegãs «está longe de ser infeliz, comparada com a das mulheres dos países vizinhos» e, aliás, não viu nenhum país no Oriente, a não ser no Afeganistão, onde «exista amor como o entendemos». É habitual, por exemplo, «um homem ir procurar fortuna à Índia para comprar uma determinada rapariga». Sobre os homens afegãos, o autor notará “o espírito industrioso e empreendedor, a hospitalidade, a sobriedade e o desprezo pelo prazer que transparece em todos os seus hábitos; e acima de tudo a independência e energia do seu carácter». Por seu turno, os vícios dos afegãos [assim, mesmo, virtudes e defeitos tomados como um todo; generalizando-se, pois] seriam: “vingança, inveja, avareza, ganância e obstinação; por outro lado, gostam de liberdade, são fiéis aos amigos, generosos para quem depende deles, hospitaleiros, corajosos, duros, frugais, laboriosos e prudentes e prontos a defender o seu áspero país contra um tirano”. Citando um ancião afegão: “damo-nos bem com a discórdia, damo-nos bem com alertas, damo-nos bem com sangue. Mas nunca nos daremos bem com um dono” (pp.177-180 de “O caderno afegão” que cita o original de Elphinston).
Um pouco mais de um século depois, em 1933, seria a vez de Robert Byron escrever a partir de Herat: “de vez em quando um capuz de apicultor com uma janela no cimo atravessa a cena. Isto é uma mulher” [observa Alexandra Lucas Coelho: “ainda não encontrei descrição melhor para uma burqa. Um capuz de apicultor até aos pés”]. Nos anos 70, podia haver afegãs de minissaia em Cabul, “mas não era assim antes, nem era assim no resto do Afeganistão” (p.244). Jolyon Leslie, por sua vez, em The Mirage of Peace (2004), sopesa o impacto da globalização na cultura afegã: TV, pornografia, música pop, numa nação que assenta na família e se ancorava na rádio para saber do mundo exterior.
O livro mais antigo, contudo, com memórias correspondentes à geografia da actual Cabul foi escrito, em persa, há 800 anos, ainda hoje guardado por Shah Mohammed, dono da livraria mais célebre da capital afegã, a Shah M Books, que conta com 17 mil títulos sobre o Afeganistão, aberta em/desde 1970 (mantendo-se sem fechar inclusive no tempo dos taliban; apenas um breve interregno quando Shah foi preso, durante um ano, em 1979, pelo regime comunista, por ter folhetos dos mujahedin, numa altura em que não havia julgamentos: “eram uns radicais, mais do que os taliban, até”, p.272). O livreiro acusa o regime comunista, no poder a partir de 1977, de ter assassinado cinco mil intelectuais e de ter esvaziado a intelligentsia da cidade. No tempo dos taliban, as imagens de seres vivos estavam banidas, mesmo a fotografia de uma borboleta. Conquanto o livreiro não se tivesse desfeito daquelas, certo dia os taliban fizeram uma grande pilha de tudo o que tinha imagens – livros, revistas, jornais, postais - e queimaram tudo (p.275).
A evolução das vendas de livros pode, de resto, ajudar a contar a história das últimas cinco décadas afegãs: “de 1974 a 1984, importei três mil livros de Shakespeare em persa e vendi-os todos. De 84 a 94, importei sete mil livros de Shakespeare e vendi-os todos. E de 94 a 2002, vendi só 165 livros de Shakespeare. Havia guerra civil e depois vieram os taliban. De 2002 até agora [2008], vendi mais de 12 mil cópias” (p.272). O livreiro de Cabul que, por certo, guardará com especial enlevo “Baburnama” (a primeira auto-biografia da literatura islâmica), observa que no tempo do rei Zahir Shah [dos anos 1930 aos anos 1970], o Afeganistão era visto como um país moderno, em especial a sua capital, com “uma universidade moderna, com professores da Alemanha, dos Estados Unidos, de França que treinavam os afegãos intelectuais. As mulheres vestiam-se como hoje na Europa, tinham minissaias e não cobriam o cabelo. O número de mulheres na universidade era pouco menos que 30 por cento. Tínhamos mais de 30 por cento de escolas de raparigas na cidade. E estavam tão cheias como as dos homens” (p.273). Quando Alexandre, o Grande, no século IV a.C., andou pelas bandas afegãs conta-se que Balkh [cidade do Afeganistão da Província de Bactro] era Bactra, urbe que teria sido fundada por Noé, centro da religião zoroastra e de um conjunto de práticas que horrorizavam: “de acordo com a sua religião, os báctrios atiravam literalmente os mortos aos cães e até apressavam o processo, deixando os cães executarem os velhos, doentes e inválidos (…) Ninguém intervinha. Na verdade, os cães eram mantidos para este propósito” (conta o académico Frank Holt). Aliás, “tamanho era o horror, de acordo com as fontes históricas, que o exército grego – grande matador sempre que lhe conveio – ficou chocado. Mas, para os báctrios, chocante era queimar os mortos, como Alexandre fizera ao pai” (p.318).
 
2.Num certo sentido, o Afeganistão, auto-estrada da droga na Ásia Central, é, mesmo, “o fim do mundo”: mães que andaram anos com o útero de fora, bebés com espinha bífida, coisas que só se conhecem dos livros. Mortalidade materna? Entre os piores índices mundiais. Em 2008, em Kandahar, por cada 100 mil partos, morriam 2 mil mulheres; em Portugal, nas mesmas circunstâncias, faleciam 5. A esperança média de vida de uma mulher no Afeganistão era, então, de 42 anos. Neste país, onde apenas 14% das mulheres são letradas, 81% dos partos realizam-se em casa e sem acompanhante (p.226). Cada mulher perde, em média, no seu tempo de vida, 2 filhos (sendo que a taxa de fertilidade ultrapassa os sete filhos por mulher). A taxa de mortalidade infantil igualmente entre as maiores do mundo (em 2007, 135 crianças por cada mil). Uma das causas de morte, o tétano – evitável com uma vacina. Há muitos casamentos entre parentes, as mulheres são mães de modo muito precoce, não raro há um segundo filho aos 14 anos. Quando um casal não pode/não consegue ter filhos, se o problema é da mulher, então o marido casa com outra. Se o problema é dele, continuam com o tratamento e, se tiverem dinheiro, vão à Índia (e a mulher não se pode separar do marido invocando esta causalidade). Se uma mulher só tem filhas, o marido pode casar outra vez para ter filhos (p.231). Quatro filhos, “é o mínimo admissível” a uma mulher que, em se mudando para casa do marido, terá a sogra como tutora (“estes quartos estão cheios de avós-sogras a decidirem coisas”, p.229). Nas zonas rurais, por antonomásia, o que o marido diz tem que ser feito.
Quando uma mulher anda na rua, os homens falam (dela), mas esta não responde, porque tal (resposta) seria considerado próprio de uma mulher não decente. Em pleno hospital, muitas mulheres nem para uma injecção no braço querem um homem (profissional de saúde) e, mesmo em frente a uma mulher, recusam tirar as calças para uma injecção. Há quem prefira deixar uma mulher morrer a levá-la ao médico. Muitas mulheres não dão de mamar em público. Em Kandahar, ninguém sabe a (sua) idade – nasce-se em casa, sem registos. A maioria dos homens fuma haxixe e a heroína está a tornar-se um grande problema.
Quase todas as mulheres desta localidade, aos 7 anos, sabem bordar – condição necessária para casarem. De resto, antes do casamento as mães do noivo vão ver como as futuras noras bordam e limpam a casa, para determinar se ficam aprovadas (a casar com seus filhos). Aos 10-11 anos, começa-se a usar a burqa, sendo que quem decide deste uso são o pai, o marido, os irmãos – mas é a mãe que a coloca na filha. Se uma rapariga aos 20 anos não está casada, só os viúvos a querem (p.243). Grande parte dos afegãos usa túnica e calças largas, turbante ou barrete, sempre em cores neutras, cremes, cinzas, castanhos. A rua, o espaço público é dos homens (p.246). Em 2008, Habiba Sarabi, 50 anos, é a única governadora em todo o país. Em Bamyan, que ela governa, as pessoas vivem do gado e agricultura - trigo, batata, maçãs e damascos; a sua comunidade, debate-se com falta de médicos e professores, sendo que metade das escolas construídas em anos recentes foram financiadas pela comunidade internacional. A maioria das mulheres professoras vêem do Irão e do Paquistão (p.341).
Em Bamyan, todas as casas são de terra batida e, como não há electricidade, as bebidas mantêm-se frescas dentro de poças de água. Por ali é difícil encontrar comida saudável, o arroz é feito com óleo e é inseguro comer saladas (pp.345-346). Ser pobre no Afeganistão também é comer fast-food desde a nascença.
Todos os dias, alguém pisa uma mina no Afeganistão; são milhões de minas por todo o país. Rapazes de 12-14 anos vão, por exemplo, buscar lenha e, com frequência, pisam uma mina (pp.133-134). 80% dos amputados do país são, pois, vítimas de minas.
 
3.A jornalista reparara que os guarda-costas do Ministro da Cultura e Assuntos da Juventude, barbudos com as suas AK47 e cintos de munições, andam de mãos dadas a rapazes imberbes (p.89). Em realidade, a repórter descobrirá que nas madrassas, miúdos são violados por mullah. Sofrendo semelhante violência, são quebrados e humilhados, passam a ser vistos como “maricas”, crescem “cheios de raiva e vingança”, “são bons voluntários para bombistas suicidas”. Mais, “isto está por toda a parte, “entre os ex-mujahedin, no governo, nos departamentos. Um comandante tem os seus rapazes bonitos. É muito comum (…). Vestem os rapazes de meninas. Pintam-lhes os lábios.” (p.191). Uma cultura que parece perpetuar a antiguidade clássica: “nada que a antiguidade clássica não tenha conhecido. Gregos e romanos não perdiam virilidade por sodomizarem efebos. A desonra, a fraqueza, o socialmente inaceitável seria serem sodomizados. A divisão do mundo era entre activos e passivos, e os verdadeiros homens eram sempre activos”.
Eis a complexidade de um código, de uma cultura: “nesta sociedade tribal, a verdade não é um valor relevante. Pode mesmo ser um sintoma de fraqueza, e a fraqueza é uma desonra para um pashtun (…). Tudo neste mundo desafia a capacidade relativizadora da antropologia pós-pós-colonialista. É um mundo activamente tribal, em que os dóceis, os diferentes, os homossexuais e as mulheres pagam um alto preço para continuarem vivos, e muitas vezes morrem. E é este o mesmo código que honra os mais velhos, que não teme o sofrimento, que protege os pobres e doentes, que faz da hospitalidade um santuário e une o clã em todos por um” (pp.192-193). Um código no qual a tradição prevalece mesmo sobre a religião: confunde-se com ela (p.263).
 
4.No Afeganistão, há, contudo, espaço, pese toda a gente – familiares, amigos – interferir nas decisões sobre a prole, para o milagre de uma educação/vida alternativa: “tentamos experimentar a educação livre nesta família. É muito difícil, mas tem resultados maravilhosos” (p.300), diz o pai de Zubaida, jornalista e escritor sem estudos superiores, mas incentivador de uma educação da descendente que passou pela Leysin American School, na Suíça, aos 15 anos, enquanto se descobriam duas bolsas para as primas que viviam lá em casa irem estudar na Califórnia, e a filha mais nova encaminhar-se para Massachusetts. Shaharzad, a irmã mais nova, que viria a ser repórter da BBC, foi para o Smiths College, uma faculdade de artes, muito liberal: “era a Alice no País das Maravilhas, entrar num país de que não sabemos nada, e não sabemos o que é esperado de nós. Eu li muita literatura ocidental, porque o meu pai me encorajou sempre, e sempre trabalhei com estrangeiros, mas viver lá é diferente. Ir a uma escola onde, sei lá, 40 por cento das estudantes são gays, é muito diferente. (…). Mudei, claro! E este ano mudei mais. Tenho ideias que contradizem as do meu pai, as da minha mãe. Mas ainda assim eles apoiam. Deixaram-me mudar, ser quem sou. Estou-lhes profundamente grata.” (pp.293-294). Nos EUA, ela era a “mulher muçulmana”: “a minha família não é religiosa. O meu pai sabe muito, está muito interessado no sufismo, mas não praticamos muito. Apenas jejuamos no Ramadão. (…) O que aprendi sobre a minha religião foi com os meus pais. A poesia no Islão. A grande tradição da Filosofia. E de repente é muito chocante a forma como me vêem [não muitos anos pós-11 de Setembro permaneciam imagens, entre uma parte da população dos EUA, dos muçulmanos, tomados aprioristicamente de forma unívoca, como extremistas religiosos, no limite potenciais terroristas] (…). Chorei muito. Tentei ler tudo o que era crítico do Islão. Mas atacar o Islão não ajuda. Os muçulmanos dispostos a viver pacificamente são muitos mais. O que podemos fazer é iluminar os períodos de coexistência na história. Há poetas, pensadores islâmicos que põem a ênfase no novo. Temos a nossa tradição de novidade, abertura, tolerância” (p.294).
Shaharzad teve, já, 10 candidatos a casamento – até porque “os rapazes com uma boa educação estão desesperados para encontrar raparigas com uma boa educação” -, mas não pretende entregar-se a uma relação em que lhe caiba assegurar todos os sacrifícios: “os rapazes educados dirão coisas bonitas sobre o feminismo, mas não serão capazes de tomar conta dos filhos ou da casa. Em frente dos amigos é inaceitável fazerem trabalho de casa, e os amigos estão lá metade do tempo” (p.299). Farzana, “bela como uma pintura flamenga”, conta que chegou a cursar medicina, “mas quando casei o meu marido não me deixou continuar” (p.52).
Muitos comentários negativos incidem sobre esta família, mas, mesmo de zonas remotas do Afeganistão, têm-lhes enviado filhas para estudarem em Cabul.
 
5.Cabul, 2008. Nem uma mulher de cabeça destapada, onde em 1972 havia meninas de minissaia (agora, mesmo com burqa, ir à escola, para elas, será um privilégio). Casas de terra batida, um cão que se ouve muito ao longe nesta espécie de aldeia gigante, hotéis em ruínas e hotéis caros, ausência de iluminação noturna, prostituição chinesa. Há guest houses, casas adaptadas a hóspedes, acima de 100 euros e por metade desse preço. Uma estrangeira não anda sozinha na rua, as afegãs não andam sozinhas na rua. Qualquer viagem de táxi em Cabul, cidade na qual os semáforos não funcionam, muito próxima ou distante, custa 5 dólares. Na capital afegã, a 1797 metros de altitude, neva no Inverno. Nos anos 70, Cabul tinha 750 mil habitantes, no final da primeira década dos anos 2000, cerca de 3 milhões. Na Cidade Velha de Cabul, a maioria da população não tem casa de banho com chuveiro e autoclismo e em 20% das casas não há água. Pelas ruas, passa um homem com um carrinho de gelados e um rebanho de cabras (p.100).
No Afeganistão, onde uma viagem de 150 km dura cinco horas por estrada má (p.171), os pashtun estão no poder há apenas 3 séculos, os persas têm milhares de anos de história. Os afegãos, que raramente fumam (p.162), não gostam de desiludir. Dizem que sim, mesmo quando não compreendem: “é indelicado dizer que não, talvez tão indelicado como assoar o nariz ou mostrar a planta dos pés” (p.25). No pátio do Parlamento de Cabul, ouve-se pashto, dari, uzbeque – uma Babel. Por esta altura [em que Alexandra Lucas Coelho escreve a partir do Afeganistão], em que existem quotas, há 91 mulheres entre 249 deputados eleitos. Repórteres femininas de rádio estão em maioria (p.31).
O pai da deputada Fauzia casou 7 vezes, teve 4 mulheres em simultâneo (“ele era um grande político, portanto precisava de uma mulher em Cabul, outra em Faizabad, outra em Kuf e outra em Khawhan”, sublinha a filha), e teve 15 filhos. Fauzia tem 14 irmãos do mesmo pai (mas de mães diferentes). Uma história afegã (p.33). No Afeganistão, “tem de se ter dinheiro ou uma base social para se ser político. Não acredito em tribos, mas quando não há uma família grande é muito difícil” (pp.33-34). Não há um partido liderado por uma mulher. Fauzia diz que se o Islão não for usado de acordo com os direitos humanos, nunca vingará. E que há mulheres que foram para o Irão e Paquistão e acabaram no mundo da prostituição, para além de existirem tráfico de crianças e de mulheres, com abusos sexuais e tráfico de órgãos. Entre o assomo taliban e a guerra, houve muita gente que perdeu uma década de escola. Por vezes, os rótulos são o melhor modo de esconder outras realidades: “quando dizem que mataram 16 taliban, mataram dois agricultores, três mulheres, cinco crianças…” (p.40). À entrada da Roshan Tower, há mulheres de burqa a pedir. Nas franjas, ou seja, entre as periferias humanas no Afeganistão, as mulheres estão no fim: “pai, marido, irmãos e sogra decidem por elas” (p.66). Fátima Gailani, que estudou Direito Corânico, mulher de um ministro, considera que só há solução (ou soluções, em termos políticos, de reconhecimento do feminino) dentro do Islão: “se questionava o facto de as mulheres só terem direito a metade da herança que os homens recebem. O meu ponto de vista é: vamos assegurar que ficam com metade, porque hoje não ficam com nada. E como defendo isto? Dizendo: abram o Corão e vejam (…). Peço-lhe que abra o Corão e leia que a educação é para mulheres e homens” (pp.66-67).
O Afeganistão teve uma rainha, Gowar Shad, tão poderosa que ainda hoje os homens falam dela com veneração – “os homens de um país de homens” (p.97).
Os afegãos e as afegãs são, além do mais, (fisicamente) “o mais belo povo do mundo” (p.28), “pessoas gentilíssimas” (p.46) – “aqui não podes dizer às pessoas que nos estão a fazer perder tempo (p.105) - e de “orgulho muito resistente” (p.76) que têm uma inultrapassável dedicação às flores: “nunca vi tão forte dedicação às flores. Parece estar acima de tudo e a tudo ser imune. No meio do trânsito mais tóxico há rotundas com rosas lindas em Cabul” (p.82). Nunca se viu tanta papoila – cuja cabeça tem sementes que são doces e as crianças comem (p.147).
Pedaços de tecido colorido agarrados a ramos de árvores povoam a paisagem: tratam-se de pedidos de crentes (o equivalente islâmico a deixar uma vela). Outra forma de fé é deixar bolinhas de lama em cima de túmulos (p.110). Diversamente, os afegãos, para quem a barba é sinónimo de retidão e sabedoria, repudiam pêlos: os noivos são, aliás, depilados antes do casamento, “por vezes com métodos rudimentares e dolorosos” (p.55). Naquelas bandas, come-se com colher e garfo, sendo raras as facas. O pão é mesa, prato e talher: além de ser comido, come-se em cima dele – é tão grande que se dobra e mete debaixo do braço (p.138). Povo descrito pelos ocidentais, alguns dos quais portugueses, que para ali viajaram em anos recentes como “bravo” e “corajoso”, com forte “instinto de sobrevivência” (pp.153-154) – “nunca encontrei um povo tão invulneravelmente elegante” (p.168), notará Alexandra Lucas Coelho -, possui, na sua matriz histórico-cultural, elementos como este: “cabia aos poderosos, por tradição e interesse, construir uma rede para assistir os necessitados, o comércio e a comunicação” (p.85). E de Cabul a Bombaím é uma tradição a noiva mostrar-se triste por respeito à família que vai deixar (p.283). Senhores da droga compram noivas por 100 mil dólares. Pagam à mesquita da aldeia. As pessoas calam-se. Um professor ou um funcionário que trabalhe para o procurador tem um salário de 60 dólares mensais. Com estes salários, a intelligentsia e a burguesia parecem ter desaparecido e, com elas, a cultura refinada (“se uma mulher estudou e foi para o estrangeiro é uma mulher fácil”, p.288).
Por sua vez, à semelhança de outros povos orientais, os afegãos não tratam os cães como animais domésticos, não lhes têm amor (p.71); mais, “o cão é um animal impuro nesta parte do mundo” (p.88).  
Mãos e gargantas cortadas, corpos pendurados de cabeça para baixo, as execuções públicas, agora a esconder, “foram o futebol dos taliban” (p.60). Os afegãos queixam-se de políticos que não ligam às pessoas: ausência, naquele território, de níveis básicos de electricidade, comida, abrigo, segurança - diz-se que os polícias são corruptos, mas destaque-se que ganham 60 dólares/mês, muitas vezes com 10/12 pessoas para sustentar, p.119 -, estradas. À excepção dos casamentos, a música é proibida no sufismo (a música leva à dança, a dança leva à prostituição, p.265).
 
6.Já em 2008, Alexandra Lucas Coelho registava, no seu caderno afegão, que existia um “ressentimento crescente dos afegãos” perante as forças internacionais de segurança (ISAF), sendo estas um “fiasco de relações públicas” (p.23). E havia, à época, quem observasse a existência de um “neocolonialismo” praticado pelos que “lá fora” não eram ninguém e no Afeganistão pretendem que haja quem lhes trate de tudo: “os estrangeiros que não saem dos bunkers, que não vêem nada, em 4x4 com vidros escuros, com medo” (p.24). Tareq, um afegão empreendedor que viveu na América e regressou quando os taliban tinham caído nos primeiros anos do novo século, premonitório: “honra e orgulho é tudo o que temos. Estas tropas estrangeiras põem-nos a bota na cara, quebram-nos, mas os afegãos nunca vão perder.” (p.42). E Rameen, outro afegão de Cabul, considera não só que os afegãos não gostam de estrangeiros como “os comunistas faziam os afegãos acreditar em alguma coisa, os americanos não os fazem acreditar em nada. (…) Não se preocupam realmente com o Afeganistão e as pessoas sentem isso. É a diferença entre um súbdito e um cidadão (…). Os losers internacionais é que estão aqui. Incompetentes filhos de ministro estão no governo e os americanos estão-se nas tintas (…). Todo o dinheiro é gasto sem contas (…). Talvez dez por cento do dinheiro da ajuda seja bem aplicado. Para chegares onde estás tens de ter matado ou subornado” (p.47).
Quando passa uma patrulha americana, tudo pára e encosta. Os kandaharis param e encostam, mas não gostam. Sentem-se humilhados (p.255). O governo não conseguiu conquistar as pessoas. Os norte-americanos são, com efeito, acusados de prenderem sem provas e de não respeitarem a tradição local, muito menos conhecerem a sua história. As pessoas sentem-se fartas do governo, a corrupção campeia, a ausência de emprego pesa sobre os afegãos (p.264). Karzai, o então Presidente afegão, é muito impopular (p.276), os taliban, que vão tomando algumas localidades por esta época, pelo menos, diz-se à boca cheia, são afegãos.
 
7.Um homem chora pela destruição dos budas de Bamyan – uma espécie de Romeu e Julieta com 1500 anos – pelos taliban. Nos anos 60, Nancy Hatch escrevera que as duas estátuas eram «dos mais notáveis feitos do homem» e «as mais espectaculares imagens de budas alguma vez concebidas».
Viajando no interior do Afeganistão em aviõezinhos que parecem de papel e lhe causam suores frios, Alexandra Lucas Coelho, que nesta expedição estivera com Malala, ativista, vítima de atentado por defender o direito de as meninas irem à escola, e mais jovem premiada com um Nobel da Paz – a quando da redacção de O caderno afegão, Malala é voluntária, lida com trabalho infantil, casamentos forçados, raparigas a queixarem-se da família, e quer que as pessoas do seu país saiam da escuridão e ignorância; recusa-se, terminantemente (“nem que me matem”) a usar burqa e afirma pretender casar e depois estudar Economia ou Medicina [Malala casou-se, entretanto, há duas semanas, no Reino Unido, onde reside actualmente] -, tal como com o tenente Varandas [hoje Presidente do Sporting Clube de Portugal] que com outros militares portugueses estavam em missão no Afeganistão, pode ter que suportar 60/65 graus ao sol, mas, ao mesmo tempo, contempla uma paisagem que descreve com deleite: “e quando subimos a encosta vemos três lagos mais belos que os lagos mais belos, entre montanhas dramáticas, de um turquesa impossível. São três da tarde, a luz está oblíqua, leve e transparente. Só apetece descer por ali abaixo e mergulhar” (p.349). E, rasgando o horizonte, visando o alto, “o céu como seria o céu antes dos homens” (p.335). Sem embargo, na palavra sempre vertida com afinco no papel, e ainda que com o uso da primeira pessoa ajudando à narrativa, há um espaço sem rede, uma pequena página do mais íntimo frémito que, partilhado, espelha a solenidade e risco, por vezes o sentimento de descontrolo que se abeira do melhor e mais experimentado dos que se dedicam ao ofício de reportar: “não sei o que está a acontecer. Não sei em quem confiar. Ninguém diz quem é nem o que faz. O que estou aqui a fazer?” [Alexandra Lucas Coelho] (p.215).
Ainda que, pulsações controladas, o balanço se faça cantando Caetano: “A raça humana é/ uma semana/ do trabalho de Deus” (p.368).

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

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