PROTECÇÃO SOCIAL E ESTRATÉGIA DE CRESCIMENTO. JOSEPH STIGLITZ E MARY KALDOR

 

Protecção social e estratégia de crescimento. Joseph Stiglitz e Mary Kaldor

Quando já se discutem políticas para o futuro do país, e na semana em que um relatório da SEDES incentivou a adoção de um modelo de flexissegurança no emprego em Portugal, um olhar para o modo como foi implementado nos países nórdicos e a procura da combinação óptima entre liberdade e igualdade, a partir de “Em busca de segurança” (Bertrand, 2015), de Joseph Stiglitz e Mary Kaldor

1.Pensada, demasiadas vezes, pelo exclusivo prisma de um socorro de última instância, ou, mesmo, em chave assistencialista, a questão da protecção social pode e deve ser concebida, também e muito, pela lente de uma estratégia económica de crescimento. O exemplo dado, a este respeito, pelos países nórdicos é muito animador.

2.Em realidade, a extensa rede de segurança pensada pelos países escandinavos tem/teve um efeito extraordinário no sucesso da abertura à globalização por parte destes (sendo um dos factores relevantes, nas consequências positivas advindas da existência da referida malha de protecção, o apoio político à abertura dos mercados, por banda de uma grande parte da população; atente-se que, segundo o Pew Institute, entre aqueles que têm uma visão mais negativa do fenómeno da globalização estão EUA e Egipto e, no extremo oposto, encontram-se Suécia e China). Isto quer dizer, sobretudo, que se a pessoa sabe que não cairá em situação de desamparo, estará mais disponível para arriscar e inovar. Neste sentido, a vocação nórdica para ser o exemplo shumpeteriano da ‘destruição criativa’ – novas empresas, melhor apetrechadas, mais produtivas fazem com que as que ficaram obsoletas sejam desmanteladas (p.99) – é muito curioso, porque exprime uma combinação quase única entre o mais extenso e generoso Estado Social com a maior abertura á mais avançada fase do sistema capitalista. A ideia de que impostos elevados, Estado Social generoso e, por outro lado, grande dinâmica económica eram termos incompatíveis é, assim, colocada em cheque pelo modelo escandinavo (por exemplo, “se tivermos um seguro generoso e eficiente contra o desemprego, não precisamos de garantir ou resgatar os bancos. Não precisamos de recorrer ao método britânico de segurar os créditos hipotecários porque, se as pessoas desempregadas puderem manter os seus rendimentos, podem continuar a amortizar a sua dívida para com os seus bancos, para que estes não vão à falência” (p.131), escreve Leif Pagrotsky (membro do Partido Social-Democrata sueco no Parlamento daquele país e vice-presidente do Banco Central da Suécia. Foi ministro da Indústria e do Comércio. Foi também ministro da Educação, Investigação e Cultura. Trabalhou na OCDE e no Banco Europeu de Investimento, foi ainda chefe de gabinete do Primeiro-Ministro). Por outro lado, se as receitas de impostos são aplicadas em algo de produtivo, ou que irá gerar essa produtividade, como múltiplas formas de educação e verdadeira requalificação, então pode, deste modo, obstar-se a efeitos negativos que o aumento de impostos possam acarretar. Raramente se coloca o foco nesta dimensão do “como” e “onde” potenciar estas receitas).

3.Um dos traços desta estratégia escandinava, descrita detalhadamente pelo Professor Karl Moene (docente na Universidade de Oslo, prémio de excelência em comunicação em ciência em 2011, com vasta obra publicada sobre o modelo escandinavo, colunista em jornais de referência), na obra coordenada por Joseph Stiglitz e Mary Kaldor, intitulada Em busca de segurança (Bertrand, 2015), resultante da Conferência, na Universidade de Columbia, em 2008 (com revisões das intervenções, para actualizar o necessário), da responsabilidade da London School of Economics (Um manifesto para um novo pacto global: protecção sem proteccionismo) passa por uma grande compressão salarial – coordenação centralizada entre empregadores e sindicatos que puxa pelos salários mais baixos e não permite que os mais elevados subam em demasia, sempre buscando responder ao desafio de salário igual para trabalho igual, algo que, em outras formas mais descentralizadas de negociação parece, em muitas ocasiões, ficar em causa -, forte poder dos sindicatos, salários retirados da concorrência do mercado, níveis de igualdade e coesão social únicos. Isto gera, por sua vez, um grande apoio a políticas sociais, e, a um nível mais chão e radical, as pessoas vêem-se como iguais. Os trabalhadores são incentivados a participar nas decisões das empresas, a autonomia é um dos pilares do modelo, as hierarquias são bem menores daquelas existentes em países em que a brecha salarial é muito elevada. Um outro resultado muito assinalável: Noruega e Suécia tiveram os níveis mais reduzidos de conflitos laborais no período do pós-Guerra (p.96).

4.Se as especificidades regionais, locais, culturais, institucionais não são despiciendas – alto nível de escolaridade da população adulta, aparelho de Estado eficiente e honesto, empregadores com grande grau de organização (p.119) -, contudo, vale a pena notar que no período entre guerras os bloqueios dos sindicatos e os conflitos laborais na Escandinávia eram os mais elevados nos países desenvolvidos. O Estado Social (mais desenvolvido no pós-II Guerra Mundial) não foi, apenas, um instrumento passivo construído por uma dada ecologia (cultural/institucional) que lhe foi favorável; ele mesmo, foi gerador de uma ambiência propícia à paz social, á iniciativa, ao empreendedorismo, ao investimento, à criatividade, à inovação, à dinâmica empresarial, à composição dos vários interesses em presença, a uma coesão e sentido de igualdade que acaba por ser determinante por eu ver no outro um meu semelhante com preocupações e fragilidades como as minhas (algo que o Tocqueville, de Da Democracia na América, tinha já percebido, e assim é citado, a par e passo, por Moene).

5.Se não é possível um transplantar, sem mais, soluções de um dado país ou região, para outros, todavia devemos colher nos bons exemplos. Podemos, em realidade, olhar para os discursos mais apelativos nos extremos do espectro político a nível europeu e perceber que os receios e medos, relativamente à integração dos mercados, a que dão voz fazem sentido (aliás, no dizer de George Soros, globalização significa “globalização dos mercados financeiros”, o qual é um “projecto fundamentalista de mercado”, p.135). Sobretudo, porque, como desmonta Joseph Stiglitz, ao mesmo tempo que os governantes dizem que a globalização é uma grande oportunidade, referem que há uma inevitabilidade em cortar impostos para as maiores empresas, por consequência perder receita (para o Estado), diminuir a protecção social, flexibilizar e piorar as condições dos trabalhadores. Na verdade, a globalização – que deve ser regulada no sentido preconizado, por exemplo, por Dani Rodrik, das normas de trabalho às ambientais; neste sentido, podemos dizer que o entusiasmo nórdico deve ser temperado com as reformas/regulação assinaladas por aquele autor -, aumentou muito o crescimento económico global, mas gerou grandes desigualdades no interior das sociedades. Fez muito, e bem, por várias populações menos desenvolvidas, de vários quadrantes do globo. Se, com o medo, voltássemos (ou voltamos) a modelos protecionistas teríamos, por exemplo, um subsídio ao algodão, pelo governo americano, a prejudicar agricultores africanos, mesmo violando as regras da Organização Mundial do Comércio (o exemplo, retirado dos factos verificados, é de Stiglitz). Uma forte protecção social, que restaure a confiança e permita às pessoas sentirem-se seguras, pode ser um modo adequado de superarmos esta equação de uma globalização que não seja percebida apenas como uma ameaça (como, muito naturalmente, tem sido vista em muitos lados). Mais uma vez, o modelo escandinavo parece combinar, de forma óptima (ou tão óptima quanto possível, com resistências internas, mas muito menores do que em outras geografias; sem, em lado algum, evidentemente, se lobrigar um paraíso terrestre), igualdade e liberdade. Protecção social sem protecionismo (“a minha conclusão (…) é que, sem protecção, teremos proteccionismo”, p.133, Leif Pagrotsky).

A esta obra coordenada pelo Nobel (da Economia de 2001) Joseph Stiglitz, e ao elogio à flexissegurança, outros Nobel, agora os de 2019, Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo ajudar-nos-iam a fazer, contudo, uma derradeira observação (a partir de “Boa economia para tempos difíceis” (Actual, 2020): no Ocidente, a grande maioria das pessoas associa o sentido na vida a um dado trabalho, a uma dada actividade (salvar vidas, proporcionar maior qualidade de vida a outrem, transmitir/facilitar a aquisição do conhecimento acumulado, em uma dada área, às gerações seguintes, etc.) e isso é tanto mais verdade - de acordo com o resultado de estudos e inquéritos a trabalhadores, neste contexto - nos sectores da Saúde ou Educação (não tanto, por exemplo, na hotelaria; aí, mostram-nos os dados das respostas dos trabalhadores desse sector, não existe uma correlação tão forte entre o sentido na vida e o exercício de uma dada atividade). Ora, o modelo de flexissegurança, mesmo que necessário, não resolve o problema do "propósito": nos países em que há um chão (prestação social robusta) para não se cair abaixo de dado patamar, económico-social, quando as competências e conhecimentos do cidadão-trabalhador ficam “obsoletas” (passa por situação de desemprego), ainda aí o problema do “sentido”, a que é preciso prestar atenção suplementar, permanece.

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

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