OUSAR A ESPERANÇA

 
Ousar a Esperança
 
1.Susan Neiman entende por progressoa ideia de que as pessoas podem trabalhar em conjunto para melhorar significativamente as condições reais das suas vidas e das dos outros” (p.109). Esta concepção afasta-se tanto da perspectiva de que este, o progresso, se enlaça num trilho (humano) em linha recta e é inevitável (e “muitas passagens de Hegel fazem [de facto] essa afirmação, e a História não a confirmou exatamente”, p.110), como não o interpreta em chave de um acquis a que, chegados, enquanto sociedade estejamos livres de o ver desmoronar-se; quer dizer, o retrocesso é, efectivamente, possível (p.111; lembremos as noções difundidas, até Fevereiro de 2022, de imersão em um estádio de superação [ou, nas suas formas mais suaves, “implausibilidade”] da “guerra”, na história recente da humanidade (em particular, na Europa), como um adquirido - por contraponto). Quando Neiman se refere a “progresso” não se encontra a aludir, bem entendido, ao “progresso tecnológico, ou aquilo a que Hannah Arendt chamou «o processo implacável de mais e mais, de maior e maior»” (p.109). Ela centra-se, diversamente, em uma dimensão “moral” e “política”.
Ora, se neste espaço de cidadania expressei, ao longo dos anos, precisamente, a adesão a um entendimento (discernimento intelectual complementado por percepção emocional, p.129) de que se o progresso científico-tecnológico será, grosso modo, irreversível, tal não poderá dizer-se, nos mesmos termos, ao nível político (maxime, a recessão democrática em curso, há cerca de uma década, em termos internacionais, ou o recrudescimento da extrema-direita) ou moral (a legalização da tortura durante os mandatos George W. Bush, nos EUA, por exemplo), contudo, esta versão do “progresso”, enquanto “possibilidade de” [trabalho em conjunto pela melhoria significativa das condições de vida das populações], bem mais complexa e menos dogmática e naïve (do que asserções como a crença na linha recta da história rumo “à reciprocidade universal” ou o “progresso” como “conjunto de adquiridos” [civilizacionais] que “não voltam atrás”) se me afigura e, ademais, no que nela vai de inscrição em uma visão de - ainda que com indiscutíveis condicionantes e condicionamentos - humana liberdade e não absoluto determinismo biológico ou biológico-cultural (e, bem assim, da certeza da nossa inacessibilidade a qualquer humano “estado natureza” originário) uma noção fundamentalmente menos negadora de tais elementos (reivindicação, pois, de algum grau de liberdade e de não total determinismo, quer na possibilidade de progresso, quer na de retrocesso, pois que, no que a este último diz respeito, liberdade é, também, liberdade para o mal e a culpa não vai, simplesmente, desaparecer do mundo) que a pura e simples negação daquela [em realidade, de qualquer] possibilidade (de melhoria significativa das condições reais de vida das populações através de um trabalho em conjunto) implica(ria).
Neste contexto, e sem prejuízo de continuar a subscrever a ideia de que a completa/absoluta sociedade justa não emergirá nesta exata dimensão terrena em que nos encontramos e na constatação da debilidade humana (no que nela há, ainda que não em exclusivo [empatia, desde logo, igualmente característica do humano], de inclinação ao mal e sujeição ao erro), a esperança – que é diferente do optimismo, e, sobretudo, de um optimismo que negue/negasse a evidência de um disseminado mal que perpassa esta hora: “o protofascismo está a surgir em todo o mundo”, p.147; “O optimismo é uma recusa de encarar os factos. A esperança pretende mudá-los. Quando o mundo está realmente em perigo, o optimismo é obsceno”, p.122) – é, justamente num tempo que observamos tão densamente povoado de obscuridades e obscurantismos, uma obrigação ética[1] – subscrevemos, aqui, a filósofa (mesmo que as fontes onde haurimos, primordialmente, essa esperança não sejam necessariamente as mesmas – para nós, ultima ratio, só uma fonte metapolítica, Transcendente, dará o fundamento bastante aquela…a desaguar, é certo, também, em um contributo na elaboração de uma muito relevante esperança política/social – com todos os que queiram participar nesse empreendimento comum, e sendo certo que nem o melhor constructo institucional dará vazão, no que no humano supera o materialismo, ao mais fundo do que aquele carece para poder edificar). Ademais, a dilucidação, em concreto, do quão “significativa” é a possibilidade de “melhoria” [das condições de vida das populações através de um trabalho conjunto] implicar-nos-á em um mister que deve furtar-se, ainda, a meu ver, e em simultâneo, à ratoeira de um insuflar tal de expectativas que redunde em uma insatisfação/frustração/ressentimento dos que, paradoxalmente, se procura empoderar, manifestações, aquelas, aliás, que quando (de)votadas a plataformas destrutivas da vida democrática a todos coloca em risco (desse modo de inserção e vivência na polis). Sem, aqui, se procurar, necessariamente, uma perspectiva ecuménica sobre o quantum de progresso (como horizonte de medida; e é certo que “o que pensamos ser possível determina o quadro em que agimos (…) por definição, o progresso não é o que temos actualmente”, pp.138-139) dir-se-ia que nem a recusa do rasgo e ousadia no compromisso com mudanças significativas, para melhor, na vida das pessoas, nem, também, uma promessa do ilimitado.
Sem embargo, a pura consideração de que nada há a fazer em função de um humano caído, repleto de recidivas e considerado a partir de postulados unilaterais (acerca do mesmo) incapazes de perscrutarem (nele) algo mais do que interesse próprio, maldade, auto-preservação, rejeitando a possibilidade e a existência do altruísmo – como se quem sustenta a sua presença real, aqui e agora, fosse, nas irónicas palavras de Neiman, um fundamentalista religioso que nega Darwin, p.101 – e de bem comum desaguaria na mais cínica das apropriações ou interpretações da vida política como mera e rasa luta de poder.
Susan Neiman, buscando desmascarar os desmascaradores, e notando como - com recurso ao Google Scholar, dados relativos ao ano de 2019 - nenhum investigador das Ciências Humanas e Sociais foi mais citado do que Foulcault escreve, em A esquerda não é woke (Presença, 2024), que a procura deste autor em desconstruir toda a acção como tendo o poder como força motriz (“ao lerem Foucault (…) os estudantes estão a absorver uma lição filosófica que é muito geral: o poder (…) é a força motriz de tudo”, p.77), as instituições como modo de dominação (por banda de um dado grupo social), numa palavra, a indistinção entre poder e justiça (o desmascarar das instituições liberais, em Carl Schmitt, em favor da ordem do III Reich; em Foucault, porventura, esse mesmo desmascarar em favor da subversão como forma de arte; subversão, todavia, que pode tomar qualquer direcção, incluindo, portanto, a regressiva e/ou não democrática) uma herança que não deixaria mais do que um terreno vazio e desolador (e, provando que várias pessoas, em particular dedicadas ao oficio da filosofia e do pensamento, em diferentes latitudes, em simultâneo, estarão a ponderar no mesmo, pelo menos insertos em um hemisfério ideológico com pontos de contacto, escreve Marina Garcés em “Novo Iluminismo Radical” (Orfeu Negro, 2023, p.14): “Que qualquer libertação termina em novas formas de dominação ainda mais terríveis e que qualquer saber mobiliza novas relações de poder é uma obviedade. Mas é também o argumento reaccionário com o qual se condenou qualquer tentativa radical de transformar o mundo e de impulsionar o desejo, pessoal e colectivo, de emancipação. Assim, chegámos a aceitar como um dogma a irreversibilidade da catástrofe”). Ora, reforça-se, “numa época em que as ameaças a esse mundo parecem esmagadoras, o pessimismo é sedutor, pois garante-nos que não há nada a fazer. Quando sabemos que é inútil, podemos parar de lutar. Para nos consolarmos, ou pelo menos para nos distrairmos, temos sempre a autoajuda ou o consumo de substâncias psicotrópicas” (p.122). Em realidade, “se não tivermos esperança, não podemos actuar com convicção e vigor. E se não conseguirmos agir, todas as piores previsões dos pessimistas tornar-se-ão realidade” (p.162). Esperança – uma exigência moral em nosso tempo. Daí, também, que a negação, em razão puramente imanente e fechada, do direito de cidade a reservas metapolíticas de esperança que preenche(ra)m os humanos, ao longo dos tempos, se revele um dano auto-infligido por esse mesmo humano, lá, em culturas onde esse cerramento se realiza sem adversativas.
 
2.O regresso aos autores canónicos (da história da Filosofia) quando se discute da bondade ou maldade – ou bondade e maldade, mesmo que não na mesma medida, presentes em cada pessoa – do humano pode ser tão inevitável quanto servir para desfazer equívocos ou simplificações. Assim, para Susan Neiman, autora de O mal no pensamento moderno (Gradiva, 2005), voltar a Rousseau é notar que “a sua visão é distorcida na afirmação de que, no estado natureza, os seres humanos eram naturalmente bons. Rousseau não disse tal coisa; argumentou, sim, que a Humanidade antes da civilização era moralmente neutra, possuindo duas características que partilha com a maioria dos animais: um instinto de piedade e um desejo de liberdade. Ambas as inclinações podem ser destruídas por um tipo errado de educação e estruturas sociais. No entanto, dadas as condições correctas, formam a base de um comportamento decente”. Aliás, o mais relevante do ensinamento de Rousseau, no entender de Neiman, assentou no registo (em 1756) de que não poderemos aceder à Pré-História e ao estado original, ao estado natureza do humano (aos estados mais antigos da Humanidade) e que, por consequência, aquilo que fazemos na referência a esse Homem natural, não é mais do que uma projecção das “nossas próprias visões do mundo” (p.93). Note-se que em “Palestras sobre a História da Filosofia Política” (Piaget, 2013), John Rawls, lendo o Capítulo 13 de “Leviatã”, sublinha a este propósito (mas tendo em vista autor que nasceria um pouco mais de um século antes de Rousseau): [neste capítulo] “Hobbes reconhece a possível objecção de que nunca houve estado de naturezaNunca existiu essa época, nem condição de guerra como esta”, assenta Hobbes)” (p.54).
Adiante, no seu ensaio A esquerda não é woke, convocando Claude Lévi-Strauss – “mesmo quando viajava para a Amazónia na esperança de encontrar tribos que se assemelhassem ao bom selvagem de Rousseau, Claude Lévi-Strauss, o antropólogo mais sofisticado que tentou testar as teses do filósofo, viu que os métodos empíricos não as decidiriam” (p.121) -, Susan Neiman corroborará: “nas questões relativas à natureza humana, somos irremediavelmente partidários. Todos os dados são filtrados pelos nossos próprios medos e esperanças” (p.121). Dir-se-ia mais: não seremos, apenas e necessariamente, partidários quando tendemos a uma perspectiva mais “antropologicamente optimista” ou, ao invés, (mais) “antropologicamente pessimista” (como primando no humano); essa qualificação, creio, também assentará na expectativa, no patamar, no padrão, na exigência de que partimos quanto ao que justificaria/justificará essa diferente avaliação (que cada um fará) do humano (sendo talvez paradoxal que à esquerda, aparentemente, se espere mais deste (do que à direita) – mais conseguimentos ou cometimentos políticos da parte deste – e, mesmo quando essa fasquia, elevada ao cume, não é atingida, ainda assim continue a perspectivá-lo, essencialmente, como “bom”).
E, todavia, “o debate sobre os pontos de vista filosóficos acerca da natureza humana tende a decorrer em termos mais apropriados a um jogo de futebol: Hobbes diz que somos maus, Rousseau diz que somos bons; Hobbes pensa que estamos sempre sob ameaça de guerra sem um soberano absoluto, Rousseau pensa que estaríamos em paz se a civilização não interferisse. Ambos os filósofos eram consideravelmente mais complexos, mas aqueles que não os leram resumem o debate: Hobbes era um realista, Rousseau um utópico” (p.93). Sem prejuízo do que, assim, sustenta, é a própria pensadora que assinala que “a visão de Rousseau do estado natural do ser humano faz com que a guerra pareça perversa; a de Hobbes fá-la parecer normal” (p.121), pelo que, e de modo mais imediato quanto a inspirações para o que está em jogo em nosso tempo político, “se quisermos estabelecer uma ditadura, a nossa melhor hipótese é convencer os nossos companheiros de que a Humanidade é bruta por natureza e precisa de um líder forte que a impeça de se desfazer em pedaços. Se quiser estabelecer uma social-democracia, vai ampliar todos os exemplos de cooperação natural que conseguir encontrar” (p.121).
A noção de que a Humanidade é bruta por natureza, a ideia de que esta, no “estado natureza”, viveria numa “guerra de todos contra todos” implica, necessariamente, a conclusão de uma ditadura como arranjo/solução/plataforma política (inevitável)?
De acordo com John Rawls, o estado de natureza (hobbesiano) não é apenas a referência (ficcionada) ao nosso estado original, ao estado mais antigo da humanidade, ao humano selvagem; na interpretação que faz do escrito de Hobbes, “o Estado de Natureza é uma possibilidade sempre presente de degeneração e guerra civil” (“Palestras…”, pp.54-55). Ora, para evitar, precisamente, a degeneração e guerra civil, a social-democracia e a democracia-cristã ergueram, sobretudo durante o século XX (pós-II Guerra Mundial, em especial), os Estados Sociais, os Estados-Providência - “a memória da guerra desempenhava um papel importante, os Estados-providência (…) do século XX construíram-se não como guarda avançada da revolução igualitária, mas para proporcionar uma barreira contra o regresso do passado: contra a depressão económica e o seu resultado político polarizador e violento na política desesperada, tanto do fascismo como do comunismo. Os Estados-providência eram, portanto, Estados profilácticos. Foram concebidos de forma muito consciente para responder ao anseio generalizado de segurança e estabilidade” (Tony Judt, O Século XX esquecido - lugares e memórias, Edições 70, Lisboa, 2009, p.21).
Assim, talvez não seja completamente destituída de fundamento a arguição de que para se evitar a degeneração, a guerra civil, a guerra de todos contra todos, a queda no estado natureza – precisamente, dadas as consequências da ausência de uma rede de protecção e segurança – necessário será não uma ditadura, mas a manutenção de políticas, e uma visão que a sustente, que historicamente foram social-democratas (ou democrata-cristãs).
Em todo o caso, provavelmente, ousemos enquanto hipótese académica para reponderar no que foi sendo politicamente proposto no campo político vindo de mencionar, supomos em diálogo com os constructos propostos na última década e meia, dada a sua preferência por melhorias que não sejam de recorte limitado, Neiman não subscreveria, como suficiente, hoje por hoje, uma “social-democracia do medo” (Judt) – enquanto plataforma elaborada a quando do momento mais duro da Grande Recessão (anos 2008 e seguintes) -, porque a “conservação” dos Estados Providência (o medo de os perder) não gerou – seja, porventura, pela descrença de cidadãos em os manter com a robustez necessária [cidadãos que, portanto, não lutam, já, por aqueles, dando-os, exasperadamente, por “perdidos” no essencial], seja por entenderem que o que está não é o suficiente e (não é) o possível [a pura manutenção não irá permitir que o meu filho viva de um ponto de vista económico-social melhor do que eu] – a esperança capaz de, em múltiplos países, assegurar a forças social-democratas ou democratas-cristãs a liderança política no governo dos seus Estados. Ou, ainda, porque a mera conservação [a social-democracia, para Judt, como a “banalidade do bem”, sem exaltações fervorosas de novas grandes metas de avanços a cumprir], enquanto impossibilidade de o conceber em chave de progresso, leva outros tantos a reacções de medo e a querer fechá-lo para uso exclusivo dos “nativos”.
Note-se, neste contexto, em todo o caso, fechando aqui por impossibilidade do contrafactual, que o ensaio de Neiman visa, apenas e nesta hora não será pouco, demonstrar a possibilidade de progresso, mas sem, ao mesmo tempo, concretizar o que considera serem - sem desenhar um programa concreto quanto a - significativas melhorias nas condições de vida das populações (nem o modo, plataforma política, grupos sociais [coligação de] em que se ancoraria).
 
3.“Ela fê-lo porque estava certo fazê-lo» foi, em tempos, por si só, uma declaração explicativa – embora se essa fosse realmente a razão pela qual (ela) fez o que fez estivesse sempre aberta a dúvidas” (p.104). Tempos houve em que - com isto o pretende afirmar Susan Neiman - os motivos humanos eram concebidos como “mistos”, cuja complexidade entre o interesse próprio e o altruísmo, afirmação e concretização de um imperativo categórico e o para além disso eram tidos em conta. Agora, sustenta a filósofa, parecemos entregues a uma hegemonia de um imaginário – que se pretende ciência, mesmo sendo um imaginário pobre - que remete o humano, em exclusivo, à auto-preservação, interesse próprio, egoísmo, vontade de poder, dominação de grupo. Não apenas o imaginário é rudimentar, como, procura provar a ensaísta, é falso. Estando aí, porém, no espírito do tempo, é um factor muito relevante quanto à possibilidade de avanço (social).
Na genealogia da completa desconfiança sobre as possibilidades do humano progredir – de ir além do seu interesse, egoísmo, vontade de poder, etc. -, Susan Neiman regista o falhanço da sociobiologia enquanto disciplina que havia naturalizado a violência, as especulações hobbesianas a permearem a psicologia evolutivanem Hobbes nem Rousseau sabiam nada sobre a vida antes da civilização, sublinhará, igualmente, Steven Pinker (p.102) -, a adequação de uma visão segundo a qual “a biologia é o destino” (exclusivo) ao homo economicus demandado pelas doutrinas mais liberais na economia e que se impuseram entre nós. Por um lado, nota Mary Midgley, a afirmação de um “egoísmo universal é incoerente”: “se a consideração pelos outros fosse realmente impossível, não haveria nenhuma palavra para dizer que não a temos” (p.99). Por outro, se a ideia de que um comportamento cortês e amável numa aldeia é justificado (pelos que vêem apenas egoísmo no humano) como estratégia para a pessoa reclamar, no futuro, o seu quinhão de (alguma forma) de recompensa (por essas atitudes virem a ser recordadas, em um meio pequeno, no qual as pessoas se encontram assiduamente), que dizer da amabilidade como registo pessoal em Londres? O comportamento que era adaptativo para as pequenas cidades foi transportado para as grandes: “qualquer problema na teoria pode ser explicado, dizendo que aquilo que já não serve os nossos interesses egoístas serviu outrora os nossos passados caçadores-recolectores)”. Neste domínio, “os psicólogos evolucionistas insinuam frequentemente que quaisquer objecções aos seus pontos de vista são objecções à própria ciência. Sugerem que os seus críticos, se não são criacionistas declarados, são sentimentalistas nostálgicos incapazes de aceitar a visão de Nietzsche de que valores morais como o altruísmo morreram juntamente com o seu criador” (p.101). Esta retórica varia, segundo Mary Midgley, “entre a reverência pelo poder (genético) e o desprezo pelos seres humanos que supõem que nenhum outro elemento da vida lhes diz respeito. É fortemente fatalista, isto é, não apenas resignado aos males que se provaram inevitáveis, mas, de um modo mais geral, desdenhoso de todo o esforço humano” (p.101), noções partilhadas pelo filósofo Kitcher que acrescenta: “quando se examina o tratamento sociobiológico pop do altruísmo humano, verifica-se que este se dissolve em especulações hobbesianas gratuitas que não têm qualquer base na biologia ou em qualquer outra ciência” (p.101).
Neiman não apenas aponta ao reducionismo desta visão de mundo – “embora os psicólogos evolucionistas contemporâneos evitem, geralmente, as afirmações mais dramaticamente reducionistas, os seus pontos de vista trabalham em conjunto para as insinuar. Nem mesmo o mais apaixonado teórico da evolução nega alguma diferença entre as nossas estratégias reprodutivas e as de um chimpanzé. O homem que compõe um soneto para a sua amada fez algo mais do que bater no peito e oferecer um pedaço de carne. No entanto, a discussão sugere que o valor adicional proporcionado pela atividade humana é superficial. O que realmente somos é o macaco que bate no peito; o que os sonetos e as sinfonias nos proporcionam é apenas uma embalagem” (pp.102-103). Tal ponto de vista, refere Susan Neiman, “tem sido questionado de forma persuasiva por vários primatologistas” e, neste âmbito, “o trabalho de Franz de Waal é o mais abrangente do ponto de vista filosófico”. Que, atente-se, após uma “investigação sobre uma variedade de macacos e símios levou-o a concluir que «somos seres morais até ao âmago»” (p.103) [assim restringindo o fatalismo/determinismo biológico e, desta sorte, colocando-nos em zona de escolhas, de opções] e que mesmo que se considere a cultura como “evolutivamente recente e que a maior parte do que é essencial à natureza humana é bestial, estamos muito melhor do que se supõe. As reacções emocionais ao sofrimento alheio, que partilhamos com o macaco, são elementos constitutivos das estruturas complexas da moralidade humana. De Waal e outros demonstraram que os primatas têm a capacidade mais básica para o desenvolvimento moral: a de nos colocarmos no lugar dos outros. O sentimento de solidariedade, a capacidade de gratidão e o sentido de justiça começam logo aí” (pp.103-104). Do ponto de vista coletivo – e mau grado profecias (sobre a inevitabilidade da queda, como, tal como acima assinalámos, a legalização da tortura, em pleno séc.XXI, numa democracia liberal, como os EUA) que se autorrealizam -, e pese o que falta fazer, a abolição da servidão feudal, os direitos das mulheres, a condição de homossexuais, a clara melhoria da situação de pessoas de pele negra (hoje, face apenas  há poucos decénios) foram, em muitos países, uma efectiva realidade: “negar a realidade do progresso é negar a realidade” (p.139). Sim, é possível, exorta a ensaísta.
[um autor como Peter Singer, assume, louvando-se em Steven Pinker [Os anjos bons da nossa natureza, Relógio d’Água, 2016], a existência destas melhorias (de um modo geral), mas partindo, todavia, de um pressuposto, que faz radicar em Ghandi, de que um progresso moral civilizacional deriveraria – não do tratamento e cuidado com os últimos de entre os humanos, dos detidos, dos mais velhos, dos pobres, dos marginalizados enquanto prioridade que na mundividência em que me inscrevo devia ser assumida – da maneira como tratamos os animais não humanos, e atendendo, em especial, à forma como estes se encontram encarcerados pelo mundo, hoje, simultaneamente à primeira das afirmações quanto ao que adquirimos civilizacionalmente, estaríamos, sensivelmente, ao nível do tempo da antiga Roma…[cf. Ética no Mundo Real, Edições 70, 2024, pp.33 e ss. e pp.109 e ss.]
 
4.Situados em diferentes mundividências, autores como Anne Applebaum, Susan Neiman, Marina Garcés ou Martin Ford afirmarão algo que este último sintetizou da seguinte forma: “à falta de confiança numa revolução progressista, chegou a política da nostalgia reaccionária” (Martin Ford, A crise do capitalismo democrático, Deusto, p.150). Mutatis mutandis, o que, na esteira da Professora de Literatura Eslava e Comparada da Universidade de Harvard, Svetlana Boy, Zygmunt Bauman havia cunhado como Retrotopia: “[passar] de depositar as esperanças gerais de melhoria num futuro incerto e manifestamente pouco fiável, [as pessoas] passaram a depositá-lo num passado de vagas recordações, valorizado pela sua presumida estabilidade e (portanto) também pela sua presumida fiabilidade” (Retrotopia, Paidós, 2018, p.12). Seria (será) este o mundo que, em grande medida, habitamos: o anseio pelo ideal não se perderia, no coração humano, depois de More, mas – e no entender de Neiman depois do fracasso utópico consumado em 1991 – ele virar-se-ia para o passado: “tudo o que havia antes era melhor” (Marina Garcés, p.11). O falhanço das promessas de uma completa felicidade terrena e, mesmo, na sequência da Grande Recessão (anos 2008 e seguintes), (uma política de austeridade que contribuiu para o) ceifar de futuros e o reforço da insegurança económica e social das pessoas e, em particular, as expectativas de pais que, desde então, temeram ou viram concretizados os receios de os filhos não virem a ter uma abundância de recursos (económicos) maior – porventura, em casos não raros, será menor – do que a sua, a precarização da vida suspendeu o futuro e o progresso: “em vez de nos interrogarmos «para onde?», a pergunta que nos fazemos hoje é «até quando»?” (Marina Garcés, p.20). De repente, tudo o que se julgava sólido parece dissolver-se no ar: “até quando terei emprego? Até quando viverei com o meu companheiro? Até quando haverá reformas? (…) Até quando haverá água potável? Até quando continuaremos a acreditar na democracia?”.                              
Se Bauman sublinha, como o fizeram autores como Marcel Gauchet (cf. Democracia entre duas crises, Estampa, 2012), que a uma liberdade individual maximizada (por exemplo, em diminuição substantiva da tributação [fiscal] em algumas democracias) correspondeu uma impotência coletiva (que, em realidade, deixa em terra de ninguém quem necessita do contributo, progressivo, de todos para que possa recorrer a serviços de Saúde, Educação, Transportes públicos, etc.; mesmo que nem toda a/máxima progressividade tenha conseguido atingir as finalidades sociais maximizadas, isto é, não alcançadas aquelas na exata medida em que se propunham nos termos do grau de progressividade assumido [por comparação com outros índices, menores, de progressividade, e o modo como aqueles alcançam os mesmos resultados, não demasiado ambiciosos, noutras latitudes]), o desfasamento maior que Marina Garcés aponta e que se traduz em impotência (colectiva) é, ainda, (um) de outra natureza: hoje, sabemos tudo - e disso não conseguimos fazer nada, isto é, não conseguimos, com o conhecimento que adquirimos, melhorar as vidas das pessoas, (e/ou) tornarmo-nos melhores (pessoas), fazer progredir o mundo, transformá-lo de modo que a nossa condição não fosse (seja) póstuma (como aquela que é, de acordo com a Professora da Universidade Aberta de Barcelona): a de um futuro cancelado, de uma vivência zoombie, a de um planeta no qual não cessa de aumentar a ansiedade ecológica. Daí, o crescimento e opção, em nossas sociedades, por identidades defensivas e ofensivas (em qualquer caso, não acolhedoras ou hospitaleiras); daí um “novo autoritarismo que permeia toda a sociedade”. Em realidade, e no que à política diz respeito, o conceito “populismo”, segundo Garcés, talvez não traduza, com suficiente precisão e acuidade, a cada vez maior “apetência autoritária que faz do despotismo e da violência uma nova força mobilizadora” (p.11). 
 
5.Questionamento radical de Marina Garcés, no âmbito do desnível entre o conhecimento e a sua tradução em melhorias na vida das populações, é o que sugere que abandonamos a crença de que a educação tem o potencial e consegue – tem essa finalidade e (capacidade de) operatividade – tornar-nos melhores pessoas. Sem esta convicção, como educar? Que motivação ao ensinar? Sem convicção e/ou motivação, que ensino? Susan Neiman, ilustrando com um artigo do The New York Times [NYT], constata que a atual consideração (popularizada) do Ensino Superior (cf. A Universidade como deve ser, António M.Feijó e Miguel Tamen, FFMS, 2017, em perspectiva diversa da dita hegemónica) se faz tendo em estrita e única medida o seu valor mercantil: [como se pode observar pelo artigo, citado em A esquerda não é woke, do NYT, a concepção nele presente é a de que] “o valor do ensino superior é o (seu) valor material. Não aparece [quanto a qualquer teleologia assacada à Universidade] nenhuma palavra sobre a formação do carácter; isso é tão século XIX. Nem um gesto de preparação para a cidadania democrática; deixámos isso para trás no século XX, embora, hoje, precisemos [dela] mais do que nunca” (p.158). Ora, esta concepção (de Ensino Superior) nada tem de natural – não respeitando as origens e tradição da Universidade, aliás -, mas inscreve-se numa filosofia pobre acerca do humano e seu desejo: “mesmo quem nunca abriu um livro de filosofia não deixa de nadar nas correntes ideológicas que giram à nossa volta. As ideologias florescem, porque as pessoas querem explicações gerais sobre o funcionamento do seu mundo; se forem explicações simples, tanto melhor. As ideologias contemporâneas dominantes combinam-se para criar um universalismo fraudulento que reduz toda a complexidade do desejo humano a uma ânsia de riqueza e poder. Reivindicando o apoio da economia, da filosofia e da biologia, a ideologia do interesse próprio condena todos os outros motivos da acção humana como sendo autoilusão ou propaganda cínica” (p.163).
Para Marina Garcés, a este propósito, uma das tarefas ingentes do tempo que atravessamos prende-se com a revisitação e reconfiguração do significado de “Humanidades”, nomeadamente a afirmação de “Humanidades em transição”, ou seja, “por humanidades já não nos podemos referir unicamente às disciplinas teóricas «de letras», mas a todas aquelas actividades (ciências, artes, ofícios, técnicas, práticas criativas…) com que elaboramos o sentido da experiência humana e afirmamos a sua dignidade e liberdade. Já não nos orienta a divisão entre ciências e letras, teoria e prática, saber académico e saberes informais. Precisamos de compreender o que fazemos a partir de problemas comuns que atravessam linguagens, práticas e capacidades diversas” (“Novo Iluminismo…”, p.75). Tal como no século XX (no qual a Europa mais culta chocou o ovo da serpente do nazismo), precisamos de voltar a interrogar-nos “por que razão sociedades supostamente tão cultas continuam a cometer tantas atrocidades?”, “como se pode hoje fazer tanta coisa a tanta gente culta?”, isto é, importa inquirir “que saberes e que práticas culturais precisamos de elaborar, desenvolver e partilhar em prol de uma sociedade melhor no conjunto do planeta?”. Sem estas questões, as Humanidades podem tornar-se (apenas) “conhecimentos de textos sobre textos” (p.83) [Atente-se, aqui, no modo como Garcés apresenta um diagnóstico bem mais sombrio do que aquele que Steven Pinker oferecia em Os Anjos bons da nossa natureza, obra na qual o progresso, alcançado pela humanidade, na diminuição da violência e, entre outros, nas condições de diferentes minorias historicamente negligenciadas, e isto em múltiplos países/culturas (diferentes entre si), (supostamente) proporcionado pela “escada rolante da razão”, era exaltado. Singer, acolhendo Pinker, parece observar o caso da agressão da Rússia de Putin à Ucrânia como um factor que levaria/levará à reavaliação do arco da história: “no momento em que escrevo estas linhas, ainda não se sabe se a agressão da Rússia à Ucrânia se revelará uma excepção isolada à regra de que os países tecnologicamente avançados não entram em guerra entre si ou se irá assinalar o fim deste declínio [que se verificava na violência e guerra]” (“Ética no mundo real”, p.34)].
Se Marina Garcés retoma o tópico de que “as Humanidades não humanizam” [Jean Améry, sobrevivente dos campos de concentração e extermínio nazis, no Prefácio, de 1977, ao seu Além do crime e castigo – tentativas de superação, escrevia, já, da sua incompreensão: “como, no seio do povo alemão, um povo de grande inteligência, de produtividade industrial e riqueza cultural únicas, um povo de ‘poetas e pensadores’, ocorreu aquilo” (?), p.15] – embora, como também frisou Steiner lembrando Dante, alternativa não é, propriamente, viver como brutos (não nos instruirmos, nomeadamente – porque essa também não é condição/garantia de humanos e sociedades melhores) -, se podemos dizer que, no limite, se regressa ao radical de Sloterdijk [“Regras para o parque humano”, Angelus Novus, 2008] – se o “projecto do Humanismo”, “ler amansa a alma”, falha, então como educar (o carácter humano), como sermos melhores do que hoje? (e isto, acrescentamos, respeitando, simultaneamente, a liberdade e dignidade humanas – sem recurso aos comprimidos das felicidades quimicamente condicionadas (ou de condicionamento, no indivíduo, de prevaricar [impedindo-o de, no limite], pela mesma via química; nisto, pois, me afastando quer do Anthony Burgess de A Laranja mecânica, quer do Peter Singer (com Agata Sagan – a que se poderiam acrescentar artigos, no mesmo sentido, de Julian Savulescu, filósofo de Oxford) de Ética no Mundo Real, Edições 70, 2023, p.50: “Daí que a ideia de uma «pílula da moralidade – um fármaco que torne mais provável que ajudemos terceiros [ou não prevariquemos relativamente a estes] – não seja descabida. Será que as pessoas escolheriam tomá-la para se tornarem pessoas melhores? Poder-se-ia dar aos criminosos a opção, em alternativa à prisão, de um implante que tornasse neles menos provável o dano sobre terceiros?”. Por mim, respondo não a ambas as questões [a neurocientista Molly Crockett, no The Guardian, tem interrogado, de resto, ao longo dos anos, como funcionaria, numa dada pessoa, a “pílula da moralidade” no célebre dilema de alguém que perante/num comboio que, dadas as circunstâncias definitivas em que o acaso o colocou, com a sua marcha, involuntária mas necessariamente, matará cinco pessoas [que não dão pela chegada da locomotiva], e tendo como única forma de travar tal acontecer a faculdade de empurrar um homem corpulento que está ao lado [este morrerá, mas os outros cinco serão, então, salvos]: o paciente [quer dizer, a humanidade toda, potencialmente, assim concebida como enferma] com a pílula [ou vendo o enxertar, no seu interior, de um chip para o bom comportamento], talvez ficasse ainda mais céptico quanto a assumir o dito empurrão, sendo que, diz Crockett, sem desempatar entre deontologistas e consequencialistas, não existe um resultado absolutamente certo para o dilema]; apesar de Singer dar por não resolvido o problema do “livre-arbítrio”, aliás, um problema metafísico, não parece acreditar demasiado que somos “seres morais até ao âmago” e sugere inscrever-se, antes, em um posicionamento que tende a considerar que o “cérebro decidiu” ou “cérebro escolheu”, quando, na perspectiva que subscrevo, quem escolhe e decide é a pessoa, e o motivo que a leva a escolher (uma determinada direcção/orientação/acção) é melhor descrito por esta do que o estabelecimento/apresentação de um conjunto de sinapses como causa da decisão, tal como um alheamento do mundo, eticamente inaceitável, de resto, próprios das distopias mais conhecidas elaboradas na centúria precedente, sustentariam) (?), Garcés, que está bem ciente de falsas respostas [aquilo que assim, aqui, se demanda] como a do “solucionismo” – a delegação das respostas, complexas, do humano às máquinas; o humano poderia, então, ser estúpido que as máquinas resolveriam, simplesmente, por ele, em mais um manifestação de pessimismo antropológico -, atualiza, porém, o diagnóstico do bem conhecido excesso de conhecimento e informação – e consequente dificuldade em o processar, digerir, apropriar de modo sábio (um constrangimento definido, com notável propriedade, desde logo na entrada “Crítica” da Encyclopédie e, desde então, multiplicado infinitas vezes para o nosso tempo) – com que os humanos da terceira década do século XXI se deparam, identificando os males da época na “neutralização da crítica” (actualmente existente): “saturação da atenção [que leva a ansiedade, desorientação e depressão], a segmentação dos públicos, a uniformização das linguagens e a hegemonia do solucionismo” (p.61) [“como podemos seleccionar se não conseguimos prestar atenção a tudo o que nos rodeia? Como discriminar criticamente se não conseguimos processar (digerir) tudo? É óbvio que o aumento exponencial da informação e do conhecimento leva a que uma grande parte deste saber fique por atender”, p.62]. É preciso, assim, “desenvolver uma psicologia e uma política da atenção  - dentro de uma ‘política da atenção’ talvez possamos, de imediato, enquadrar os debates e decisões que têm sucedido/se têm dado acerca do uso dos smartphones na(s) escola(s), por exemplo, ou a regulação dos instrumentos que viciam em redes sociais, em especial os mais jovens, inseridos, naquelas, pelas empresas detentoras das mesmas (instrumentos de viciação, e suas consequências a nível educativo, os quais, estiveram na origem de processos judiciais movidos contra aqueles gigantes tecnológicos detentores das redes sociais, em diferentes países); na psicologia da atenção, Marisa G.Franco, no que aos relacionamentos interpessoais diz respeito, refere que a atenção significa a consciência das “emoções que nos impulsionam a proteger-nos de nós próprios (…) Devemos parar, respirar e olhar para dentro do nosso corpo para perceber onde se manifesta o gatilho (…) Ao localizarmos o gatilho, acalmamo-nos para que possamos atender-lhe em vez de reagir” (Amigos, Talento Intemporal, 2022, p.175) - e, não menos relevante, “voltar a pôr no centro de qualquer debate o estatuto do humano e o seu lugar no mundo e em relação com as existências não humanas” (p.70).  Para Garcés, o discurso escutado, em diferentes fóruns sobre educação, de que temos de aprender e prepararmo-nos (na escola) para um futuro que desconhecemos por completo – mais “competências”, mais disposições atitudinais, mais gosto por aprender e abertura (mental/de espírito) e adaptação ao novo do que, propriamente, “conhecimentos” específicos para um mundo que desconhecemos qual será, nomeadamente com a permanente disrupção laboral que a aceleração tecnológica tem introduzido [ainda, aqui, tributários dessa fixação na dimensão laboral, é verdade, ignorando, também, a centralidade do direito ao contentamento intelectual durante, pelo menos um período da vida da pessoa, objecto central do Ensino Superior, lembram-no Feijó e Tamen] -, bem mais do que introduzir o acolhimento da incerteza e da criatividade, o que produz é uma completa “desvinculação entre a acção e as aprendizagens presentes a respeito das suas consequências futuras” (p.69).  Ora, “não há uma afirmação mais despótica e terrorífica do que esta” (p.69). [Estaríamos/estaremos a abdicar, porventura, também aqui, de assumir qualquer capacidade de configurar um futuro desejável, reagindo-se, em exclusivo, ao que vier (?); a dada altura perdendo, até, a noção de como funciona a IA, novo factor disruptivo das nossas sociedades, como assinala o Prof. Rui Nunes].
Como já não é possível progredirmos com noções de nostalgia das Humanidades – e as pessoas nem sequer perderam o desejo de sentido, destaca a académica; “as Humanidades não são um conjunto de disciplinas em extinção, mas um campo de batalha onde se decide o sentido e o valor da experiência humana” (p.72) – ou com a ilusão técnico-utópica como sucedendo aquela [o solucionismo], na medida em que a escola deixa, hoje, de ser pensada enquanto “projecto cultural e político do Estado-nação” e “passa a ser concebido como um elemento promotor do mercado competitivo de talentos, competências e patentes”, no integrum letras-ciências-saberes que melhorem a vida do (e o) humano – num tempo de “universalidade sem igualdade” na educação – “a escola do futuro já começou a construir-se e não está a ser pensada pelos estados ou pelas comunidades, mas pelas grandes empresas de comunicação e pelos bancos. Não tem paredes nem muros, mas plataformas online e professores durante vinte e quatro horas. Não lhe será necessário ser excludente, porque será individualizadora de talentos e de percursos de vida e de aprendizagem. Praticará a universalidade sem igualdade” (p.79), ali onde se desenvolve “uma inteligência aquém e além da consciência humana” (“internet das coisas, fabrico inteligente, engenharia genética, big data, continuidade biológico-físico-digital”, quarta revolução industrial que significa, e entre outros, “tornar a inteligência uma força produtiva”) -, e em que, no limite, nos questionamos “que países, que instituições, que empresa e que pessoas, individualmente selecionadas segundo os seus talentos? E quais serão excluídas e reduzidas a força bruta ou a excedente humano?”, estando em jogo o “sentido da dignidade e da liberdade humanas na sua condição de universais recíprocos a elaborar de forma partilhada” (p.88) não mais é possível separar as “Humanidades” do “estômago”, pelo que Martha Nussbaum (“Sem fins de lucro. Porque a democracia precisa das Humanidades”, Edições 70, 2019) ou Nuccio Ordine (“A utilidade do inútil”, Faktoria K, 2016), os quais (autores e respectivas obras vindas de identificar) Garcés cita expressamente, ficariam superadas (“são ainda visões idealistas (…) [próprias de quem] podia separar aquilo com que alimentava o estômago daquilo com que alimentava o espírito”, p.89).
Humanidades em transição significa, em definitivo, que o estatuto do humano está em disputa, em uma época na qual se assiste à “desinstitucionalização das humanidades”, a qual importa averiguar/avaliar em toda a sua extensão – “pessoas que deixam a universidade ou a carreira porque não lhe encontram sentido; investigadores que abandonam a investigação, porque não suportam mais humilhações; artistas que fogem dos mercados dos projectos e que partilham as suas criações por outros canais; professores que optam por projectos educativos alternativos…”.
 
6.Se para Norberto Bobbio (Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, Presença, 1995) o critério distintivo dos significados políticos de esquerda e direita passa pelas respectivas atitudes face à (ao valor) igualdade (para a qual a esquerda propende mais do que a direita que, aliás, a poderá compreender como não benéfica), para Neiman ela centra-se na possibilidade (ou não) de progresso [significativo nas reais condições de vida das populações]: a esquerda creria mais nele, a direita apenas em melhorias limitadas – embora, reitera-se, a filósofa não concretize em que consistem, hoje, melhorias significativas das reais condições de vida das populações e, assim, da sua parte, ausência de uma clara vara de medir em casos concretos, no interior de sistemas partidários reais, em diferentes países). Outra linha de separação, de acordo com Neiman, prende-se com a noção/relevância (idêntica) dos direitos políticos e dos direitos sociais (“o que distingue a esquerda é que os direitos sociais não são menos direitos humanos do que os direitos políticos”, p.148). De outra banda, Neiman, sem prejuízo da necessidade da afirmação do internacionalismo (“o que nos unia não era o sangue, mas as convicções”, p.25) como outra marca de água de esquerda e de reclamar uma leitura crítica do passado de cada nação, afiança que “nenhuma nação pode prosperar com uma dieta de más memórias” (p.136) [“o woke exige que as nações e os povos enfrentem os crimes das suas histórias. Nesse processo, conclui frequentemente que toda a História é criminosa”, p.14] e, como que ecoando Allan Bloom (“A destruição do espírito americano”, Guerra e Paz, 2023), da necessidade (que uma nação tem) de heróis (“os heróis recordam-nos que os ideais que prezamos foram efectivamente vividos por seres humanos corajosos”, p.136). Na senda dos mais recentes escritos de Sandel ou Walzer, Neiman firma, pois, aqui, a relevância política da nação (por parte de alguém vindo da esquerda).
Se, para Bloom, a fragmentação em grupos (como se cada um – cada grupo - nada tivesse que ver com os demais) no espaço público (em especial, o norte-americano) remonta a um liberalismo político sem direitos naturais enxertado como regime – esta denúncia de fragmentação, por parte de Bloom, e a respectiva despolitização [a concentração num eu privado em detrimento do que é comum e público] que origina, surge, pois, já, em 1987, bem antes do manifesto crítico, em sentido similar, mesmo que não com identificação das mesmas causas, de Mark Lilla [The Once and future Liberal. After Identity Politics, Tinta da China, 2018], na sequência das presidenciais norte-americanas de 2016 -, no caso de Neiman a invocação permanente é a de um compromisso com a tradição universalista do Iluminismo [Neiman e Marina Garcés consideram que vivemos tempos profundamente anti-iluministas; “a ideia de que uma lei se deve aplicar a senhores e camponeses, protestantes e católicos, judeus e muçulmanos, simplesmente em virtude da sua Humanidade comum, é uma conquista recente, que molda hoje tão profundamente as nossas assunções que não conseguimos reconhecê-la como uma conquista”, assinala Susan Neiman que atribui tal conquista aos pensadores iluministas. Na arqueologia deste tratamento igualitário - mesmo que ali, em alguns dos pensadores iluministas, se retirem todas as consequências da mundividência na qual aquele principia -, atente-se no gesto de Paulo relativamente a Onésimo como radical civilizacional dessa igualdade, cf. José Tolentino de Mendonça, Metamorfose necessária, Quetzal, 2022] frente a uma esquerda woke (que dá título ao livro, de resto; esta esquerda woke não acredita(ria) no universalismo, por julgar que tal abordagem seria um modo de uma determinada cultura se sobrepor a outras; quando Neiman intitula o ensaio com “A esquerda não é woke” pretende dizer que a “verdadeira esquerda” é universalista; que o modo woke de ser esquerda será, desta forma, uma perversão daquela corrente ideológica, por plural que ela seja). A pensadora norte-americana considera que é justamente por ser de esquerda que deve denunciar o que no seu campo político compreende como nocivo (mesmo que possa ser acusada, recorda, de, desse modo, ser instrumentalizada pela direita). Ora, e desde logo, os conflitos de identidades são alimentados pela desilusão com as ideias de justiça social (p.10) [anotamos: face à ausência de avanços em matéria de justiça social, procede-se, politicamente, a uma espécie de compensação com recurso ao identitarismo, incluindo, nele, nas diversas frentes de batalhas culturais de novo insufladas, políticos de diferente matriz ideológica, a nível internacional] e a esquerda, segundo Neiman, deve priorizar a desigualdade económica face a outras formas de desigualdade (“o woke tornou-se uma política de símbolos [e uma forma de auto-expressão] e não de mudança social”, p.13). Além do mais, há um conjunto de exemplos de absurdo e ridículo a condicionar a livre expressão em sociedade a que a diretora do Einstein Forum recorre para ilustrar – “uma editora alemã promoveu um novo livro com a frase: «este livro vai abrir-lhe os olhos». Foi imediatamente atacada por utilizar palavras susceptíveis de causar sofrimento a pessoas cegas e obrigada a retirar o anúncio” (p.15). Para Susan Neiman, há, no Woke – uma expressão que “não desempenhou, porém, nenhum papel nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016” – uma redução das “múltiplas identidades que todos possuímos” à “raça e ao género” (por serem aquelas que sofreram mais traumas).
 
7.No essencial, no que ao progresso diz respeito, e entre nós, Onésimo Teotónio Almeida, no estado da arte acerca do tema, registara o que podemos assumir como a mensagem fundamental que, agora, Neiman (já num cenário de mais de dois anos de guerra na Ucrânia e recrudescimento violentíssimo da violência no Médio-Oriente) nos quer deixar: “Considerando as alternativas, suponho que não nos resta outra opção. O ideal do progresso não pode nem deve ser posto de parte. Os sonhos, as utopias e os ideais poderão não ser atingíveis, todavia se acreditarmos que à nossa frente só encontraremos precipícios e poços de podridão, está visto que as nossas decisões só poderão deixar-nos atolados neles, sem qualquer hipótese de sobrevivência. Pascal alertou-nos. Em termos pragmáticos, as nossas probabilidades de escolha indicam-nos bem claramente qual a aposta capaz de nos garantir um mínimo de êxito.” (Onésimo Teotónio Almeida, “Progresso – uma ideia em decadência?”, JL 15 a 28 de Dezembro de 2021, p.28). Uma das dificuldades que teremos em assumir-nos esperançados relativamente ao futuro, e ao progresso, aponta a filósofa norte-americana, é não querermos passar por ingénuos – mas é nos momentos mais difíceis que é preciso arriscar/apostar.

 

Pedro Miranda

 


[1] Leio, sobretudo, esta mencionada obrigação, como exortação, como chamamento a uma mobilização conjunta para um trabalho pela melhoria das condições de vida das pessoas. Sem deixar de respeitar, profundamente, os que, como, exemplarmente, Jean Améry, em circunstâncias de vida de confronto com um mal extremo (ou, segundo o próprio, radical), não puderam mais aceitar um princípio esperança [cf. Além do crime e castigo. Tentativas de superação, Contraponto, 2013, p.77].





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