OUSAR A ESPERANÇA
Ousar a Esperança
Neste contexto, e sem prejuízo de continuar a subscrever a ideia de que a completa/absoluta sociedade justa não emergirá nesta exata dimensão terrena em que nos encontramos e na constatação da debilidade humana (no que nela há, ainda que não em exclusivo [empatia, desde logo, igualmente característica do humano], de inclinação ao mal e sujeição ao erro), a esperança – que é diferente do optimismo, e, sobretudo, de um optimismo que negue/negasse a evidência de um disseminado mal que perpassa esta hora: “o protofascismo está a surgir em todo o mundo”, p.147; “O optimismo é uma recusa de encarar os factos. A esperança pretende mudá-los. Quando o mundo está realmente em perigo, o optimismo é obsceno”, p.122) – é, justamente num tempo que observamos tão densamente povoado de obscuridades e obscurantismos, uma obrigação ética[1] – subscrevemos, aqui, a filósofa (mesmo que as fontes onde haurimos, primordialmente, essa esperança não sejam necessariamente as mesmas – para nós, ultima ratio, só uma fonte metapolítica, Transcendente, dará o fundamento bastante aquela…a desaguar, é certo, também, em um contributo na elaboração de uma muito relevante esperança política/social – com todos os que queiram participar nesse empreendimento comum, e sendo certo que nem o melhor constructo institucional dará vazão, no que no humano supera o materialismo, ao mais fundo do que aquele carece para poder edificar). Ademais, a dilucidação, em concreto, do quão “significativa” é a possibilidade de “melhoria” [das condições de vida das populações através de um trabalho conjunto] implicar-nos-á em um mister que deve furtar-se, ainda, a meu ver, e em simultâneo, à ratoeira de um insuflar tal de expectativas que redunde em uma insatisfação/frustração/ressentimento dos que, paradoxalmente, se procura empoderar, manifestações, aquelas, aliás, que quando (de)votadas a plataformas destrutivas da vida democrática a todos coloca em risco (desse modo de inserção e vivência na polis). Sem, aqui, se procurar, necessariamente, uma perspectiva ecuménica sobre o quantum de progresso (como horizonte de medida; e é certo que “o que pensamos ser possível determina o quadro em que agimos (…) por definição, o progresso não é o que temos actualmente”, pp.138-139) dir-se-ia que nem a recusa do rasgo e ousadia no compromisso com mudanças significativas, para melhor, na vida das pessoas, nem, também, uma promessa do ilimitado.
Sem embargo, a pura consideração de que nada há a fazer em função de um humano caído, repleto de recidivas e considerado a partir de postulados unilaterais (acerca do mesmo) incapazes de perscrutarem (nele) algo mais do que interesse próprio, maldade, auto-preservação, rejeitando a possibilidade e a existência do altruísmo – como se quem sustenta a sua presença real, aqui e agora, fosse, nas irónicas palavras de Neiman, um fundamentalista religioso que nega Darwin, p.101 – e de bem comum desaguaria na mais cínica das apropriações ou interpretações da vida política como mera e rasa luta de poder.
Susan Neiman, buscando desmascarar os desmascaradores, e notando como - com recurso ao Google Scholar, dados relativos ao ano de 2019 - nenhum investigador das Ciências Humanas e Sociais foi mais citado do que Foulcault escreve, em A esquerda não é woke (Presença, 2024), que a procura deste autor em desconstruir toda a acção como tendo o poder como força motriz (“ao lerem Foucault (…) os estudantes estão a absorver uma lição filosófica que é muito geral: o poder (…) é a força motriz de tudo”, p.77), as instituições como modo de dominação (por banda de um dado grupo social), numa palavra, a indistinção entre poder e justiça (o desmascarar das instituições liberais, em Carl Schmitt, em favor da ordem do III Reich; em Foucault, porventura, esse mesmo desmascarar em favor da subversão como forma de arte; subversão, todavia, que pode tomar qualquer direcção, incluindo, portanto, a regressiva e/ou não democrática) uma herança que não deixaria mais do que um terreno vazio e desolador (e, provando que várias pessoas, em particular dedicadas ao oficio da filosofia e do pensamento, em diferentes latitudes, em simultâneo, estarão a ponderar no mesmo, pelo menos insertos em um hemisfério ideológico com pontos de contacto, escreve Marina Garcés em “Novo Iluminismo Radical” (Orfeu Negro, 2023, p.14): “Que qualquer libertação termina em novas formas de dominação ainda mais terríveis e que qualquer saber mobiliza novas relações de poder é uma obviedade. Mas é também o argumento reaccionário com o qual se condenou qualquer tentativa radical de transformar o mundo e de impulsionar o desejo, pessoal e colectivo, de emancipação. Assim, chegámos a aceitar como um dogma a irreversibilidade da catástrofe”). Ora, reforça-se, “numa época em que as ameaças a esse mundo parecem esmagadoras, o pessimismo é sedutor, pois garante-nos que não há nada a fazer. Quando sabemos que é inútil, podemos parar de lutar. Para nos consolarmos, ou pelo menos para nos distrairmos, temos sempre a autoajuda ou o consumo de substâncias psicotrópicas” (p.122). Em realidade, “se não tivermos esperança, não podemos actuar com convicção e vigor. E se não conseguirmos agir, todas as piores previsões dos pessimistas tornar-se-ão realidade” (p.162). Esperança – uma exigência moral em nosso tempo. Daí, também, que a negação, em razão puramente imanente e fechada, do direito de cidade a reservas metapolíticas de esperança que preenche(ra)m os humanos, ao longo dos tempos, se revele um dano auto-infligido por esse mesmo humano, lá, em culturas onde esse cerramento se realiza sem adversativas.
E, todavia, “o debate sobre os pontos de vista filosóficos acerca da natureza humana tende a decorrer em termos mais apropriados a um jogo de futebol: Hobbes diz que somos maus, Rousseau diz que somos bons; Hobbes pensa que estamos sempre sob ameaça de guerra sem um soberano absoluto, Rousseau pensa que estaríamos em paz se a civilização não interferisse. Ambos os filósofos eram consideravelmente mais complexos, mas aqueles que não os leram resumem o debate: Hobbes era um realista, Rousseau um utópico” (p.93). Sem prejuízo do que, assim, sustenta, é a própria pensadora que assinala que “a visão de Rousseau do estado natural do ser humano faz com que a guerra pareça perversa; a de Hobbes fá-la parecer normal” (p.121), pelo que, e de modo mais imediato quanto a inspirações para o que está em jogo em nosso tempo político, “se quisermos estabelecer uma ditadura, a nossa melhor hipótese é convencer os nossos companheiros de que a Humanidade é bruta por natureza e precisa de um líder forte que a impeça de se desfazer em pedaços. Se quiser estabelecer uma social-democracia, vai ampliar todos os exemplos de cooperação natural que conseguir encontrar” (p.121).
A noção de que a Humanidade é bruta por natureza, a ideia de que esta, no “estado natureza”, viveria numa “guerra de todos contra todos” implica, necessariamente, a conclusão de uma ditadura como arranjo/solução/plataforma política (inevitável)?
De acordo com John Rawls, o estado de natureza (hobbesiano) não é apenas a referência (ficcionada) ao nosso estado original, ao estado mais antigo da humanidade, ao humano selvagem; na interpretação que faz do escrito de Hobbes, “o Estado de Natureza é uma possibilidade sempre presente de degeneração e guerra civil” (“Palestras…”, pp.54-55). Ora, para evitar, precisamente, a degeneração e guerra civil, a social-democracia e a democracia-cristã ergueram, sobretudo durante o século XX (pós-II Guerra Mundial, em especial), os Estados Sociais, os Estados-Providência - “a memória da guerra desempenhava um papel importante, os Estados-providência (…) do século XX construíram-se não como guarda avançada da revolução igualitária, mas para proporcionar uma barreira contra o regresso do passado: contra a depressão económica e o seu resultado político polarizador e violento na política desesperada, tanto do fascismo como do comunismo. Os Estados-providência eram, portanto, Estados profilácticos. Foram concebidos de forma muito consciente para responder ao anseio generalizado de segurança e estabilidade” (Tony Judt, O Século XX esquecido - lugares e memórias, Edições 70, Lisboa, 2009, p.21).
Assim, talvez não seja completamente destituída de fundamento a arguição de que para se evitar a degeneração, a guerra civil, a guerra de todos contra todos, a queda no estado natureza – precisamente, dadas as consequências da ausência de uma rede de protecção e segurança – necessário será não uma ditadura, mas a manutenção de políticas, e uma visão que a sustente, que historicamente foram social-democratas (ou democrata-cristãs).
Em todo o caso, provavelmente, ousemos enquanto hipótese académica para reponderar no que foi sendo politicamente proposto no campo político vindo de mencionar, supomos em diálogo com os constructos propostos na última década e meia, dada a sua preferência por melhorias que não sejam de recorte limitado, Neiman não subscreveria, como suficiente, hoje por hoje, uma “social-democracia do medo” (Judt) – enquanto plataforma elaborada a quando do momento mais duro da Grande Recessão (anos 2008 e seguintes) -, porque a “conservação” dos Estados Providência (o medo de os perder) não gerou – seja, porventura, pela descrença de cidadãos em os manter com a robustez necessária [cidadãos que, portanto, não lutam, já, por aqueles, dando-os, exasperadamente, por “perdidos” no essencial], seja por entenderem que o que está não é o suficiente e (não é) o possível [a pura manutenção não irá permitir que o meu filho viva de um ponto de vista económico-social melhor do que eu] – a esperança capaz de, em múltiplos países, assegurar a forças social-democratas ou democratas-cristãs a liderança política no governo dos seus Estados. Ou, ainda, porque a mera conservação [a social-democracia, para Judt, como a “banalidade do bem”, sem exaltações fervorosas de novas grandes metas de avanços a cumprir], enquanto impossibilidade de o conceber em chave de progresso, leva outros tantos a reacções de medo e a querer fechá-lo para uso exclusivo dos “nativos”.
Note-se, neste contexto, em todo o caso, fechando aqui por impossibilidade do contrafactual, que o ensaio de Neiman visa, apenas e nesta hora não será pouco, demonstrar a possibilidade de progresso, mas sem, ao mesmo tempo, concretizar o que considera serem - sem desenhar um programa concreto quanto a - significativas melhorias nas condições de vida das populações (nem o modo, plataforma política, grupos sociais [coligação de] em que se ancoraria).
Neiman não apenas aponta ao reducionismo desta visão de mundo – “embora os psicólogos evolucionistas contemporâneos evitem, geralmente, as afirmações mais dramaticamente reducionistas, os seus pontos de vista trabalham em conjunto para as insinuar. Nem mesmo o mais apaixonado teórico da evolução nega alguma diferença entre as nossas estratégias reprodutivas e as de um chimpanzé. O homem que compõe um soneto para a sua amada fez algo mais do que bater no peito e oferecer um pedaço de carne. No entanto, a discussão sugere que o valor adicional proporcionado pela atividade humana é superficial. O que realmente somos é o macaco que bate no peito; o que os sonetos e as sinfonias nos proporcionam é apenas uma embalagem” (pp.102-103). Tal ponto de vista, refere Susan Neiman, “tem sido questionado de forma persuasiva por vários primatologistas” e, neste âmbito, “o trabalho de Franz de Waal é o mais abrangente do ponto de vista filosófico”. Que, atente-se, após uma “investigação sobre uma variedade de macacos e símios levou-o a concluir que «somos seres morais até ao âmago»” (p.103) [assim restringindo o fatalismo/determinismo biológico e, desta sorte, colocando-nos em zona de escolhas, de opções] e que mesmo que se considere a cultura como “evolutivamente recente e que a maior parte do que é essencial à natureza humana é bestial, estamos muito melhor do que se supõe. As reacções emocionais ao sofrimento alheio, que partilhamos com o macaco, são elementos constitutivos das estruturas complexas da moralidade humana. De Waal e outros demonstraram que os primatas têm a capacidade mais básica para o desenvolvimento moral: a de nos colocarmos no lugar dos outros. O sentimento de solidariedade, a capacidade de gratidão e o sentido de justiça começam logo aí” (pp.103-104). Do ponto de vista coletivo – e mau grado profecias (sobre a inevitabilidade da queda, como, tal como acima assinalámos, a legalização da tortura, em pleno séc.XXI, numa democracia liberal, como os EUA) que se autorrealizam -, e pese o que falta fazer, a abolição da servidão feudal, os direitos das mulheres, a condição de homossexuais, a clara melhoria da situação de pessoas de pele negra (hoje, face apenas há poucos decénios) foram, em muitos países, uma efectiva realidade: “negar a realidade do progresso é negar a realidade” (p.139). Sim, é possível, exorta a ensaísta.
[um autor como Peter Singer, assume, louvando-se em Steven Pinker [Os anjos bons da nossa natureza, Relógio d’Água, 2016], a existência destas melhorias (de um modo geral), mas partindo, todavia, de um pressuposto, que faz radicar em Ghandi, de que um progresso moral civilizacional deriveraria – não do tratamento e cuidado com os últimos de entre os humanos, dos detidos, dos mais velhos, dos pobres, dos marginalizados enquanto prioridade que na mundividência em que me inscrevo devia ser assumida – da maneira como tratamos os animais não humanos, e atendendo, em especial, à forma como estes se encontram encarcerados pelo mundo, hoje, simultaneamente à primeira das afirmações quanto ao que adquirimos civilizacionalmente, estaríamos, sensivelmente, ao nível do tempo da antiga Roma…[cf. Ética no Mundo Real, Edições 70, 2024, pp.33 e ss. e pp.109 e ss.]
Se Marina Garcés retoma o tópico de que “as Humanidades não humanizam” [Jean Améry, sobrevivente dos campos de concentração e extermínio nazis, no Prefácio, de 1977, ao seu Além do crime e castigo – tentativas de superação, escrevia, já, da sua incompreensão: “como, no seio do povo alemão, um povo de grande inteligência, de produtividade industrial e riqueza cultural únicas, um povo de ‘poetas e pensadores’, ocorreu aquilo” (?), p.15] – embora, como também frisou Steiner lembrando Dante, alternativa não é, propriamente, viver como brutos (não nos instruirmos, nomeadamente – porque essa também não é condição/garantia de humanos e sociedades melhores) -, se podemos dizer que, no limite, se regressa ao radical de Sloterdijk [“Regras para o parque humano”, Angelus Novus, 2008] – se o “projecto do Humanismo”, “ler amansa a alma”, falha, então como educar (o carácter humano), como sermos melhores do que hoje? (e isto, acrescentamos, respeitando, simultaneamente, a liberdade e dignidade humanas – sem recurso aos comprimidos das felicidades quimicamente condicionadas (ou de condicionamento, no indivíduo, de prevaricar [impedindo-o de, no limite], pela mesma via química; nisto, pois, me afastando quer do Anthony Burgess de A Laranja mecânica, quer do Peter Singer (com Agata Sagan – a que se poderiam acrescentar artigos, no mesmo sentido, de Julian Savulescu, filósofo de Oxford) de Ética no Mundo Real, Edições 70, 2023, p.50: “Daí que a ideia de uma «pílula da moralidade – um fármaco que torne mais provável que ajudemos terceiros [ou não prevariquemos relativamente a estes] – não seja descabida. Será que as pessoas escolheriam tomá-la para se tornarem pessoas melhores? Poder-se-ia dar aos criminosos a opção, em alternativa à prisão, de um implante que tornasse neles menos provável o dano sobre terceiros?”. Por mim, respondo não a ambas as questões [a neurocientista Molly Crockett, no The Guardian, tem interrogado, de resto, ao longo dos anos, como funcionaria, numa dada pessoa, a “pílula da moralidade” no célebre dilema de alguém que perante/num comboio que, dadas as circunstâncias definitivas em que o acaso o colocou, com a sua marcha, involuntária mas necessariamente, matará cinco pessoas [que não dão pela chegada da locomotiva], e tendo como única forma de travar tal acontecer a faculdade de empurrar um homem corpulento que está ao lado [este morrerá, mas os outros cinco serão, então, salvos]: o paciente [quer dizer, a humanidade toda, potencialmente, assim concebida como enferma] com a pílula [ou vendo o enxertar, no seu interior, de um chip para o bom comportamento], talvez ficasse ainda mais céptico quanto a assumir o dito empurrão, sendo que, diz Crockett, sem desempatar entre deontologistas e consequencialistas, não existe um resultado absolutamente certo para o dilema]; apesar de Singer dar por não resolvido o problema do “livre-arbítrio”, aliás, um problema metafísico, não parece acreditar demasiado que somos “seres morais até ao âmago” e sugere inscrever-se, antes, em um posicionamento que tende a considerar que o “cérebro decidiu” ou “cérebro escolheu”, quando, na perspectiva que subscrevo, quem escolhe e decide é a pessoa, e o motivo que a leva a escolher (uma determinada direcção/orientação/acção) é melhor descrito por esta do que o estabelecimento/apresentação de um conjunto de sinapses como causa da decisão, tal como um alheamento do mundo, eticamente inaceitável, de resto, próprios das distopias mais conhecidas elaboradas na centúria precedente, sustentariam) (?), Garcés, que está bem ciente de falsas respostas [aquilo que assim, aqui, se demanda] como a do “solucionismo” – a delegação das respostas, complexas, do humano às máquinas; o humano poderia, então, ser estúpido que as máquinas resolveriam, simplesmente, por ele, em mais um manifestação de pessimismo antropológico -, atualiza, porém, o diagnóstico do bem conhecido excesso de conhecimento e informação – e consequente dificuldade em o processar, digerir, apropriar de modo sábio (um constrangimento definido, com notável propriedade, desde logo na entrada “Crítica” da Encyclopédie e, desde então, multiplicado infinitas vezes para o nosso tempo) – com que os humanos da terceira década do século XXI se deparam, identificando os males da época na “neutralização da crítica” (actualmente existente): “saturação da atenção [que leva a ansiedade, desorientação e depressão], a segmentação dos públicos, a uniformização das linguagens e a hegemonia do solucionismo” (p.61) [“como podemos seleccionar se não conseguimos prestar atenção a tudo o que nos rodeia? Como discriminar criticamente se não conseguimos processar (digerir) tudo? É óbvio que o aumento exponencial da informação e do conhecimento leva a que uma grande parte deste saber fique por atender”, p.62]. É preciso, assim, “desenvolver uma psicologia e uma política da atenção” - dentro de uma ‘política da atenção’ talvez possamos, de imediato, enquadrar os debates e decisões que têm sucedido/se têm dado acerca do uso dos smartphones na(s) escola(s), por exemplo, ou a regulação dos instrumentos que viciam em redes sociais, em especial os mais jovens, inseridos, naquelas, pelas empresas detentoras das mesmas (instrumentos de viciação, e suas consequências a nível educativo, os quais, estiveram na origem de processos judiciais movidos contra aqueles gigantes tecnológicos detentores das redes sociais, em diferentes países); na psicologia da atenção, Marisa G.Franco, no que aos relacionamentos interpessoais diz respeito, refere que a atenção significa a consciência das “emoções que nos impulsionam a proteger-nos de nós próprios (…) Devemos parar, respirar e olhar para dentro do nosso corpo para perceber onde se manifesta o gatilho (…) Ao localizarmos o gatilho, acalmamo-nos para que possamos atender-lhe em vez de reagir” (Amigos, Talento Intemporal, 2022, p.175) - e, não menos relevante, “voltar a pôr no centro de qualquer debate o estatuto do humano e o seu lugar no mundo e em relação com as existências não humanas” (p.70). Para Garcés, o discurso escutado, em diferentes fóruns sobre educação, de que temos de aprender e prepararmo-nos (na escola) para um futuro que desconhecemos por completo – mais “competências”, mais disposições atitudinais, mais gosto por aprender e abertura (mental/de espírito) e adaptação ao novo do que, propriamente, “conhecimentos” específicos para um mundo que desconhecemos qual será, nomeadamente com a permanente disrupção laboral que a aceleração tecnológica tem introduzido [ainda, aqui, tributários dessa fixação na dimensão laboral, é verdade, ignorando, também, a centralidade do direito ao contentamento intelectual durante, pelo menos um período da vida da pessoa, objecto central do Ensino Superior, lembram-no Feijó e Tamen] -, bem mais do que introduzir o acolhimento da incerteza e da criatividade, o que produz é uma completa “desvinculação entre a acção e as aprendizagens presentes a respeito das suas consequências futuras” (p.69). Ora, “não há uma afirmação mais despótica e terrorífica do que esta” (p.69). [Estaríamos/estaremos a abdicar, porventura, também aqui, de assumir qualquer capacidade de configurar um futuro desejável, reagindo-se, em exclusivo, ao que vier (?); a dada altura perdendo, até, a noção de como funciona a IA, novo factor disruptivo das nossas sociedades, como assinala o Prof. Rui Nunes].
Como já não é possível progredirmos com noções de nostalgia das Humanidades – e as pessoas nem sequer perderam o desejo de sentido, destaca a académica; “as Humanidades não são um conjunto de disciplinas em extinção, mas um campo de batalha onde se decide o sentido e o valor da experiência humana” (p.72) – ou com a ilusão técnico-utópica como sucedendo aquela [o solucionismo], na medida em que a escola deixa, hoje, de ser pensada enquanto “projecto cultural e político do Estado-nação” e “passa a ser concebido como um elemento promotor do mercado competitivo de talentos, competências e patentes”, no integrum letras-ciências-saberes que melhorem a vida do (e o) humano – num tempo de “universalidade sem igualdade” na educação – “a escola do futuro já começou a construir-se e não está a ser pensada pelos estados ou pelas comunidades, mas pelas grandes empresas de comunicação e pelos bancos. Não tem paredes nem muros, mas plataformas online e professores durante vinte e quatro horas. Não lhe será necessário ser excludente, porque será individualizadora de talentos e de percursos de vida e de aprendizagem. Praticará a universalidade sem igualdade” (p.79), ali onde se desenvolve “uma inteligência aquém e além da consciência humana” (“internet das coisas, fabrico inteligente, engenharia genética, big data, continuidade biológico-físico-digital”, quarta revolução industrial que significa, e entre outros, “tornar a inteligência uma força produtiva”) -, e em que, no limite, nos questionamos “que países, que instituições, que empresa e que pessoas, individualmente selecionadas segundo os seus talentos? E quais serão excluídas e reduzidas a força bruta ou a excedente humano?”, estando em jogo o “sentido da dignidade e da liberdade humanas na sua condição de universais recíprocos a elaborar de forma partilhada” (p.88) não mais é possível separar as “Humanidades” do “estômago”, pelo que Martha Nussbaum (“Sem fins de lucro. Porque a democracia precisa das Humanidades”, Edições 70, 2019) ou Nuccio Ordine (“A utilidade do inútil”, Faktoria K, 2016), os quais (autores e respectivas obras vindas de identificar) Garcés cita expressamente, ficariam superadas (“são ainda visões idealistas (…) [próprias de quem] podia separar aquilo com que alimentava o estômago daquilo com que alimentava o espírito”, p.89).
Humanidades em transição significa, em definitivo, que o estatuto do humano está em disputa, em uma época na qual se assiste à “desinstitucionalização das humanidades”, a qual importa averiguar/avaliar em toda a sua extensão – “pessoas que deixam a universidade ou a carreira porque não lhe encontram sentido; investigadores que abandonam a investigação, porque não suportam mais humilhações; artistas que fogem dos mercados dos projectos e que partilham as suas criações por outros canais; professores que optam por projectos educativos alternativos…”.
Pedro Miranda
[1]
Leio,
sobretudo, esta mencionada obrigação,
como exortação, como chamamento a uma mobilização conjunta para um trabalho
pela melhoria das condições de vida das pessoas. Sem deixar de respeitar,
profundamente, os que, como, exemplarmente, Jean Améry, em circunstâncias de
vida de confronto com um mal extremo (ou, segundo o próprio, radical), não puderam mais aceitar um princípio esperança [cf. Além
do crime e castigo. Tentativas de superação, Contraponto, 2013, p.77].
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