"PARA ALÉM DE CRIME E CASTIGO. TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO", DE JEAN AMÉRY

 
Para além de crime e castigo. Tentativas de superação, de Jean Améry

Em cinco ensaios autobiográficos – Na fronteira do espírito, A tortura, Até que ponto precisamos da terra natal, Ressentimentos e Sobre a obrigação e a impossibilidade de ser judeu -, Jean Améry, o intelectual céptico cativo em Auschwitz, dá corpo a Jenseits der Schuld und der Suhne. Bewaltigungsversuche eines Uberwaltigten, um título, publicado originalmente em 1966 e com reedição em 1977, que constitui, nas palavras da tradutora Marijane Lisboa, “um desafio insuperável à tradução”  – “há nele uma referência a Crime e castigo, de Dostoievsky, para indicar que o autor pretendia ir além de um discussão jurídica ou política, mas também há um subtítulo que recorre ao termo usado na Alemanha do pós-guerra – Bewaltigung – para indicar que já se considerava encerrada a necessidade de lidar com o passado nazi”, mas, fundamentalmente, e no dizer de uma grande estudiosa do problema do mal, Susan Neiman, trata-se de um volume que “é talvez o mais contundente confronto com o Holocausto alguma vez escrito” .
 
Jean Améry, nascido Hans Meier, em 1912, em Viena, no seio de uma família judia assimilada, recebe uma educação católica e passa a infância em Bad Ischl, pequena localidade situada nos Alpes. A sua língua materna é o dialeto alemão local. Só aos 19 anos descobrirá a existência do iídiche falado pelos seus ancestrais judeus. O pai, comerciante, morrerá, na I Guerra Mundial, aos 34 anos; a mãe, então com fortes dificuldades financeiras, regressa a Viena. Hans publica os seus primeiros relatos e poemas aos 16 anos. Sobrevive tocando piano, em bares, à noite, enquanto frequenta círculos literários com nomes cimeiros das letras alemãs. A sua obra Os náufragos será elogiada por Thomas Mann e Robert Musil. Participa de uma fracassada revolução operária em Viena, em 1934, um ano após Hitler ascender ao poder na Alemanha. Contrariando a vontade materna, casa-se com Regine, que integrava uma família de judeus ortodoxos. Com a Anexação (Anschluss) da Áustria, em 1938, pela Alemanha nazi, Hans iniciará uma viagem sem retorno que desembocará em Antuérpia, tendo, então, que cortar com as suas raízes, passando a chamar-se Jean Améry, intelectual nómada que ganha a vida como professor de línguas. Em 1940, com as tropas alemãs a invadirem a Bélgica, é preso, mas conseguirá fugir – até ser recapturado. A uma segunda fuga, uma sucessiva prisão, a 23 de Julho de 1943, enviado, então, o recluso, para o Forte de Breendonk. Identificado como judeu, será colocado em Auschwitz. Com a aproximação das tropas aliadas, passará por Buchenwald e Bergen-Belsen. A 15 de Abril de 1945, será neste (último) lager que será libertado pelo Exército Inglês. Tinha passado 642 dias em campos de concentração. Posteriormente, já em Bruxelas, fará carreira como crítico de cinema, crítico literário, escritor, colaborador na televisão e rádio: “toda a sua obra ensaística, escrita no pós-guerra, é um esforço para compreender as experiências extremas que reduzem o sujeito ao nada e ao silêncio” (p.13).
No Prefácio à edição de 1977 de Para além de crime e castigo. Tentativas de superação, um ano antes do seu suicídio, Améry, desafiando qualquer catecismo escolar, dava conta daquela que era (é?) a incapacidade de compreensão [os limites da ratio] da/para a Shoah – por exemplo, “não passam de argumentos pueris o Tratado de Versalhes, a crise económica e a miséria, que teriam conduzido o povo ao nazismo” -, afirmando que “é absurdo dizer que aquilo que pode ser resumido simbolicamente sob os nomes de Auschwitz e Treblinka já se encontrava presente na história espiritual alemã desde Lutero, passando por Kleist até a ‘revolução conservadora’, chegando finalmente a Heidegger – ou seja, discorrer sobre um ‘carácter nacional alemão”, da mesma forma que o problema do desemprego “também esteve presente em outros países após a crise de 1929, entre eles os Estados Unidos, e nem por isso produziu-se ali um Hitler, e sim um Franklin Roosevelt”; para compreender esses factos, “ajuda ainda menos dizer que o fascismo foi a forma mais extrema de ‘capitalismo tardio’”. Numa palavra, “todas as tentativas de explicação, em grande parte monocausais, fracassam ridiculamente”. Para Améry, contrariando Hannah Arendt, o mal, na Alemanha nazi, não só foi extremo como radical (permanecendo, aliás, sem par) e se “de um lado, não há nada que explique a [sua] irrupção (…) na Alemanha e, de outro, a lógica interna e a maldita racionalidade desse mal permanecem únicas e irredutíveis – apesar do Chile, do Brasil, apesar da brutal evacuação forçada de Phnom-Penh, apesar do assassinato de cerca de um milhão de ‘comunistas’ indonésios depois da queda de Sukarno, apesar dos crimes de Estaline e dos coronéis gregos -, seguimos diante de um obscuro enigma (…) Nasceram como que por geração espontânea, fruto antinatural de um útero que os deu à luz. Todas as tentativas de explicações económicas, todas as teses baseadas em causalidades únicas, como a de que o capital industrial alemão financiou Hitler porque temia perder privilégios, não significam nada para a testemunha ocular. O mesmo ocorre com as especulações sofisticadas sobre a dialéctica do Esclarecimento”.
 
1.A bofetada (no campo de captura [Auffanglager]). Se, seguindo o currículo escolar, quase inevitavelmente nos interrogamos, situados no dobrar de sinos do final de 30 do século XX e na meia década seguinte, sobre o que faríamos confrontados com o derradeiro, é, porque, talvez sem disso nos apercebermos completamente, intuamos  - sem que algum dia o possamos saber ou disso falar com completa propriedade e, mais importante, legitimidade - adstrita a quem o vivenciou -, logo ali, que por debaixo do véu codificado, da vida que (por agora) nos poupa civilizadamente, o vidro partido nos colocaria/pode colocar sobre a nua realidade ou acontecimento (“a chamada realidade quotidiana, mesmo na vivência imediata, não passa de uma abstracção codificada. Na vida, só em raros momentos nos encontramos frente a frente com o acontecimento e a realidade”, p.59, escreve Jean Améry, sobre a tortura por que passou em Breendonk, campo nazi belga, situado entre Bruxelas e Antuérpia, quando capturado, em Julho de 1943, a distribuir panfletos anti-nazis). Se ao choro do bebé o leite materno vem acudir; se à doença, mesmo no campo mais fundo, corresponderá o amparo da Cruz Vermelha, a ausência de qualquer ajuda, violando todos os contratos sociais, os escritos e os não escritos, à primeira bofetada do polícia que pretende arrancar informações - “embora as simples bofetadas, que de facto não podem ser comparadas à tortura propriamente dita, não provoquem nenhuma reacção no público, a sua experiência marca profundamente aqueles que as sofrem. (…). É uma experiência espantosa. A primeira bofetada torna o preso consciente do seu desamparo e já contém em germe tudo o que ele sofrerá mais tarde (…). Podem bater-me no rosto, percebe a vítima em mudo espanto e, finalmente, em certeza silenciosa: farão comigo o que quiserem. Lá fora ninguém sabe o que acontece aqui e não há ninguém que possa defender-me”, p.60 - em interrogatório no qual, afinal e em rigor, a tortura desde logo se subsume naquela pancada dirigida ao rosto, significará, para quem a sente até ao osso, o fim da confiança no mundo, uma certa forma de aniquilação (“Estou certo de que, com a primeira bofetada, somos privados de algo que poderíamos chamar provisoriamente de ‘confiança no mundo’ [p.61] Confiança no mundo: “é a certeza de que os outros, com base nos contratos sociais, escritos e não escritos, me pouparão, ou seja, que respeitarão a minha existência física e, por isso, a minha existência metafísica. As fronteiras do meu corpo são as fronteiras do meu Eu. A superfície da minha pele isola-me do mundo externo: para manter a confiança no mundo preciso sentir na minha pele somente aquilo que desejo sentir. Essa confiança desaba com a primeira bofetada. O outro, contra quem me encontro fisicamente no mundo e com quem posso conviver desde que não transgrida a fronteira da superfície da minha pele, impõe-me a sua própria corporalidade com a bofetada. Ele apossa-se de mim e, com isso, aniquila-me. É como uma violação, um acto sexual sem consentimento por parte de um dos parceiros [p.61]. Se não podemos esperar nenhuma ajuda, a violação física por [parte de] outro converte-se em uma forma consumada de aniquilação existencial (…) A expectativa de ajuda é um elemento constitutivo da psique, tanto quanto a luta pela existência (…). Em quase todas as situações existenciais, o dano físico é acompanhado da expectativa de uma ajuda externa que o compensa.  Porém, com o primeiro murro do polícia, contra o qual não há defesa possível e que nenhuma outra mão irá amparar, terminou uma parte da nossa vida, que nunca mais voltará” [p.62]).
Para Améry, tornou-se claro que a tortura não era um elemento acidental, mas, ao invés, um domínio essencial do Terceiro Reich (“na tortura, o Terceiro Reich realizava-se em toda a plenitude”, p.64), sendo, esta, “o acontecimento mais terrível que um ser humano pode carregar consigo” (p.54).
 
2.A retirada da nacionalidade, a expulsão do Heimat, a pilhagem de um nome de um passaporte, a expropriação de uma língua, de um passado, numa palavra, a destruição de uma identidade. Não sabíamos mais quem éramos, sentencia Jean Améry, nascido, em Viena, em 1912, Hans Maier, explicando e reflectindo sobre o que lhe sucedeu (bem como a milhões de judeus em idêntica situação, nomeadamente os que não possuíam fama e dinheiro como alternativo, ou o possível, abrigo): não tinha nenhum passado, nenhum passaporte, nenhuma história. Foi-lhe(s) suprimida a paisagem, apagado o bosque, terminado o emprego, extirpada a silhueta da Igreja da Primeira Comunhão, despojado dos amigos, vizinhos, colegas, professores – que se tornaram, ademais, denunciantes -, da cidade: “A minha identidade estava atrelada a um nome tipicamente alemão e também ao dialecto da minha terra natal. Eu havia decidido nunca mais falar nesse dialecto desde o dia em que um decreto oficial me proibiu de usar o traje regional que vesti desde a primeira infância. Tampouco tinha mais sentido o nome com o qual os meus amigos me chamavam, pronunciado com o nome próprio da região. Ele fora incluído no registo de estrangeiros indesejáveis na prefeitura de Antuérpia, onde os funcionários flamengos o pronunciavam de modo estranho, quase irreconhecível. E também haviam desaparecido os amigos com os quais eu conversava no dialecto local. Somente eles? Não. Tudo, tudo o que fora parte da minha consciência, desde a história do meu país, que não era mais meu, até as paisagens cujas lembranças eu tratava de recalcar: tudo isso se tornou insuportável para mim (…) quando a bandeira vermelho-sangue com a aranha negra sobre o fundo branco foi posta a tremular até nas janelas dos lares camponeses mais distantes. Eu era um homem que não podia mais falar [em] “nós” e só por hábito continuava a dizer “eu”, embora sem o sentimento de estar em plena posse de mim mesmo (…) Só havia uma árvore genealógica composta por tristes cavaleiros sem terra, vítimas de anátema. A cidadania foi-lhes roubada em seguida. Eu tinha que carregar as suas sombras comigo, no exílio” (pp.82/83).
De uma banda, a afeição à sonoridade do dialecto natal escutado, agora, no estrangeiro – bebido no berço; doutra, o dialecto que não poderia ser tomado em forma de um “nós” de que fora desapossado; num momento, o apego à língua e paisagem que o formaram; no segundo seguinte, o ódio à linguagem e paisagem (de) que o expulsaram (de si mesmo: “tudo o que nos ligava a essa terra havia sido um equívoco existencial”, assenta, com irónica amargura), as quais (o) condenam, pura e simplesmente, à morte (quem perde a terra natal, perde-se para sempre; conhecer é, também, reconhecer-se – saber/poder ler/interpretar/compreender devidamente vozes, posturas, rostos, vestimentas, o que não sucedia com Améry na Bélgica; precisamos de uma terra natal para que possamos prescindir dela; terra natal é segurança - e quando ensaia, em termos autobiográficos, o antigo prisioneiro em Auschwitz leva, já, “27 anos de exílio nas costas” - “o ódio à pátria, associado ao ódio a nós mesmos, doía, mas alcançava o paroxismo quando, em meio ao trabalho penoso de autodestruição, emergia a tradicional saudade para reclamar a sua parte. Aquilo que desejávamos odiar e que era nosso dever social odiar erguia-se de repente diante de nós, exigindo amor, em um estado neurótico que nenhuma psicanálise seria capaz de curar”, p.93 – interrogando-se, porém, e em última instância, paradoxalmente, sobre se o heimat, nos termos de uma sociedade industrial como a, na sua máxima potência, concluída, não passaria a uma relíquia do passado – “veremos”, responde e regista sem certezas, apesar de, como vimos, e no que à experiência que suportara o heimat se afirmasse como elemento nuclear, indispensável e insubstituível). E, antes da morte prometida, o caos, o desconcerto, a desorientação (há, além do lado material, uma “perda de um património espiritual” – em particular, o das letras, da grande poesia alemã - que pode levar à “devastação completa”). E, de resto, questão fundamental aqui, o que significava, realmente, ser judeu e como Jean Améry se relaciona com tal identidade? “Se ser judeu significa compartilhar com outros judeus um credo religioso e tradições culturais e familiares judaicas, além de defender um ideal nacional judaico, então estou em situação desesperadora. Não acredito no Deus de Israel. Sei muito pouco sobre a cultura judaica. Revejo-me, menino, patinando na neve a caminho da Missa do Galo no Natal, mas não me vejo em nenhuma sinagoga. Ouço minha mãe invocar Jesus, Maria e José quando acontecia qualquer pequena desgraça doméstica; não me recordo de nenhuma invocação hebraica ao Senhor. O retrato de meu pai (…) não mostrava um sábio judeu barbudo, mas um caçador tirolês no uniforme da Primeira Guerra Mundial. Eu tinha dezanove anos quando tomei conhecimento de que existia uma língua iídiche, embora soubesse perfeitamente que meus vizinhos consideravam minha família, de múltiplas origens religiosas e étnicas, como judia” (p.134). Seriam as Leis de Nuremberga a tornar Hans impreterivelmente judeu, a fazer de características étnicas o motivo, a descriminar e condená-lo à morte: “Quando terminei de ler as leis de Nuremberga, eu não era mais judeu do que antes. Meus traços fisionómicos não se haviam tornado mais mediterrâneos e semíticos, meu universo associativo não se enchera de referências hebraicas, a árvore de Natal não se transformara magicamente em um candelabro de sete braços. Se havia algum sentido concreto na condenação que me havia sido imposta pela sociedade, era o de que, daquele momento em diante, eu estava condenado à morte. À morte. É claro que todos estamos destinados à morte, cedo ou tarde. Mas, para o judeu que eu me havia tornado naquele momento, por decisão de uma lei e de uma sociedade, eu já estava prometido ainda no meio da vida. Todos os meus dias passaram a ser um estado de desgraça provisório que podia ser revogado a qualquer momento (…) A partir dali ser judeu significou ser um morto a quem provisoriamente se permitia que ainda vivesse, alguém destinado a ser morto e que só por acaso ainda não estava onde devia estar (…). Éramos vagabundos, maus e feios; só éramos capazes de fazer o mal e espertos somente para enganar os demais. Éramos incapazes de criar um Estado, mas tampouco nos dispúnhamos a ser assimilados pelos povos que nos acolhiam. Nossos corpos, peludos e gordurosos, de pernas tortas, com sua simples presença infectavam os banhos públicos e até os bancos dos parques. Nossas feições abomináveis, enfeiadas por orelhas salientes e narizes aduncos, provocavam asco nos concidadãos de ontem. Não éramos dignos de amor. Tampouco dignos de viver. Nosso único direito, nosso único dever era encarregar-nos da nossa eliminação da face da Terra (p.136) (…). Os judeus que se odiavam a si mesmos acreditavam ser incapazes de adquirir a identidade que desejavam – a identidade alemã – e por isso passavam a desprezar-se” (p.139).
 
Em Ressentimentos, Améry, que não pretende livrar-se dos seus em favor de uma virtude a que não adere, não se furta à indagação de uma alemã culpa coletiva, assinalando que nas suas “estatísticas sem cifras” (ou seja, um acontecimento que não se deixa buscar pela lente do quantitativo) foram muito poucos os alemães que recusaram o nazismo – ainda que, por isso mesmo, guarde e conserve entre os seus afectos predilectos os tidos por aqueles alemães, cujos nomes próprios sabe de cor e se exige apor nestas reflexões, que agiram bem; mais, houvesse eleições em 1943, na Alemanha, Hitler teria sido sufragado inequivocamente: “Culpa coletiva. Um absurdo completo, é claro, caso isso suponha que a comunidade dos alemães teve uma consciência comum, uma vontade comum e a mesma capacidade de agir, e por isso se tornou coletivamente culpada. Mas é uma hipótese aceitável, caso entendamos por esse termo a soma dos comportamentos culpáveis individuais, manifestada objetivamente. Então, a culpa de cada alemão particular – responsável pelas suas acções e omissões, pelas suas palavras e silêncios – transforma-se na culpa global de um povo (…). Ninguém pode determinar exatamente quantos alemães estavam a par dos crimes do nazismo, os aprovaram e até os cometeram, ou então, impotentes, toleraram com relutância que eles fossem perpetrados em seu nome. Mas cada uma das vítimas realizou a sua própria experiência estatística, ainda que ela fosse apenas aproximada e inexprimível em números, pois naqueles anos cruciais vivíamos no meio do povo alemão, quer na ilegalidade, sob ocupação alemã no exterior, quer na própria Alemanha, trabalhando em fábricas ou prisioneiros em masmorras e campos de concentração. Por isso, posso afirmar que os crimes do regime se revelaram como actos coletivos. Os poucos que se distanciaram do Terceiro Reich, ainda que apenas se calando, lançando um olhar de ódio a Rakas, o SS-Rapportfuhrer, dirigindo-nos um sorriso compassivo ou baixando os olhos em sinal de vergonha, esses poucos não foram suficientemente numerosos para compensar a balança na minha estatística sem cifras. Eu não esqueci nada. Tampouco esqueci os poucos homens corajosos que encontrei. Estão comigo: Herbert Karp, o soldado inválido de Danzig que compartilhou comigo o último cigarro em Auschwitz-Monowitz; Willy Schneider, o operário católico de Essen que se dirigia a mim usando o meu já quase esquecido nome de baptismo e me ofereceu pão; Matthaus, o engenheiro químico que em 6 de Junho de 1944, com um suspiro atormentado, me disse: “Finalmente, desembarcaram! Mas será que aguentamos até à vitória?”. Não me faltaram bons companheiros. Ali estava o soldado alemão, de Munique, que depois da tortura em Breendonk me atirou um cigarro aceso por entre as grades da cela. Ali estava Elsner, o cavalheiresco engenheiro báltico, o técnico de Graz, cujo nome já não recordo, que me salvou da morte quando carregávamos cabos em Buchenwald-Dora. Às vezes, aflijo-me pensando em qual terá sido o seu destino, que provavelmente não foi bom” (pp.121-122).
Todavia, “os homens corajosos que eu gostaria de ter salvado já submergiram na massa dos indiferentes, dos maldosos e dos desprezíveis, das megeras, velhas gordas ou jovens esbeltas, dos indivíduos ébrios de autoridade que acreditavam cometer um crime não só contra o Estado, mas contra si próprios, caso não gritassem connosco. O grupo dos muitos não era constituído por SS, mas por operários, arquivistas, técnicos, dactilógrafas – e só uma minoria deles trazia a insígnia do partido. Tomados em conjunto, eram para mim o povo alemão. Sabiam muito bem o que acontecia ao redor e connosco, pois também sentiam o cheiro de carne queimada que vinha dos campos e extermínio nas proximidades. Alguns usavam roupas que na véspera vestiam vítimas recém-chegadas à rampa de selecção. Certo dia, um trabalhador mais esperto que os outros, o chefe de montagem Pfeiffer, mostrou-me orgulhoso um casaco de inverno – “casaco de judeu”, segundo ele – que havia obtido. Eles achavam que tudo estava em perfeita ordem. Teriam votado em Hitler e em seus cúmplices se houvesse eleições em 1943. Operários, pequeno-burgueses, académicos, da Baviera, do Sarre, da Saxónia: nada fazia diferença. A vítima via-se obrigada a crer, quisesse ou não, que Hitler realmente encarnava o povo alemão” (pp.122-123).
Se as novas gerações alemãs querem nada a ter a ver com o passado recente, então, e em simultâneo, não invoquem, como vêm a invocar, a autoridade de Goethe ou von Stein; é que não se pode “reivindicar a tradição nacional quando ela é honrosa e negá-la quando, encarnando a perda de qualquer sentido de dignidade, extermina um adversário talvez imaginário e certamente indefeso” (p.125). Dos políticos alemães que irão ser dirigentes no novo regime, pós-Queda do III Reich, poucos aqueles que haviam militado na Resistência; os judeus, mesmo no pós-II Guerra Mundial, serão rejeitados (em vários lugares e países - nomeadamente, na Alemanha); os seus cemitérios serão profanados e, na linha dos progrom do recente século XIX (para nos ficarmos pela centúria mais próxima, e, uma vez mais, em diferentes países), Améry dirá que a hierarquia nazi nos campos replica a existente no mundo (“No campo, mas também entre os chamados trabalhadores livres nas frentes de trabalho, reinava uma rígida hierarquia étnica imposta pelos nazis. Os Reichsdeutscher, alemães do Reich, valiam mais que os Volksdeutscher, os alemães nascidos em outros países. Um belga flamengo valia mais do que um belga valão. Um ucraniano procedente da Polónia ocupada tinha um nível superior a um compatriota polaco. Um operário procedente do Leste Europeu era menos considerado do que um trabalhador italiano. No nível mais baixo da hierarquia estavam os presos do campo de concentração. Entre eles, na posição mais inferior, os judeus. O pior criminoso profissional não judeu era superior a nós. Os polacos desprezavam-nos unanimemente, fossem combatentes autênticos pela liberdade (…) ou pequenos batedores de carteira. O mesmo valia para os trabalhares semianalfabetos da Bielorrúsia. E também para os franceses. Ainda ouço a discussão entre um trabalhador livre francês e um prisioneiro judeu francês no campo de concentração: ‘Eu sou francês’, disse o prisioneiro. ‘Você, francês? Você é judeu, meu caro’, respondeu o seu compatriota, em um tom neutro e desprovido de hostilidade. Ele havia aprendido a lição que os donos da Europa lhe haviam ensinado. Repito: o mundo, tanto o microcosmo concentracionário quanto o macrocosmo exterior, estava de acordo com o lugar que os alemães haviam designado para nós. Era raro ocorrer algum protesto quando vinham prender-nos à noite em nossas casas, em Viena, Berlim, Amesterdão, Paris ou Bruxelas”, pp.140-141)…O mundo que quer esquecer a Shoah, o mundo que quer cada vez menos falar em arrependimento, o mundo que pela voz arrogante jovem diz que chega de falar no extermínio de milhões de humanos…”Às vezes, tem-se a impressão de que Hitler triunfou postumamente” …
 
3.A voz de Hans Meier, Jean Améry, é a do intelectual agnóstico (que,  no contexto destes escritos, equivale a ateu), que confessa, relativamente à primeira destas das dimensões – a do intelectual, em Auschwitz – que se encontrava, dada a sua natureza, especialmente indefeso: sem a utilidade (do ofício) de um serralheiro, electricista, marceneiro, carpinteiro, canalizador, o intelectual, as mais das vezes, pertencia ao “lumpemproletariado do campo: era destinado a uma equipa de trabalho na qual cavava terra, colocava cabos, transportava sacos de cimento ou carregava trilhos de comboio. No campo, ele transformava-se em trabalhador não qualificado que trabalhava ao ar livre, o que, na maioria das vezes, correspondia a uma sentença de morte”. Se fosse intelectual, mas com habilidade manual, o prisioneiro apresentava-se como artesão; se fosse professor universitário, mas esse facto não fosse conhecido, apresentava-se como professor primário para evitar a ira dos SS ou dos Kapos. Como o lager demandasse grande agilidade corporal e extrema coragem física e o intelectual, por norma, não abundasse nessas duas qualidades, a sua situação era, ainda, mais difícil. O mesmo sucedia quanto ao âmbito da disciplina, “os que lá fora exerciam profissões intelectuais não tinham talento para ‘arrumar a cama’. Lembro-me de camaradas formados e cultos que, todas as manhãs, suavam para arrumar o colchão de palha e o cobertor, sem consegui-lo adequadamente” (p.31). Não acertavam com o tom submisso, mas autoconsciente (para com os guardas) com que podiam evitar um castigo. Não conseguiam usar com desembaraço a gíria do campo (demasiado rude e básica para os seus hábitos e modos), forma de entendimento comum (naquele lugar). Se em Dachau lideravam prisioneiros políticos, em Auschwitz eram criminosos comuns quem mandava. Não havia, neste último campo de concentração e extermínio, condições para opor aos kapos uma estrutura espiritual, considera Améry, especificando que, ao contrário de Nico Rost, não lhe passaram pela cabeça grandes elocubrações sobre Herder, no campo. Em termos psicológicos, essa espiritualidade era, aliás, irreal; ao nível sociológico, um luxo proibido. O hábito de questionar o quotidiano, ao longo dos anos, impedia o intelectual de se adaptar ao lager. Durante os primeiros tempos, os intelectuais quiseram acreditar que o que não podia acontecer, não aconteceria. Mas apenas nos primeiros tempos aderiram a essa sabedoria dos loucos. Depois, Améry viu no “progresso uma crença ingénua da humanidade” e no direito natural algo inexistente – os alemães, ali, eram mais fortes e isso, por si só, para aqueles, justificava destruírem o mais fraco (para assim se realizarem). Os intelectuais, ademais, não se vergavam à disciplina dos verdugos como o fazia o homem comum e também isso lhes trazia adicionais tormentos.
Améry abre importante parêntesis: no campo, fossem ideólogos ou teólogos, economistas ou camponeses incultos, as convicções fortes de um conjunto de homens “proporcionava-lhes um sólido ponto de apoio com o qual enfrentavam espiritualmente o Estado das SS” (enquanto, por contraposição, os literatos prescindiam ou viam fraqueza nos seus deuses romancistas, filósofos ou poetas que, ali, pelo menos no caso do nosso autor, não lhe forneciam adicional força). Quanto aqueles de convicções arreigadas e imprescritíveis, os “crentes” “realizavam missas nas circunstâncias mais difíceis” e “os judeus ortodoxos, apesar de viverem sob o castigo da fome, jejuavam no Yom Kippur” (p.42). Para quem tinha uma fé ou uma ideologia fortes, portanto, os acontecimentos no campo pouco surpreendiam: “a explicação para a crueldade de Auschwitz e para os seus sofrimentos era o facto de o Homem se ter afastado de Deus, diziam os crentes judeus e cristãos. Para os marxistas, era inevitável que o capitalismo, tendo atingido o último estágio fascista, barbarizasse a humanidade” (p.43). A conclusão do homem que não tinha fé nem era marxista, como era o caso de Jean Améry, era a de que “o homem crente, em sentido amplo, quer tenha a sua fé um fundamento metafísico ou imanente, supera-se a si mesmo. Não é prisioneiro da sua individualidade. Pertence a um continuum espiritual que não é interrompido em nenhum lugar, nem mesmo em Auschwitz. É mais alienado da realidade e, ao mesmo tempo, mais próximo dela do que os seus companheiros sem fé. Mais alienado no sentido em que, pela sua postura finalística, ignora o conteúdo real das coias e fixa a mirada num futuro mais ou menos longínquo. Mais próximo da realidade porque, por isso, não se deixa abater pelas circunstâncias do entorno e consegue reagir a elas de forma mais eficiente” (p.44).
Os crentes (em sentido amplo) olhavam Améry por cima do ombro, embora os que possuíam fé o fizessem com “indulgência e bondade” – aqui, a sua educação e inteligência não servem, mas no fim dos tempos o Deus em que acredito fará justiça – e outros com irritação – seu medricas, cheio de medo; a nós, mesmo que nos matem, sabemos que no fim será a nossa ideologia a triunfar.
Esta postura impressionava, apesar de suporem o conteúdo daquelas crenças diversas “uma ilusão”, de sobremaneira os intelectuais cépticos, ainda que os casos de conversão destes, nos campos de concentração e extermínio, fossem escassos; como poucos, curiosamente, foram aqueles que, ainda que nas circunstâncias mais extremas, se suicidaram, quando atirar-se para o arame farpado electrificado a isso conduziria com certa facilidade (e talvez pudesse ser o esperado por muitos, atendendo às condições em que se sobrevivia em Auschwitz).
Finalmente, indagação última, o que se aprendeu em Auschwitz, o que retiraram, enquanto possível sabedoria, os que padeceram daquela crueldade bárbara, do sofrimento atroz, e (sobre)viveram para contá-lo? Nada, responde Améry, em primeira instância, recusando, diríamos, a perversão de consentir a Auschwitz constituir-se como lugar do qual se sairia mais sábio, ao mesmo tempo que se evita uma abordagem moralista de um sofrimento (necessariamente acoplado a mais sabedoria e “humanismo”, que como veremos de imediato o autor nega); diversamente, Améry acusa Auschwitz de o ter privado da crença na dignidade da pessoa (ou, pelo menos, de a ter colocado em causa) e, outrossim, ensinado que todas as construções/elaborações da mente humana nada puderam contra aquele lugar de ignomínia; para Améry, em definitivo, o humano é, apenas, Homines Ludentes: “O que aprendeu? Que património espiritual preserva do tempo que passou no campo? (…) Não nos tornamos mais sábios em Auschwitz, se é que por sabedoria entendemos um saber positivo sobre o mundo; tudo o que aprendemos lá dentro poderia ser aprendido cá fora; nada daquilo se tornou um guia prático para nós. Tampouco nos tornamos “mais profundos” no campo, supondo-se que a profundidade fatal constitua uma dimensão intelectual passível de definição. Creio ser medianamente compreensível que não saímos de Auschwitz melhores, nem mais humanos, nem mais altruístas, nem mais maduros do ponto de vista moral. Não se assiste ao homem desumanizado, desempenhando actos atrozes, sem que se ponham em dúvida todas as concepções sobre a dignidade inata do ser humano”. Ao contrário de outros que necessitaram de décadas, ou até de séculos para perder as ilusões nos em certas alegrias intelectuais agora vistas (por si) como “infantis” ou determinadas “arrogâncias” ou “petulâncias metafísicas”, o sobrevivente de Auschwitz regressou do puro terror convencido de que não mais é do que um membro dos Homines ludentes.

Pedro Miranda




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