RUI VILAR E A HISTÓRIA PORTUGUESA DOS ÚLTIMOS 60 ANOS
Emílio Rui Vilar, Memórias de Dois Regimes
Esta alusão à tertúlia cultural como que nos remeteu, de algum modo e em pequeno tom, à turma de Stefan Zweig, em O mundo de ontem (Assírio e Alvim, 2014), mas, mais ainda, atirou-nos (h)à sempre possibilidade outra – face à mais rotineira – de viver a escola e a adolescência/juventude. Neste contexto (de alargamento de possibilidades de ser), Maria de Lourdes Pintasilgo, em notável testemunho em entrevista a Maria João Avillez, pelos 20 anos do 25 de Abril, em livro reeditado agora pelo Público (Do fundo da Revolução, 2024), retratada, de modo reiterado, por Emílio Rui Vilar, como “a mais idealista” (além de “admiradora de Melo Antunes” e “grande defensora do relacionamento com o terceiro mundo”) das presenças no Conselho de Ministros nos Governos Provisórios nos quais ambos tiveram lugar (e uma das três pessoas escolhidas para a concepção/elaboração do Plano Económico Social ou Plano Melo Antunes, documento de grande relevo para o país, nos Governos Provisórios) fará questão de referir como a sua escolha do curso a prosseguir teve uma motivação de matriz religiosa-cristã – “para instaurar novas relações sociais e ir ao encontro dos mais carenciados ou marginalizados (…) O apelo veio justamente desse interesse pela realidade do mundo industrial e das pessoas que nele viviam. Fui também muito influenciada pelos ideais vividos no interior da Igreja Católica, em particular pela experiência dos padres operários em França, e pela própria experiência da filósofa Simone Weil” (p.210) -, quer dizer, nem sempre apenas a sobrevivência, a vida nua, ou um estatuto; um pluralismo de motivações de opções (de vida, nas escolhas a cursar inscritas) se deixa, aqui, entrever e ampliar.
Quando do Porto vai para Coimbra estudar Direito (aulas de 45 minutos, silêncio sepulcral dava para escutar o virar de página do manual/sebenta do docente, em uma prática pedagógica não raro fortemente anquilosada – em Direito rareiam, á época, alunos capazes de concluir tal licenciatura em cinco anos, mas o rapaz vindo do Porto atingirá tal proeza), Rui Vilar integrará uma casa onde estão António Barbosa de Melo ou Mário Pinto. Ali, conhecerá Silva Marques – à época, no PCP, mais tarde dirigente no PSD – ou Nogueira de Brito (que integrara os quadros do Estado Novo e, posteriormente, será deputado pelo CDS). Na Brasileira, existia o grupo da direita e o grupo da esquerda e sabia-se, de antemão, quem se sentava e onde, embora as amizades académicas, felizmente, extravasassem ideologias. Existia, igualmente, o grupo do Le Express e o do Nouvel Observateur (no Porto, Rui Vilar lia o Jornal de Notícias – anúncios e escândalos -, o Comércio do Porto – conservador – e o Primeiro de Janeiro – liberal). Direito votava à direita, Medicina sufragava à esquerda (nomeadamente, nas eleições para a Associação Académica). As paixões e rivalidade Torga-Aquilino, ambos com aspirações ao Nobel da Literatura, preenchiam os arrebatamentos literários da época.
No regresso à Metrópole (após mais de 20 meses no norte de Angola, onde havia guerra, o que o ajudou a conhecer-se melhor, bem como aos outros), a entrevista para emprego, que lhe é feita por Vasco Vieira de Almeida, metade em inglês, metade em francês, e o assistir de perto à fractura social de um Sr. Cupertino de Miranda face aos Espírito Santo.
Quando, depois do 25 de Abril de 1974 - "o que estávamos a fazer era um golpe de estado, um pronunciamento. (...) As massas transformaram um golpe militar clássico - só que, neste caso, de esquerda - num movimento revolucionário", refere Melo Antunes, em entrevista a Maria João Avillez, em Do fundo da Revolução, p.21, acrescentando que "o movimento [golpe que deu origem ao 25 de Abril] desenvolveu-se de forma quase milagrosa, sem contactos com os partidos que existiam clandestinamente (...) Nunca houve uma conspiração com os partidos para desencadear a Revolução, ela foi autónoma e estanque", pp.21-22 -, chega a secretário de Estado, nos Governos Provisórios – e atente-se a que, mesmo no site do Governo, há erros quanto aquela que foi a composição dos primeiros Executivos pós-Estado Novo, a que acrescem os dados errados que podemos consultar, a este propósito também, na Wikipédia (p.212) -, Rui Vilar vai auferir metade do rendimento mensal de que beneficiava no sector privado - da biografia sob a forma de entrevista bem se compreende da inteligência e competências de Emílio Rui Vilar; em todo o caso, não se deixará de sopesar, em simultâneo, quando tantos cargos públicos, e em tão variadas áreas de atividade, desempenhou, e por tantas décadas, na rarefacção de quadros em alguns períodos ou sectores da vida pública portuguesa. Quando entra no Governo, no país não se sabia quantos os desempregados existentes, nem, tão pouco, existia fundo de desemprego: “não esqueçamos que em Portugal nessa altura não havia, sequer, fundo de desemprego. O fundo de desemprego no antigo regime eram as obras públicas e a CP: quando era preciso, faziam-se mais obras públicas e empregava-se mais gente na CP e nas companhias controladas pelo Estado, mas não havia um mecanismo geral que respondesse às pessoas que caíam no desemprego (…) [Não se sabia quantos desempregados havia] Pois não, porque não havia registo” (p.192). Era um tempo em que, nos modelos de gestão, se faria um corte com o fordismo – “A OCDE publica o código de conduta para com as multinacionais, e em [19]73 saiu aquele livro que passou a ser uma bíblia para os gestores, do Schumacher… (…) Small is beautifull: a Study of Economics as if People Mattered, a economia se as pessoas importassem. E também nos países nórdicos, mesmo nas linhas de montagem, por exemplo, da Volvo, havia já o corte com o fordismo. O team work, em que as pessoas passam a ter consciência do que a sua tarefa significa para o resultado final, e não, como no filme de Charlot, estarem apenas a apertar parafusos. Estas ideias naquela época foram muito importantes” (p.195).
E Cunhal, no Governo? “Era tão moderado que, para termos uma ideia, quando chegámos a Dezembro de 1974 e se discutiu se havia ou não festas de Natal nos ministérios, a volta começou pelo lado direito, portanto Vítor Alves, depois Mário Soares e a própria Maria de Lourdes Pintasilgo, que era de certo modo a representante da Igreja Católica no Governo, toda a gente foi mais ou menos contra as festas de Natal. Mas houve alguém que disse que já tinha autorizado as festas, creio que foi o José Augusto Fernandes, o ministro do Equipamento. A discussão chegou praticamente ao fim e o Álvaro Cunhal fez um grande discurso sobre a necessidade de respeitar os costumes e as tradições do povo português…Houve festa de Natal nos ministérios graças à intervenção do Álvaro Cunhal!” (p.212). Até à questão da unicidade sindical, contra a qual Mário Soares se baterá firmemente, Cunhal adoptaria uma posição de “sobriedade, sempre chamando a atenção para a complexidade dos problemas” (não se oporia ao aumento dos preços, quando tal foi discutido no Executivo; um dos preços que aumentou foi, aliás, o do pão, algo em que o Estado Novo não tocara e era sua “coroa de glória”: “o preço do pão, com enormes subsídios do Fundo de Abastecimento, manteve-se estável anos, décadas”, p.247; a inflação, em 1974, era de cerca de 25%) e para a necessidade de se olhar para os diversos ângulos das questões, mas a partir daquela problemática, a partir do 28 de Setembro de 1974, adoptou uma postura diversa. A quando das prisões dos administradores do Banco BPI, Banco Internacional Português, e da Torralta [os alegados “sabotadores da economia”], sem os respectivos mandatos judiciais, Cunhal diz em Conselho de Ministros, de “forma sibilina”: “se esta prisão preocupa alguns, agrada, todavia, a muitos” (p.308). Muito metido consigo, passando Conselhos de Ministros a desenhar (com Almeida Santos a pretender ficar com os desenhos, mas o histórico líder do PCP a não os ceder), com boas relações com Vasco Gonçalves (muito próximo, este, do PCP, alguém que Melo Antunes descreve, em entrevista a Maria João Avillez para O fundo da Revolução, como uma pessoa por quem nutria carinho, mas que pretenderia, em última análise, um regime totalitário para Portugal, o qual era absolutamente incompatível com uma democracia liberal como aquela a que Melo Antunes aspirava; no nosso país não se assistiu, então, a “uma guerra civil quase por milagre”; na madrugada do 25 de Novembro de 1975, Melo Antunes não regista negociações com o PCP, mas anota que o PCP ao ver as forças em presença, quer civis quer militares desistirá da tentativa de tomar o poder nessa data, “tirando o tapete” às “forças anarquistas” envolvidas: “a derrota foi dos sectores anarquizantes e uma machadada forte nos radicais próximos do PC”, p.25 de O fundo da Revolução; no dia seguinte ao 25 de Novembro de 1975, Melo Antunes irá à televisão dizer que o PCP era fundamental à democracia e refere, 20 anos após esse dia, a Avillez, que o fez por a situação ser explosiva e porque o apoio social do PCP era muito considerável, além de entender que seria por meios democráticos que se invalidariam as teses do PCP e não por outras formas – levou, então, muita pancada à direita, mas afirma ter tido a cobertura de Ramalho Eanes, Costa Gomes ou Vasco Lourenço) , ainda que este “sempre duas jardas à frente” em termos revolucionários (Vasco Gonçalves, certo dia, despedir-se-ia de Rui Vilar nos seguintes termos que a história infirmou: “o senhor ministro é uma pessoa muito inteligente, mas a História vencerá”, p.328); Cunhal mantém preocupação e ataca a extrema-esquerda, porque considera que esta, pelos excessos, acaba por fazer o jogo das “forças reaccionárias” e, neste contexto, e ainda que no 25 de Novembro de 1975 hajam sido distribuídas armas por dois partidos (PS e PCP, conquanto nenhum haja decidido, ultima ratio, ponderação de forças, a sua ativação), o PCP será, não raro, o que José Miguel Júdice dirá a Maria João Avillez (Do fundo da Revolução: um partido “conservador”; aliás, segundo Júdice, "[Sá Carneiro] Estava convencido - como muitos, aliás - de que os comunistas eram muito mais perigosos do que depois se percebeu que eram" (p.50) e, bem assim, muito mais preocupado em conseguir que as ex-colónias caíssem para o lado soviético, em plena Guerra Fria (como o também sublinha João Benárd da Costa a Avillez, na obra supra-mencionada). Em Mateus, a 11 de Maio, na apresentação do livro que o biografa, Emídio Rui Vilar aduz: “o PCP estava a sentir-se ultrapassado pelos movimentos da outra esquerda. O PCP odiava os movimentos anarquistas, assumindo [por contraponto] um papel conservador”.
Regressando ao Plano Económico-Social, cuja introdução
foi redigida por Melo Antunes, tenente-coronel, ministro sem pasta no II e III Governos Provisórios e Ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional, inspirador e alma do 25 de Abril para muitos ("mas já agora - de um ponto de vista meramente pessoal -, digo-lhe que estava intimamente convencido de que iríamos ser esmagados", dirá a Maria João Avillez, sobre o golpe para derrubar o Estado Novo, m Do fundo da Revolução, p.24), na ala moderada face à ala radical das Forças Armadas no 25 de Novembro, nela se plasmava que “sem democracia económica e social” a democracia seria “uma utopia” (p.274) – lição, diríamos,
a ser guardada até aos dias de hoje; e agora que tanto se discutem reparações, e em que, de forma
concomitante, reaparecem as questões das dívidas,
e devido tratamento das mesmas, dos países que foram colonizados para com os
países colonizadores, o testemunho de Rui Vilar no imediato pós-25 de Abril: “os dois países que receberam mais
empréstimos foram Moçambique, de longe, e Cabo Verde, mas em termos
quantitativos foi Moçambique. Lembro-me de o Silva Lopes dizer: ‘Nós estamos a
ser mais generosos do que o Banco Mundial, porque o Banco Mundial só empresta
até um por cento do PIB e nós já ultrapassámos dois por cento do PIB de
Moçambique” (p.276). Soares,
quase sempre ausente, no exterior de Portugal enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, do Conselho de Ministro queria resolver o mais rapidamente o problema
da descolonização - "se não estivéssemos a viver uma revolução, teríamos a obrigação - e até as condições - para fazer a descolonização ao ritmo adequado, uma passagem com equilíbrio e estabilidade", dirá Melo Antunes a Maria João Avillez, em Do fundo da Revolução, p.21 - e discordaria de Almeida
Santos quanto a investimentos adicionais nos países que haviam sido
colónias portuguesas. Este era um período da história portuguesa em que,
atente-se no ambiente, Vitor Constâncio
reclamava que o país devia estar “num
lugar geométrico entre a Suécia e a Jugoslávia” (p.279).
Uma das interessantes e muito importantes discussões em Conselho de Ministros - que demoravam muitas horas, votações alínea a alínea vírgula a vírgula dos documentos legislativos que por ali passavam, dirigidas por Vítor Alves e não propriamente, como seria de supor, por Vasco Gonçalves que o presidia, este último muito mais repentista e radicalizado ideologicamente, sendo que, certa vez, pretendia a prisão dos correspondentes estrangeiros em Portugal, por entender que contribuíam para uma imagem negativa do país no exterior - antes de 1975 passou por saber se o MFA deveria integrar a Constituinte – tal agradaria ao PCP, mas possivelmente transformaria Portugal num Estado com um regime que não seria o de uma democracia pluralista, algo que Soares sublinharia. Aquela problemática resolveu-se com o Pacto MFA-Partidos. O país correu o risco de não existirem eleições, recusa do recenseamento oficioso por forças hostis a uma democracia liberal, com apelos, depois, ao voto em branco. Para se legalizar um partido, por esta altura, necessárias eram 5 mil assinaturas. Uma parte do ouro que possuíamos foi, naquele ínterim, transferido para o Porto – as notas de escudo eram fabricadas na Holanda e Inglaterra (hoje, ouro português guardado nos EUA e em Inglaterra).
Pedro Miranda
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