PORTUGAL E A CONSTRUÇÃO EUROPEIA (JOSÉ MEDEIROS FERREIRA)

 
Portugal e a construção europeia: da ignorância cidadã e suas consequências
 
1-Os manuais de História, no terceiro ciclo do ensino básico, altura em que a matéria, pela primeira vez, se nos deparava, a nível escolar, não incluíam, relativamente à I Guerra Mundial, grandes referências, se a memória me não atraiçoa, à participação nacional na mesma. Os grandes factos, as coligações, as principais nações em contenda, as vidas nas trincheiras, o acontecimento que acabou por precipitar o conflito, os vencedores e os vencidos da Guerra, o diferenciado ar do tempo quando principiou e, por outro lado, no momento em se deu o armistício, o Tratado de Versalhes e suas consequências – mas, Portugal ao largo.
Evidentemente, encontrando-se, em outras obras, da historiografia nacional (incluindo outras do mesmo autor), uma descrição detalhada da nossa presença naquele momento crucial do século XX, uma das principais notas acerca da proto-história portuguesa na Europa política – na interpretação genealógica de José Medeiros Ferreira –, a partir de Não há mapa cor-de-rosa. A história mal (dita) da integração europeia é a da identificação da motivação da entrada portuguesa no choque bélico iniciado em 1914: a obtenção de recursos exógenos para o crescimento da economia portuguesa (carenciada de investimentos e de recursos financeiros, bem como de – inexistentes – poupanças; portanto, não tanto, ou quase nada, uma motivação de âmbito colonial). “Portugal ganhava, com a beligerância ao lado dos aliados, o direito a participar na futura Conferência de Paz” (p.21) e, com ela, a prosseguir a esperada recompensa. Portugal, diplomacia económica activa, teria direito a 0,75% das reparações de guerra, a pagar pela Alemanha, aos Aliados (a mesma percentagem, de resto, daquela atribuída ao Japão, Grécia, Roménia e Jugoslávia). Tal percentagem representava, então, um valor de 49,5 milhões de libras, nada menos do que o dobro da dívida de guerra, contraída pelo nosso país, junto do Banco de Inglaterra (p.28). Todavia, esse valor nunca seria, efectivamente, pago – nessa totalidade, com Portugal e Alemanha, posteriormente, a sentarem-se à mesa da arbitragem internacional para definir os montantes em falta, dos germânicos para com os portugueses (após prestações iniciais dos alemães, nomeadamente em mercadorias, dificultando a fixação dos valores monetários nelas contidos).
Concluindo, “o modo como decorreu a execução das reparações e indemnizações de guerra frustrou muitíssimo as esperanças dos que tinham apoiado a entrada de Portugal na Grande Guerra europeia, mais como factor do seu futuro do que como meio facultativo para manter as possessões coloniais que, com excepção da Alemanha, nenhum país europeu então perdeu. A República ficou pois suspensa da possibilidade de contrair mais empréstimos financeiros nas praças estrangeiras, ou de ter de sacrificar o Estado e os portugueses para conseguir equilibrar as contas públicas. Essa alternativa gerou duas mudanças de regime político entre 1926 e 1933” (p.33).
 
2-Outro dos importantes registos de José Medeiros Ferreira, no seu mais recente livro: não há como escamotear a diferente atitude e comportamento da União Europeia antes e depois da Guerra Fria, respectivamente, no que concerne à defesa dos direitos humanos, da justiça e liberdade (com tal empenho a diminuir, claramente, no pós-queda do muro de Berlim, p.129/130). À valorização do determinante contributo democrata-cristão e social-democrata na construção do modelo social europeu, há-de juntar-se, pois, o factor do (medo do) perigo soviético (ou construção/alimentação da identidade ocidental) no erigir dos modernos estados sociais europeus.

3- Por outro prisma, o autor procura retirar os pais fundadores da Europa de um plano mítico/intocável, acima do bem e do mal, e introduzi-los no plano da concreta história e escolha(s) política/ideológica – o autor regista a homogeneidade político-ideológica dos que criaram a Europa política; na altura, com a CECA, p.96 – e contrapõe – a estes - a crítica, quase sempre ignorada, dos que, seus contemporâneos, como Mendés France, alertaram, ab initio (1957, data da assinatura do Tratado de Roma), para uma arquitectura (europeia) desfavorável aos países “socialmente mais avançados”, em favor dos “mais conservadores”. De modo simbólico/provocador, Medeiros Ferreira pergunta, mesmo, se nenhum nome português haveria a dar ao edifício que, em Lisboa, alberga os gabinetes da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu chamados Jean Monnet (p.13/14).
Em suma, o autor desinquieta ou desarruma as ideias de quem julgava a construção europeia um caminho pacífico, e sem reticências, socialmente tão avançado como todos pretenderiam, só nos últimos anos colocado em causa por políticos que, mesmo filiados nas correntes que originalmente permitiram o modelo social europeu dela se desviaram completamente. Essa leitura das coisas conhece, portanto, em A história mal (dita) da integração europeia um incisivo contraditório.
 
4- Talvez, contudo, o mais importante – e inovador; até nas palavras do próprio – contributo dado por Não há mapa cor-de-rosa. A história (mal) dita da integração europeia, de José Medeiros Ferreira, para o conhecimento da trajectória portuguesa no seio do projecto europeu, ao longo das últimas décadas, e, por consequência, da estratégia que faltou e que falta, ao nosso país, para nele se integrar a (nosso) contento, passe, paradoxalmente, pela ilustração, assaz detalhada, da nossa ignorância (cidadã) acerca do que foram as posições dos nossos governos, ao longo dos tempos (e, assim, do escrutínio/crítica das mesmas). Senão, vejamos:
Sem se perceber o que se passa na União Europeia andamos à deriva. E para perceber o que se passa na UE é preciso arredar a forte e densa dogmática erguida à sua volta. E partir de um ponto de vista empírico e inovador (…) Ora, o estudo das grandes decisões portuguesas no âmbito da investigação europeia está por fazer no respeitante às razões, objectivos, interesses, resultados e consequências. Mas não deixa de se detectar uma persistente anemia estratégica.
[Fixando-nos a partir da década de 1990, vemos que:] Pouco, ou nada, se sabe sobre as derrogações dos períodos transitórios, sobre a reforma da PAC em 1992, e sobre os mandatos para as organizações comuns de mercados (OMC). Pouco, ou nada, se sabe sobre a decisão da entrada do escudo no Sistema Monetário Europeu (SME) em Abril de 1992 (…) Pouco, ou nada, se sabe sobre a decisão da entrada do escudo na zona euro e sobre os procedimentos que levaram à taxa de conversão do escudo em euros, em 1999. Ora, a conjugação da taxa de câmbio do escudo em écus em 1992, com a taxa de conversão do escudo em euros em 1999, criou sérias dificuldades à economia portuguesa, bem visíveis no período posterior (…) Pouco, ou nada, se sabe sobre as condições de aceitação do (…) Pacto de Estabilidade e, no entanto, ele condiciona quase toda a política orçamental e a própria execução dos fundos comunitários desde 2001” (págs.116/117).
Em todo este contexto, há apenas, até hoje, “uma confissão pública de uma derrota negocial em Bruxelas por parte de uma delegação nacional (…) [:] o Professor Cavaco Silva, no II Volume da sua Autobiografia” dá-nos conta de que a fixação da taxa de câmbio do escudo, em 1992, não correu de acordo com as (iniciais) pretensões nacionais (p.118). Sem o (re)conhecimento de como/porque falhámos/errámos, em alguns passos (determinantes) na nossa aventura europeia, como encontrar um mapa que forneça caminho sólido, a benefício das nossas (futuras) posições?

Boa semana.

Pedro Miranda

[originalmente publicado na rubrica "reparo do dia", da universidadefm]

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