REPUBLICANISMO

 

Republicanismo

Evocado, inúmeras vezes, por diferentes responsáveis políticos, o Republicanismo, a República, não designa, apenas, um regime político que se opõe à Monarquia, mas uma corrente filosófica antiga – recentemente renovada com novos contributos - que pretende a) descrever um determinado modo de os cidadãos se relacionarem entre si; b) que busca a igualdade; c) que remete para a necessidade de participação dos cidadãos nos assuntos públicos para não sofrerem a dominação de outros, ou de um Governo. Neste contexto, podemos identificar duas tradições republicanas diversas entre si: por um lado, o chamado republicanismo cívico (de raíz aristotélica) que, na interpretação do modo como os cidadãos deviam relacionar-se entre si, sublinha a importância, determinante, de valores e finalidades culturais e éticas partilhadas, homogeneidade social, pela comunidade para que esta possa deliberar. O republicanismo cívico emerge, historicamente, ligado à crítica dos costumes comerciais que, pretensamente, centrarão os cidadãos nos seus próprios interesses e desviá-los-ão do interesse público. Por outro lado, o republicanismo político (que remontará a Cícero, ou Maquiavel) não pretende que haja uma definição substancial de bem que una, previamente, toda a comunidade e tende a ver, antes, os valores republicanos não como um fim em si mesmo, mas como proteção contra a interferência dos demais (a liberdade definida pela negativa: como não dominação). Nesta segunda tradição, cada um procurará, pois, seguir a sua noção de bem (ou a noção de bem em que se insere) sem ter que aderir previamente a uma dada doutrina a este respeito. Quer em uma, quer em outra das correntes republicanas, sublinhe-se, valoriza-se muito a participação política dos cidadãos, mas o modo como o espaço público é formado e formatado é, pois, bem diferente. O paternalismo e o carácter algo abstracto do ideal de não dominação são as críticas apontadas às duas tradições.
As críticas comunitaristas ao liberalismo político – entendido, aqui, como modelo de regras atinentes à organização do fórum público, sem nenhuma definição substancial de bem – têm dado um contributo muito importante no sentido de se revalorizar o debate moral, o debate acerca das finalidades em uma sociedade: sem que este debate em torno do sentido, do desígnio que pretendemos prosseguir (em conjunto), seja revigorado, assinalam, a política fica desertificada, a ininteligibilidade do que se discute, por parte dos cidadãos é completa, a sua desmotivação e desinteresse marcados, a polis fica, totalmente, nas mãos do especialista, do tecnocrata. No plano da pura neutralidade de princípios ou valores a que aderir, a política pode tornar-se coutada da técnica, dos interesses - ou de ambos. Esta crítica teve o mérito de permitir introduzir, em algumas teorias liberais, a ideia de que a motivação última de cada pessoa, para a sua adesão a determinados princípios de justiça, fosse explicada aos seus concidadãos, mesmo que ela remetesse, em última instância, para uma doutrina forte e ainda que sujeita a uma tradução (semântica) em termos estritamente seculares. A renovação do republicanismo, de resto, parece passar por aqui: sem uma definição substancial de bem prévia – muito difícil de conjugar em tempo de sociedades muito plurais e complexas; sendo que da pluralidade, segundo Amartya Sen, resulta tanto tensão como criatividade (que não florescerá, tão vivamente, em ambientes mais homogéneos), mas com espaço para que as motivações mais fundas de cada cidadão, de cada pessoa, as tradições que enformaram as razões de cada um, não sejam negadas, mas acolhidas/respeitadas.
Porque, neste preciso tempo, se joga, uma vez mais, um debate perene: a alienação de cidadãos, em um dado país, decorrerá mais de um vazio, um mal-estar, uma ausência de proposta ou de uma pauta, que a negação da explicitação e debate das motivações últimas, que podem juntar razão e emoção provoca, podem conferir ao nosso agir (também público), de aí desaguando em extremismos, ou dever-se-á, tal radicalização, à invocação e à existência de doutrinas fortes no espaço público (que deve ser completamente asséptico)?
Um defensor do liberalismo político, Jurgen Habermas questiona-se em Mundo da vida, política e religião: “ao nível dos recursos culturais, a modernidade assentou na orientação para a verdade que possui a ciência, no universalismo igualitário do direito e da moral, assim como na autonomia da arte e da crítica. A minha pergunta, na actualidade, é a seguinte: é suficiente o potencial desta grandiosa e, tal como espero, inalienável cultura ilustrada, para gerar, nas condições das sociedades complexas, os argumentos necessários em situações de crise para uma acção solidária socialmente?”.
Se, com o muito glosado. Só sei que nada sei, Sócrates deu conta da dificuldade de aceder à verdade absoluta, do mesmo passo que (se auto) exigiu uma medida mais alta de verdade, e se os que chamam a atenção para o facto de a razão ser enformada culturalmente o fazem com pertinência, então seria, provavelmente, de esperar que essa medida mais elevada da verdade resultasse de trocas entre razões diferentes. Ainda que com elementos absolutamente inegociáveis em cada uma delas – não tenhamos, a esse propósito, nenhuma ingenuidade. Contudo, tal comércio só poderá ocorrer assim que todas as razões aceitem passar pelo crivo da crítica. E, manifestamente, ainda há um longo caminho a percorrer para que esse crivo e a aceitação da crítica tenha acolhimento universal.
 
Pedro Miranda

[originalmente publicado na rubrica "reparo do dia", na universidadefm]

P.S.: Texto que teve em especial conta os ensaios/capítulos O comunitarismo, de Carlos Amaral, Adenda sobre Michael Walzer, de Rui Areal, e Republicanismo, de Roberto Merrill e Vincent Bourdeau, do Manual de Filosofia política, João Cardoso Rosas (coord.), Almedina, 2ª edição revista e aumentada, 2015.


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