'A ESCOLA DA ALMA', DE JOSEP MARIA ESQUIROL
A escola da alma, de Josep Maria Esquirol
O mundo, que é, e que é profundo e não superficial (“contra aqueles que sustentam que ‘não há nada por detrás da cortina’ ou que ‘o segredo é não haver segredo nenhum’, respondemos: ‘De modo algum! Se permaneceres atento à revelação do mundo, sentirás a sua profundidade’”), comporta, excessivamente, beleza (a beleza das coisas, a beleza do mundo) – beleza que está, portanto, próxima da experiência humana fundamental – e, através desta e da profundidade, “chega-nos um sim, um admirado e grato sim. É o sim do mundo. O sim diante da beleza do mundo. O eterno sim do mundo, como diria Schelling”.
Não é que o mal e o sofrimento não existam. Existem, evidentemente. E negá-lo seria, aliás, estultícia e desrespeito, absoluto, pelas vítimas daqueles: “O mundo é beleza. E o mal existe no mundo. Sem sínteses. Sem superação dialéctica”. Ao reconhecimento da primeira revelação – a da beleza -, há que assumir a dureza de um segundo desocultamento – o do mal. Os dias sombrios e abissais ameaçam o sentido. E, face a essa permanente ameaça, consciente ou inconscientemente, oramos, pedimos que assim não seja, que o mal não se consume (“esta é uma experiência espiritual. É a experiência do inexistente, do não diante do mal”). Rezar é pedir que o mal não tenha a última palavra - ou, se preferirmos ainda, com Kung ou com Ratzinger, impõe-se a necessidade de uma justiça final, em especial para as vítimas inocentes e anónimas da história -, que a última palavra seja um canto (plenitude). Esperança “num sentido último que, de alguma forma, não permita que os outros sentidos se revelem vãos”. Inequivocamente, diante do mal a resposta nunca é a contemplação, mas o gesto médico: curar, fazer companhia, proteger e resistir. Por vezes, com sacrifício – e o sacrifício “dá testemunho de algo para lá do mal”. Testemunho: na vida madura, não nos limitamos a viver; testemunhamos a vida.
Isto pressupõe, desde logo, no entendimento de Esquirol, como constituinte da pedagogia e finalidade da “escola da alma” – onde está a alma? Animando. Não procures uma coisa, procura um acontecimento [um dos maiores especialistas hodiernos da obra de Tomás de Aquino escreve que, no pensamento deste, Deus se assemelharia, mais do que a uma entidade, a um acontecimento] - permanecer aberto ao sentido, o que gera fraternidade. Com o que, a nosso ver, é uma leitura antropológica profícua, o ensaísta regista que “cada vida humana traz consigo o impulso da criação e o desejo de salvação” e, de resto, “as pessoas precisam de poesia e mística para não enlouquecerem”. Cotejando, ao seu texto, palavras simples, mas preciosas como “quem sabe!” ou “talvez”, como que sussurra que “por vezes parece que uma palavra inicial, que ressoa como um sim cordial, continua a sustentar o mundo. Sem ela, nem a pedra nem a água permaneceriam” (no princípio era o Verbo).
O reencantamento, sempre um combate dada a ameaça permanente do sem sentido (a confiança adquire o contorno de apesar de, isto é, não ignorando que o mal e o sofrimento existem e sem obliterar algum grau de desespero – esperança contra toda a esperança), resiste ao “diletantismo académico, à cultura nihilista de baixo tom, à sonolência consumista, ao cientificismo convertido em ideologia e, sobretudo, a todas as formas de fundamentalismo e de totalitarismo” e, outrossim, convoca uma escola e uma vida que saibam a importância de “não reduzir o mistério ou a admiração”; antevê-se no reconhecimento de que o mundo não se explica a si mesmo; faz uso de um exercício de compreensão que, por antonomásia, nota que na memória e na saudade dos mortos, o humano transcende os factos; ele é, então, metafísico e religioso por natureza (homo religious); constata que viver é fazer caminho (somos homo viator) - e caminhar cansa. Não obstante, “o gozo de viver é ainda mais radical” [do que o cansaço].
Fazer caminho enquanto forma de vida[4] é, aliás e radicalmente, uma verdadeira divisa: tal significa a sabedoria da recusa de uma posse idolátrica (do sentido, do divino)[5], de aceitar habitar a tensão[6], seguir e viver o desejo[7] (do sentido; “a sede é a única luz na noite”, João da Cruz), encontrar, também, sentido na demanda de sentido (“do sentido que procuramos e que, na verdade, já nos guia, temos uma pista, um vestígio: deve estar relacionado com o amor, deve ser uma espécie de doçura, de calidez, de abraço. Caso contrário, não o procuraríamos”), da certeza da fortaleza inscrita na fragilidade[8] (recusa de qualquer triunfalismo, completamente deslocado, neste âmbito – “o menor denominador comum do fundamentalismo religioso, do totalitarismo político e do monismo pseudo-filosófico é precisamente este: o encerramento. Procedem como se já tivessem tudo planeado, como se já estivessem no fim do caminho e pudessem afirmar com certeza e contundência, porque tudo lhes convém. Mas fecham falsamente. Os fundamentalistas religiosos de qualquer sinal exibem grande firmeza, ao mesmo tempo que declaram demagogicamente estar ao serviço do divino. A verdade é que se aproveitam dele e da sua falsa segurança transforma-se em dogmatismo, imposição e violência (…) todas as formas de fundamentalismo, apesar de possíveis aparências, são sempre frias, muito frias”), da noção de que “o ateísmo é uma verdade incompleta” (ou, como diria Halík, em Paciência com Deus, Paulinas, 2013, não é que os ateus não tenham razão; não têm é paciência. Para escutar a Realidade da realidade): “o cristianismo desmitologizado está essencialmente acompanhado pela comoção e pela intempérie. Somente na busca apaixonada e dramática acontece a proximidade do divino”.
6. A escola deve aproximar-nos, igualmente, da beleza. É que a beleza está perto da experiência humana fundamental (“o facto de existir um mundo e o de ele se nos mostrar é uma maravilha que nos admira e surpreende. Pode ser chamada experiência ontológica. Vejam: as coisas são. A maravilha é que elas sejam. Que sejam! Este verbo não é algo. Qual é o significado desse verbo? Onde repousa? (…). Há beleza nas coisas. Há beleza no mundo (…) E há beleza em que sejam”. O eterno sim do mundo, como diria Schelling. Sim primordial do mundo: «Sim, que bom…» É também um sim de alegria. Porque a alegria, como observou Simone Weil, é o «sentimento da realidade»” (nas palavras do teólogo Tomás Halík, "se existe um fundamento primordial de uma atitude religiosa frente à vida, não são as noções acerca de Deus ou dos deuses, mas uma consciência profundamente experimentada de que a vida é um dom (...) Não basta reconhecer teoricamente que a vida é um dom, há que experimentá-lo profundamente. Como é óbvio, essa «experiência profunda» não precisa de tomar a forma de um encontro místico excepcional; é mais uma questão de «misticismo quotidiano»: com cada ato e experiência da própria vida descobrimos essa realidade e sentimo-nos gratos por ela. Se alguém tem essa experiência e sente relutância em conversar acerca de Deus em relação a ela - preferindo falar acerca da gratidão para com a própria vida ou para com a natureza -, de um modo geral isso significa, pura e simplesmente, que o seu conceito pessoal de Deus é demasiado estrito para abranger essa experiência, e essa pessoa está a utilizar conceitos, tais como a vida e a natureza, como «pseudónimos de Deus». Contudo, porque havemos de deificar a vida e a natureza de forma mitológica, quando há uma palavra que caracteriza, precisamente, aquilo que inclui a natureza e a vida, mas que também as transcende de modo infinito? Porque havemos de deificar algo que não é Deus? Porque havemos de apresentar o condicional como incondicional? Porque havemos de absolutizar os fenómenos da vida quando temos uma palavra que indica o próprio Absoluto, o Absoluto que permite que tudo o que não é absoluto seja prática e realisticamente relativizado? Costumo usar pouco a palavra «Deus»; com ela refiro-me apenas a esse mistério supremo, ao Desconhecido que brilha através da vida tal como nós a conhecemos" (Quero que tu sejas!, Paulinas, 2016).
No entender do filósofo Josep Maria Esquirol, o sentido da vida é a grande demanda da Filosofia. Disciplina que se é amor do conhecimento, não é menos do que conhecimento do Amor (de resto, procuro entender para crer, creio para compreender). E o amor busca o amor (quando procurávamos o amor já tínhamos sido achados pelo amor; o amor com o qual amas Deus e a procura com a qual procuras são o amor e a procura com os quais Deus te procura e ama, Santo Agostinho)[10]. E “a interioridade não é um lugar recôndito em mim, mas o lugar onde o infinito me afeta e me convoca com minha própria voz” (Deus é mais íntimo que o meu próprio íntimo – Santo Agostinho; a Deus e ao Eu poderia aplicar-se o que se disse no Concílio de Calcedónia, “sem confusão nem distinção”, no registo de Halík explicando Mestre Eckhart quando dizia que “Deus e eu somos um só”).
Falar de escola – incluindo em uma dimensão de formação integral, como “escola da alma” – significará, necessariamente, remetermo-nos, reforcemos, à demanda da clareza, sem desvanecimentos (e sem acédia): “em 1935 e em plena ascensão do nazismo, o velho Husserl deu uma conferência em Viena seguindo o espírito socrático e explicou solenemente que o grande perigo da Europa residia no cansaço e no abandono do esforço da reflexão e da claridade diante da escuridão e da barbárie” (Ratzinger falaria de “cansaço da fé”, e aqui poderíamos regressar ao tópico da “crise de cultura como questão de fé” [fé em sentido abrangente, falta de confiança no próprio ideal de claridade] e do problema do nihilismo como última palavra do Ocidente). E, sendo que ao professor está cometido o privilégio de “partilhar com os outros o fruto do seu estudo”, ele compreenderá que quanto mais próximo, mais essencial (a mística do instante). Mais, verdade maior, o mestre tem a sorte de encontrar na escola pessoas cuja bondade lhe permite transitar pelos dias abissais (testemunho de Josep Maria Esquirol que sufrago profundamente): “tive ainda um privilégio maior. O de testemunhar a incrível bondade de certas pessoas. Elas deram-me o sentido e a força para resistir a todas as investidas do absurdo”. A bondade como forma superior, a forma maior de inteligência (bondade e inteligência entendidos, assim, não como dois âmbitos separados). Encontro entre duas pessoas: quando uma alma toca outra alma, o encontro é sem porquê (como a rosa, do poema recitado mais de uma vez ao ano no enclave). O porquê do encontro é a graça. Agradecemos, na escola como na vida, sobretudo, a gratuitidade. A graça é o excesso de azul no céu azul.
Pedro
Miranda
[1]
Tomás Halík sonha com um Papa
que seja um guia espiritual para a humanidade toda, com uma Igreja não autorreferencial
e que não transforme um encontro pessoal em mera ideologia, seja «tudo para
todos», sem se transformar num vago humanismo, mas que aceite a experiência, as
interrogações, respostas que alarguem a capacidade de identificar Cristo, mesmo
onde Ele está sob uma forma implícita e anónima. O Papara Rafael, com que Halík
sonha, “não é somente o líder da Igreja Católica, mas também um guia
espiritual, um mistagogo, pastor e servidor de todos aqueles que estão
espiritualmente abertos, sedentos e à procura – estejam eles já no interior da
comunidade religiosa ou além das suas fronteiras visíveis (…) Entendo-o como um
guia e um irmão também daqueles para os quais Deus se mantém anónimo,
escondido, e que o servem procurando a verdade e fazendo o bem segundo a sua
consciência”. O teólogo checo reconhece que “os meios tradicionais de expressão
religiosa – as palavras, os rituais, as instituições – são um espaço demasiado
estreito para a dinâmica da vida espiritual dos nossos tempos. Demasiado
estereotipada, pouco compreensível e insuficientemente convincente, a oferta
das instituições religiosas não vai de encontro às reais aspirações espirituais
e aos desejos, às questões reais e às necessidades das pessoas dos nossos
tempos (…) A resposta à questão de quem é «crente» e quem é «não crente» é
muito mais complicada do que parece à primeira vista. A relação entre a
religiosidade explícita (convicção expressada em palavras, rituais e na
pertença a instituições religiosas) e a implícita, existencial, muitas vezes
inconsciente, crença ou descrença (naquilo que assume o papel de Deus para uma
pessoa concreta e na imagem de Deus que se encontra nas profundezas do seu
inconsciente e influencia o seu comportamento) é ainda uma área pouco
explorada. No panorama espiritual atual, encontramo-nos ainda mais
frequentemente com a «crença dos não-crentes» e a «descrença dos crentes»”. Na
Igreja que, assim, neste sonho de Halík, se fará “tudo para todos”, e no levar
Cristo ao mundo (inteiro), Igreja não voltada para dentro, mas ao serviço de
todos, em uma forma de expressão religiosa que não é ideológica, mas radica no
encontro com a fonte da vida (e vida em abundância), terá, contudo, de
acautelar uma identidade significativa: “o Cristianismo não pode dissolver a
sua identidade e tornar-se numa espécie de humanismo que tudo abraça”, O sonho de uma nova manhã. Cartas ao Papa, Paulinas, 2024, pp.8-10 e 22.
[2]
“Não é o caminho que nos falta.
O que nos falta é a viagem”, Mia Couto, Compêndio
para desenterrar nuvens, Caminho, 2024, p.92. E “não há viagem sem
tempestades”, José Tolentino de Mendonça, A
vida em nós, Quetzal, 2024, p.18.
[3]
“A nossa Igreja Católica – e
isso certamente não é apenas verdade para ela – tem-se preocupado sobretudo,
durante séculos, com a ortodoxia, com
a doutrina correcta e com o modo como o seu trabalho pastoral conduziria à ortopraxia – a conduta moral, a
observância das regras morais. Celebrou Deus com a sua liturgia e uniu os
crentes. Parece-me, no entanto, que o mais profundo permaneceu um tanto na
sombra, ou seja, a preocupação com a ortopatia,
o pathos, com a sua paixão da fé, a
sua seiva vital. Essa é a dimensão espiritual
da religião, a vida espiritual, a experiência espiritual. Quando seca essa
seiva da fé, a doutrina transforma-se em ideologia e a ética em moralização
vazia”, Tomás Halík, o.c., p.78.
[4]
“Não só aqueles fora da
comunidade da fé, mas também muitos cristãos actuais, romperam com o pensamento
metafísico pré-moderno e com a sua imagem do mundo. Deixaram de compreender
Deus, a sua presença e a sua atividade na história de forma heterónoma, como
meras intervenções vindas de fora. O Deus da Bíblia não é, de facto, um deus ex machina, mas habita e age no
meio do seu povo. O Deus de que fala a Bíblia não é uma causa primeira,
inamovível, que reside algures para além do mundo da mudança histórica, mas sim
um Deus que se insere no processo histórico e que, através do seu Espírito,
constantemente o anima e transforma (…) O Espírito Criador (Spiritus Creator) é o sopro, a vida, a dinâmica de todo o processo
permanente de Criação. A Bíblia menciona o papel do Espírito no início da
Criação na criação do universo e na criação do homem. A teologia tradicional
ensina que Deus está presente em todas as coisas que existem, na sua própria
qualidade de Ser. Eu acrescentaria que, naqueles que vivem e evoluem, Deus é a
evolução. A presença de Deus não é estática, mas dinâmica, é um processo. Esse
entendimento de Deus é o ponto de partida para um entendimento processual do
fenómeno do Cristianismo: o Cristianismo vivo está sempre em movimento”, Tomás
Halík, o.c., p.56.
[5]
“O Beato Pierre Claverie,
bispo na Argélia (…), mártir da amizade e do diálogo com os nossos irmãos
muçulmanos, gostava de repetir: «Sou um crente, acredito que Deus existe. Mas
não pretendo possui-lo, nem através de Jesus, que mo revela, nem através dos
dogmas da minha fé. Não se possui Deus. Não se possui a verdade» (…) O
Cristianismo sempre se fez próximo de quem se questiona, porque – estou
convencido – Deus ama perguntas, ama-as verdadeiramente. Penso que Ele gosta
mais de perguntas do que respostas. Porque as respostas são fechadas, as
perguntas permanecem abertas”, Papa Francisco, “Introdução” a “Perguntas de Deus, perguntas a Deus”, de Timothy Radcliffe e Lukasz Popko, Paulinas, 2024, pp.11-12.
[6]
“Torna-se-me claríssimo que
encontrar Deus é procurá-lo, e que ser feliz é desejá-lo”, Mário Cláudio, Diário Incontínuo, D.Quixote, 2024,
p.434.
[7]
“E está Deus com quem o
deseja, deseja-o quem com Ele está”, Mário Cláudio, Ibidem, p.137.
[8]
“O amor não nos reclama
força, antes espera de nós uma fraqueza ainda maior do que aquela que já
transportamos em nós”, José Tolentino de Mendonça, o.c., p.14.
[9]
“Um padre do deserto dizia
que o principal pecado é a distracção”, José Tolentino de Mendonça, o.c., p.28.
[10]
“O amor humano é o espaço em
que Deus habita sempre, mesmo quando não é reconhecido, nomeado ou
explicitamente invocado”, Tomás Halík, o.c., p.134.
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