TOMÁS HALÍK, BRAGA, 19-11-2024

 

IR A BRAGA…E VER O HALÍK

Casa cheia. Não apenas a parte da “plateia”, mas também a "arquibancada" do Auditório Vita – onde, nos bancos atrás daquele em que me situo, se encontra um grupo que veio de Coimbra - engalanaram-se a preceito, nesta terça-feira, em Braga, para receber Tomás Halík. Esse foi o facto da noite, registado por João Manuel Duque na introdução á conferência: é muito relevante que, para uma ocasião e um autor destes, tanta gente tenha querido marcar presença. Sinónimo de que, bem vistas as coisas, continuam muitos, uma imensa minoria talvez, a querer/desejar uma “releitura do cristianismo" e de um “cristianismo aberto”, sem queixume, mas claramente pertinente, chegando à sua hora da tarde (maturidade), para se concretizar aqui e agora, não nostálgico, ainda, de uma cristandade que não regressará. Ora, "Halík é provavelmente o principal representante a nível mundial" desta forma de encarar uma tradição viva.

Quem leu todos os seus livros, último incluído (O sonho de uma nova manhã, Paulinas, 2024), anotou a selecção que o pensador checo realizou para a noite de Braga (de Praga para Braga), em especial os capítulos finais da obra com que agora nos presenteia. Neles – maxime, Décima Carta – conta como, ainda no Natal do ano passado, reelaborou toda a homilia que tinha preparada para a festividade, na medida em que os trágicos acontecimentos do mundo (e de um assassínio em massa, no seu país, por aquela altura),  nos colocam, em permanência, e esse é um dos principais topos que atravessa todos os seus escritos, face a esse desafio de (configuração de) uma fé adulta e à altura dos tempos – não um doce conto de fadas; não, também, ainda que psicologicamente compreensível num mundo que já não segue a compasso, o recurso a fantasias, a entrincheiramentos ou mentalidade de catacumba contra o mundo, quando este necessita é do fermento e sal do que sanam: “uma fé para o mundo de Herodes e Pilatos, onde Jesus nasceu, uma fé para um mundo de Putins e de assassinos em massa que vagueiam pelas ruas das nossas cidades (…) A Igreja não está aqui para perpetuar para sempre um mundo de conto de fadas; as nossas Igrejas não devem ser uma Disneylândia espiritual. Não se destinam a ser apenas um jardim-escola para a experiência religiosa do mundo, um asilo contra o mal que nos rodeia e uma cegueira para o mal que também está dentro de nós. O Cristianismo deve ser uma ‘escola para a vida no mundo tal como ele é’. Uma escola de maturidade cristã, uma escola de fé para pessoas adultas (…) Não permanecer nem nas fraldas das fantasias infantis, nem no túmulo do desespero e da resignação (…). Nem um ópio calmante, nem nostalgia do passado, nem ideologia. É cristã na medida em que está indissociavelmente ligada ao amor e à esperança”.

Neste contexto, leio, concordando, o pronunciamento que o Professor Visitante nas melhores universidades do mundo ao longo das últimas décadas realiza, de modo contundente, acerca da guerra da Ucrânia – em indagações em que se sopesou o mesmo conflito à luz de uma herança viva, e nos ocupou, desde 2022, também, em sessões que seguimos, da Comissão de Justiça e Paz, em Vila Real, com o juíz Dr. Manuel Soares [aqui: https://www.facebook.com/profile/100011652577345/search/?q=Justi%C3%A7a%20e%20Paz&locale=pt_PT], ou da revisitação de um percurso, um perfil, um pensamento e uma vida tão marcantes e interpelantes ainda hoje como a de Dietrich Bonhoeffer [aqui: https://ionline.sapo.pt/2022/03/24/dietrich-bonhoeffer-o-homem-do-dever-obedece-mesmo-diante-do-diabo/], contrariando, assim, os que entregariam, a uma cruel tirania, a Ucrânia e os ucranianos em nome de um pacifismo ora bem intencionado, ora utilizado, com pensado cinismo, de modo torpe: “Os ‘pacifistas cristãos’ podem dar a própria face, mas não a face dos inocentes, dos civis, das mulheres, dos idosos e das crianças. Um país invadido tem o direito de se defender e o mundo livre tem a obrigação moral de o ajudar. O amor pelo inimigo, no caso do agressor e violentador, consiste em impedi-lo de fazer o mal, escreve o Papa Francisco, na Encíclica ‘Fratelli tutti’. (…) Há que pôr cobro a essa violência, há que defender os indefesos – em último caso, também pela força”.

Esta nota, diga-se, surge no capítulo que Tomás Halík dedica ao Inferno. Conquanto as portas da escatologia se digam de há muito fechadas, face às quais um mutismo se imponha sucessivamente, releva a elaboração a que o académico não se furta. Observemos de que forma: “Talvez uma interpretação do Inferno pudesse terminar com essa declaração. A crença na existência do Inferno é a consequência lógica da crença no respeito de Deus pela liberdade humana. Se acreditarmos que Deus deu ao homem a liberdade, incluindo a liberdade de abusar dessa dádiva, de se opor consciente e plenamente a Deus pondo-se do lado do mal, então pode-se presumir que Deus respeitará essa livre escolha do homem até ao fim, até ao estado de completa separação de Deus a que chamamos «Inferno».

Se o respeito de Deus pela liberdade humana e a justiça de Deus são mais fortes do que a misericórdia de Deus, então não só a frase «O Inferno existe!” é verdadeira, como é provável que «o Inferno não esteja vazio». (…) Porém, a leitura do Evangelho reforça a minha intuição de que Jesus anuncia um Reino em que o amor misericordioso acabará sempre por prevalecer sobre a justiça fria. Parece-me que estão mais próximos do Espírito e do coração de Jesus os teólogos que, a começar por Orígenes, não dizem um «sim firme» à doutrina da eternidade do inferno, deixando um rasgo de esperança na omnipotência da misericórdia de Deus. Um grande teólogo do século XX e mais tarde cardeal, Urs von Balthasar, não descartava a possibilidade de o inferno «existir», mas estar vazio. (…) Acredito que Deus acabará por nos julgar não só pelos nossos feitos, que são frequentemente influenciados por muitos factores externos, mas também pelos nossos desejos, que residem na profundidade dos nossos corações. Não são apenas as nossas acções, mas também os desejos do nosso coração que moldam quem somos”.

O padre Halík recorda que “as Escrituras e o Credo dos Apóstolos não nos dizem nada sobre a «estrutura» do Inferno” – sendo certo que a «estrutura» do Inferno, e as imagens a partir de Dante que se tornaram obsoletas acerca daquela com os campos de concentração e extermínio nazis ou o gulag soviético, o(s) inferno(s) na Terra, algo que neste livro Halík volta a sublinhar, não é igual ao Inferno (ele mesmo). A entrada no «céu», outra face da moeda, dar-se-á não pelas «realizações pastorais», não pela quantidade e qualidade das conferências e livros, mas pela resistência ao orgulho e pela humildade: “a virtude que, de todas as virtudes, conduz mais seguramente ao Céu é a humildade”.

Na revisitação da parábola do filho pródigo não é apenas que Halík encontre – como já tínhamos lido em José Tolentino de Mendonça – no filho esbanjador esse que se atreve a ir de ao pé do pai pelo mundo (ainda que, depois, se arrependendo do que fez e pedindo o regaço de novo), enquanto o mais velho, diversamente, não se emancipa; é que, este último, perdeu a oportunidade de metanoia (conversão): “esse teu filho”, diz em tom julgador, e não “o meu irmão” (a fraternidade repelida, a quando do regresso daquele). Ou seja, “não só os «pecadores», mas também os «justos» precisam de conversão, de transformação. Não apenas a vaidade do «pecador», mas também o orgulho do «justo» precisa de ser curado”. É que Halík, psicoterapeuta ainda, tal como em cada pessoa, em diferentes momentos existenciais, entende conviverem um «crente» e um «não crente» concebe que a parábola do filho pródigo seja lida em chave do outro que de bom grado recusaríamos existir em nós – o lado lunar – e que, assim, é trazido neste episódio: “Talvez não seja uma parábola sobre dois tipos humanos, mas sobre uma tensão que se passa dentro de uma mesma pessoa, talvez dentro de cada um de nós. Talvez habite em cada um de nós o outro irmão, perdido, carregado de culpa; talvez o tenhamos conseguido «perder» e expulsar para nos podermos considerar bons, decentes e justos. Talvez tenhamos conseguido mantê-lo de lado. Mas será que o facto de não nos termos sujado é o resultado da nossa virtude madura, ou será que não demos vazão à escuridão dentro de nós, porque não tivemos coragem ou a oportunidade suficientes para nos colocarmos em situações de risco? Teremos realmente transformado e superado a escuridão que há no homem, ou tê-la-emos antes expulsado – e gostaremos de projectá-la e atribuí-la aos outros?

Em O sonho de uma nova manhã, Tomás Halík apresenta um conjunto de 12 cartas, concebidas a partir de um sonho no qual contacta, e passa a dialogar (via epistolar), com um Papa (Rafael [“Deus cura”]) - que seja um guia espiritual para a humanidade toda, com uma Igreja não autorreferencial e que não transforme um encontro pessoal em mera ideologia, seja «tudo para todos», sem se transformar num vago humanismo, mas que aceite a experiência, as interrogações, respostas que alarguem a capacidade de identificar Cristo, mesmo onde Ele está sob uma forma implícita e anónima (sem que, necessária, ou, mesmo, desejavelmente, o outro se enquadre no esquema exato que comungo, ou venha ao “redil”; sem proselitismos desrespeitadores do próximo, portanto; ao invés, com capacidade para convocar/alargar a esfera do encontro com o sentido). O Papa Rafael, com que Halík sonha, “não é somente o líder da Igreja Católica, mas também um guia espiritual, um mistagogo, pastor e servidor de todos aqueles que estão espiritualmente abertos, sedentos e à procura – estejam eles já no interior da comunidade religiosa ou além das suas fronteiras visíveis (…) Entendo-o como um guia e um irmão também daqueles para os quais Deus se mantém anónimo, escondido, e que o servem procurando a verdade e fazendo o bem segundo a sua consciência”. O teólogo checo reconhece que “os meios tradicionais de expressão religiosa – as palavras, os rituais, as instituições – são um espaço demasiado estreito para a dinâmica da vida espiritual dos nossos tempos. Demasiado estereotipada, pouco compreensível e insuficientemente convincente, a oferta das instituições religiosas não vai de encontro às reais aspirações espirituais e aos desejos, às questões reais e às necessidades das pessoas dos nossos tempos (…) A resposta à questão de quem é «crente» e quem é «não crente» é muito mais complicada do que parece à primeira vista. A relação entre a religiosidade explícita (convicção expressada em palavras, rituais e na pertença a instituições religiosas) e a implícita, existencial, muitas vezes inconsciente, crença ou descrença (naquilo que assume o papel de Deus para uma pessoa concreta e na imagem de Deus que se encontra nas profundezas do seu inconsciente e influencia o seu comportamento) é ainda uma área pouco explorada. No panorama espiritual atual, encontramo-nos ainda mais frequentemente com a «crença dos não-crentes» e a «descrença dos crentes»”. Na Igreja que, assim, neste sonho de Halík, se fará “tudo para todos”, e no levar Cristo ao mundo (inteiro), Igreja não voltada para dentro, mas ao serviço de todos, em uma forma de expressão religiosa que não é ideológica, mas radica no encontro com a fonte da vida (e vida em abundância), terá, contudo, de acautelar uma identidade significativa: “o Cristianismo não pode dissolver a sua identidade e tornar-se numa espécie de humanismo que tudo abraça”.

Tantas vezes certeiro e cirúrgico, sem medo da verdade, capaz de formular e decantar o que precisa de vir ao de cima, o filósofo/teólogo checo aduz: “A nossa Igreja Católica – e isso certamente não é apenas verdade para ela – tem-se preocupado sobretudo, durante séculos, com a ortodoxia, com a doutrina correcta e com o modo como o seu trabalho pastoral conduziria à ortopraxia – a conduta moral, a observância das regras morais. Celebrou Deus com a sua liturgia e uniu os crentes. Parece-me, no entanto, que o mais profundo permaneceu um tanto na sombra, ou seja, a preocupação com a ortopatia, o pathos, com a sua paixão da fé, a sua seiva vital. Essa é a dimensão espiritual da religião, a vida espiritual, a experiência espiritual. Quando seca essa seiva da fé, a doutrina transforma-se em ideologia e a ética em moralização vazia”.





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