A ECONOMIA ALEMÃ E A EUROPA - AS LIÇÕES DE WOLFGANG MUNCHAU
O QUE PODEMOS
APRENDER DA INTERPRETAÇÃO DE WOLFGANG MUNCHAU SOBRE A ENCRUZILHADA ECONÓMICA DA
ALEMANHA
A perenidade, as consequências a uma considerável distância temporal, um século volvido, do ocorrido em meados do século XX, recorda-nos o que são efeitos realmente transformadores – quando com facilidade e, não raro, sem efetivo conteúdo se usa o jargão das “reformas estruturais” - que a vida política produz ou contribui, decisivamente, para se produzirem: “os EUA ainda colhem os benefícios da invenção do transístor em 1947. Mantiveram essa vantagem desde então, até chegarem aos mais recentes computadores quânticos experimentais. Similarmente, a invenção do motor de combustão garantiu à Alemanha décadas de lucros gordos” (p.77). Só que “o superciclo alemão está a chegar ao fim; o dos EUA continua forte”.
O sistema de saúde e a polícia alemãs ainda utilizam máquinas de fax (p.25), a cobertura de telemóveis nem sempre é a melhor em terras germânicas, há um predomínio da utilização do dinheiro físico e fraca infra-estrutura de pagamentos com cartão. Ao que acresce, na denúncia de Munchau sobre a perda do digital como elemento crucial para a prosperidade alemã ficar aquém do que podia e devia, cientistas com peso importante na opinião pública – e temos uma referência em particular ao neurocientista e psiquiatra Manfred Spitzer – a rejeitarem, liminarmente, “qualquer conteúdo digital” na escola. Algumas universidades alemãs permanecem das melhores do mundo, mas não logram transformar a pesquisa (resultados da) em negócios. Em síntese, no entender do antigo colunista do The Times e The Spectator, a recusa em utilizar tecnologias modernas – Alemanha demasiado presa a tecnologias e empresas antiquadas e sem grandes apoios para startup [das 10 startup com maior capitalização, no mundo, nenhuma é alemã] - “foi o pecado original” da desaceleração/estagnação, e até ligeira recessão, económica alemã [o país ainda não possui um Ministério para o digital].
3.Problema maior alemão o modelo de neomercantilismo, assente em grandes excedentes comerciais, dependência elevada das exportações, conservadorismo orçamental e monetário levado ao limite, o consequente corporativismo a nível interno, traduzido por subordinação da política nacional e até do bem comum “aos interesses de certos ‘campeões’ industriais” (p.29). Em realidade, “o objectivo não é maximizar o bem-estar social, mas proteger o modelo de negócios da indústria” (p.162). Sem teorias conspirativas, mas constatando a realidade objetiva do modelo económico prosseguido, Munchau regista que a “WW e a Porsche têm o governo na mão – essa tem sido a realidade desde que Gerhard Schroeder [cuja alcunha era ‘chanceler da indústria automóvel’] chegou ao poder em 1998” (p.66). Os permanentes excedentes comerciais funcionaram até a China, os EUA e o Reino Unido funcionarem como “escoadores”, “absorventes” desse excedente – realidade que desapareceu, entretanto. A China, numa habilidosa gestão político-jurídica com os seus interlocutores internacionais, aprendeu a fazer (“a relação não era equilibrada. Quando as empresas alemãs investiam na China, estavam sujeitas a controlos. Tinham de transferir o seu Know-how técnico para as suas empresas parceiras chinesas”, p.141) e, atualmente, ganha na relação comercial com a Alemanha – a Alemanha é, hoje por hoje, mais dependente da China, do que a China da Alemanha [não há, por esta data, um único carro alemão no top 10 de vendas na China; A Comissão Europeia “está agora a planear a imposição de tarifas punitivas sobre os fabricantes chineses de automóveis, devido a subsídios desleais”, p.145] a que acresce que vai desacelerando no quantum de crescimento económico -, Trump irrompeu com as tarifas e uma guerra comercial, o Reino Unido passa horas difíceis em termos económicos…A aposta neomercantilista e corporativa, como que recuperando o eco de que “o que é bom para a General Motors [Wolkswagen, Mercedes…] é bom para o país”, criou, ademais, uma amálgama de políticos facilitadores – de que Schroeder [“vejo Schroeder como um dos primeiros populistas modernos (…) foi [também] o chanceler mais corporativista de todos os tempos”, p.95] foi, porventura, o principal actor -, de uma banca e uma industria como que indistintas. Os empresários que se faziam a si mesmos, sem ajudas estatais, sem proximidade com o poder político, desapareceram há décadas, também, na Alemanha.
4.O conservadorismo orçamental e monetário levados ao limite foram, porém, a âncora de uma visão, a certa altura consensualizada na política partidária alemã (país que se definiu, historicamente, através da ideia de trabalho produtivo), e que travou um potencial de crescimento económico maior, os investimentos necessários em infra-estruturas para o alcançar (“uma auto-estrada a sul de Dortmund, um eixo de transporte crucial entre o norte e o sul, está fechada há vários anos depois dos testes terem revelado que uma ponte se encontrava em risco iminente de colapso. Testes adicionais mostraram que todas as sessenta pontes dessa autoestrada precisavam de reparação (…). Também se nota na rede móvel, que deixa muitas zonas rurais sem cobertura. E não, não há 5G em lugar nenhum onde tenha estado”, p.202), o impulso urgente para o conseguir. Esta é a história da queda do keynesianismo entre os social-democratas (o último defensor da abordagem keynesiana, sendo, há um ano, ministro das Finanças de Schroeder, demitir-se-ia em discordância política com opções do Governo e PM do seu partido, o SPD – estávamos nos anos finais da década de 90), da imposição arbitrária de tetos em métricas orçamentais, visão plasmada e imposta, ainda, em âmbito europeu, da colonização neoliberal da social-democracia. Hoje que sabemos que como explicava, há uma semana, o especialista em política internacional de ElPaís, Andrea Rizzi, “os ordoliberais alemães já se desprenderam do seu dogmatismo austericida”, agora que verificamos o compromisso entre os dois maiores partidos alemães para mudar a regra travão (constitucional) que impedia défices orçamentais superiores a 0,35% do PIB – com as respectivas declinações no modo como nos estados federados se cumpria a norma do aperto orçamental era aplicada – vale a pena lançar, de novo, um olhar para o que sucedeu na Europa, neste contexto, desde 2010. E ter a noção, em apelos sebastiânicos reiterados que, a meu ver, se afiguram, de todo, destituídos de pertinência, de como, em Portugal, parecemos passar ao lado das aprendizagens, do conhecimento, dos debates, das lições que as políticas prosseguidas no pós-Grande Recessão mereceram. Acabado de publicar mesmo antes do acordo para a mudança da regra travão, na Alemanha, Kaput. O fim do milagre alemão, de Wolfgang Munchau oferece-se, em especial nos dois capítulos finais da obra, como uma profícua síntese do estado da arte da discussão económica e dos quinze anos – que sucedem a mudanças cruciais nas ideias e práticas políticas hegemonizadas - percorridos até aqui: “Poucos economistas alemães criticam os excedentes de exportação ou, Deus nos livre, defendem défices orçamentais para os compensar. O excedente do sector privado poderia ser equilibrado pelo sector público, mas essa possibilidade existe apenas para lá da imaginação daqueles que participam regularmente no debate económico alemão [p.156] (…) O meu excedente é [em realidade] o teu défice [p.158] (…) Não existe nenhuma teoria económica que diga que o orçamento deva estar equilibrado todos os anos [p.159] (…) [Os alemães] opunham-se a estímulos fiscais ativos até muito recentemente. O estímulo económico é algo estranho à cultura alemã [p.164] Em 1998 (…) Kohl perdeu as eleições para Gerhard Schroeder (…) O SPD chegou ao poder. Mas já não era o mesmo SPD de Helmut Schmidt, que em 1979 concordou numa reunião do G7 que a Alemanha actuaria como locomotiva económica global através de um grande aumento do défice orçamental. Naquela época, os keynesianos como Schmidt ainda estavam no comando do SPD. Durante a década de 1990, o SPD assumiu uma viragem distintamente conservadora em relação à política orçamental. Os sociais-democratas tornaram-se paranoicos quanto a serem rotulados de gastadores irresponsáveis e incompetentes em tudo o que dissesse respeito a dinheiro, uma herança das batalhas políticas dos anos 70. Isto apesar do partido ter tido alguns dos ministros das Finanças mais competentes da história da Alemanha, incluindo o próprio Schmidt e o Professor Karl Schiller, no início da década de 1970. Durante esse período, o SPD seguiu uma política económica keynesiana, como muitos partidos de centro-esquerda faziam na época. Mas, nos anos 1980, os conservadores fiscais tomaram o controlo em toda a parte. Tanto na academia como na política essa foi a era da ressurgência conservadora (…) [Oskar Lafontaine, presidente do SPD em 1998, ministro das finanças durante alguns meses] era uma espécie rara de keynesiano alemão, defensor de mais gastos públicos para investimento. Schroeder, pelo contrário, era um conservador fiscal que acreditava em acordos corporativistas. Lafontaine nunca falou em detalhe sobre esse episódio [da sua demissão do governo], excepto para deixar claro que discordava do que considerava serem as políticas neoliberais de Schroeder [pp.166-167] (…) O seu [de Peer Steinbruck, ministro das Finanças, do SPD, na coligação de governo liderada por Angela Merkel, em 2005] legado duradouro foi o “travão da dívida” – provavelmente a pior regra orçamental já criada por qualquer governo em qualquer lugar. Quando falamos sobre o “travão da dívida” devemos sempre recordar que esta monstruosidade foi inventada pelo SPD [p.168] (…) O travão da dívida (…) tornou-se uma máquina de destruição fiscal. O Pacto de Estabilidade [e Crescimento da UE] que a Alemanha tinha insistido em criar, e que mais tarde violou, nunca teve um enquadramento operacional eficaz (…) Um dos aspectos mais surpreendentes do travão da dívida foi o grau de consenso a seu favor. O SPD sob a liderança de Steinbruck tinha-se deslocado tanto para a direita que até a regra de manter o nível de investimento líquido foi considerada um acto de despesismo [p.169] (…) A pior consequência do travão da dívida tornou-se evidente durante a crise da dívida da zona euro, que começou em 2009, levando a uma queda nos investimentos líquidos. Sempre que os governos impunham austeridade, acabavam sempre por cortar nos investimentos líquidos. (…). As transferências sociais ou os gastos com defesa não podem ser interrompidos durante uma recessão. Mas os investimentos que não são realizados não gritam tão alto como os beneficiários de apoios sociais ou os contribuintes. Quando a austeridade é imposta, o investimento é sempre o primeiro a ser atingido. E, como a Alemanha impôs austeridade a si mesma, forçou essencialmente os outros países a fazerem o mesmo. Todos aplicaram a mesma estratégia ao mesmo tempo, subestimando as consequências de uma austeridade sincronizada (…). Os defensores do travão da dívida invocavam frequentemente os interesses das gerações futuras, argumentando que estas não deviam ser sobrecarregadas com a dívida dos seus antecessores – o argumento clássico dos conservadores fiscais. O contra-argumento é que prejudicamos ainda mais as gerações futuras se pouparmos na educação ou na infraestrutura. Em Junho de 2009, escrevi na minha coluna do Financial Times que o limite de 0,35% era economicamente iletrado e levaria a uma redução nos investimentos. Foi isso exatamente que aconteceu” (p.172).
5.No espectro oposto à abordagem alemã, tem-se encontrado a aproximação orçamental francesa. França viola, há 10 anos, as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, apresentando, sucessivamente, em anos recentes, défices orçamentais acima dos 5%. A dívida francesa está nos 110% do PIB. No dizer de Wolfgang Munchau, a França “é grande demais para falir e grande demais para ser salva”. O que poderia alcançar-se com um pequeno estado da periferia, não é possível suceder (no possível ‘rebocar’) de um grande europeu. A situação francesa poderá, durante alguns anos como que camuflar-se, mas deflagrará mais tarde ou mais cedo, assinala Munchau. A grande “divergência” franco-germânica oferece-se, de resto, como um dos grandes problemas europeus e a lição orçamental/económica parece clara: a recusa quer do zero (em) investimento (líquido), em nome de regras arbitrárias, que prejudicam a economia e, com ela, as gerações actuais e as gerações vindouras, quer da (inexistente) necessidade (possibilidade) de todos os anos um país registar robustos défices orçamentais que o levem para um plano inclinado da (in)sustentabilidade.
Integrada, há muito, no mercado de trabalho, nos quadros das empresas ou do estado, a geração de baby boomers alemães aceitou as reformas de Schroeder que implicavam moderação salarial em troco de segurança no emprego. Essas reformas, impulsionadas e desenhadas por um antigo alto quadro da Wolkswagen diminuiu os benefícios sociais e, se durante certo lapso de tempo, aumentos salariais de baixa escala podem ter ajudado à competitividade da economia alemã, revelam-se, agora, como incapazes de reterem muito do talento que exigiu mais adestramento técnico-científico e, bem assim, é insusceptível de atrair muitos dos talentos vindos da imigração que a Alemanha gostaria de fixar no seu território (“o antigo modelo económico da Alemanha dependia de mão-de-obra qualificada, energia barata, globalização e liderança tecnológica”, p.205).
Pedro Miranda
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