1.”Louco
de Deus” foi como Francisco de Assis (1181-1226)
se retratou. Jorge Bergoglio é o
primeiro Papa a escolher Francisco,
remetendo a il poverello, como nome
que utilizará enquanto Sumo Pontífice
(remontando a uma tradição, a de se
utilizar como Papa nome diverso daquele com que se nasce, que recua ao século XI). E na medida em que surge, à
boa maneira do que conta Arendt acerca
da surpresa de quem no Vaticano encontrou em João XXIII um verdadeiro
cristão (na cadeira de Pedro),
enamorado de Cristo e agindo de tal
maneira que, na diferenciação e escândalo sobre o operar habitual (assim,
cristão, se revelando), supondo, aliás, como verdade última a ressurreição da carne e a vida eterna, Javier Cercas identifica o Papa
Francisco como “o louco de Deus”. Em rigor, como no-lo mostrará ao longo de “El
loco de Dios en el fin del mundo” (Random
House, 2025) não apenas o Papa, mas, também e muito especialmente, os seus
“soldados”, a fortiori os missionários, “o lado mais são da Igreja” – como diz Tornielli -, aqueles que darão ganas ao intelectual ateu e
anticlerical de deixar tudo e ir viver para a Mongólia (justificam, e de que
maneira, a seu ver, tal apodo). A figura
do “louco de Deus” serve, em simultâneo, de contraponto, na narrativa de
Cercas, ao “louco sem Deus”, o
próprio escritor. E, nele, nessa outra figura,
evidentemente, assumindo uma voz que falará e sentirá por muitos (que com ela se identificarão).
Perplexo
e algo desorbitado com o convite do Vaticano para acompanhar a visita do Papa
Francisco à Mongólia, em, finalmente, aceitando o repto, o romancista encontra
ocasião para conjugar biografia de Bergoglio, auto-biografia (sua), mano a mano sobre a natureza da fé e o que significa a razão com um destacado intelectual
jesuíta no Vaticano, o relato e a aventura
de viagens, o estado da arte
sobre a Igreja e o mundo, um thriller
sobre a resposta do Papa à pergunta sobre a verdade da ressurreição da carne e a vida eterna, em um mesmo e compósito
livro: “quero dizer que ali, sentado
entre os colegas de todo o mundo, com a música de Bach ressoando todavia nos
meus ouvidos, debaixo dos frescos hipnotizadores de Miguel Ângelo, decidi que,
se ia escrever um livro sobre o Papa, estava obrigado a escrever um livro
diferente, tão extravagante quanto fosse possível, um banquete com muitos
pratos, uma loucura solidária com a demência do louco de Deus, um experimento
alegre e maluco, uma mistura de géneros, em cujo coração irão brilhar, como
pedaços ardentes de lava numa cratera activa, a ressurreição da carne e a vida
eterna" (p.62).
2.Certo
dia, a mãe de Javier Cercas, dirigindo-se aos seus cinco filhos ao jantar,
diz-lhes: gosto muito de cada um de vós, mas gosto ainda mais do vosso pai. De
maneira que aquela viveu, até à morte do marido, um amor fortíssimo pelo
companheiro de cinquenta e dois anos de vida em comum. E nem a morte lobrigou
como separação definitiva. Profundamente crente católica, como o seu cônjuge,
após a morte deste passou a repetir, vezes sem conta, que com aquele se iria
reunir, de novo, após o seu próprio falecimento. Eis o leit-motiv, reiterado, para a aceitação da empreitada sugerida pelo
Vaticano: Javier Cercas, qual regalo materno, quer oferecer à mãe a resposta do
Papa à sua certeza de fé, a existência de vida
depois da morte.
Voltado,
porém, sobre a sua família, assumindo, pois, um período de denso recorte introspectivo,
o literato anota: tendo sido
"crente" até aos 14 anos, certo dia, a leitura de um romance de
Unamuno, levou-o, da manhã para a noite,
até ao ateísmo (ou não terá sido também a migração interior em Espanha, o desenraizamento que com aquela
adveio, a relação da igreja espanhola com o franquismo?,
interrogar-se-á adiante). Mergulhou, então, em álcool, tabaco, drogas (marijuana,
haxixe, cocaína até), a vida passou a
ser perpassada por uma angústia que até então nunca lhe assomara.
Decidiu-se a ler a obra integral de Miguel de Unamuno. Saiu dela, porém, mais
confuso (do que entrara). Confusão de que ainda hoje não se libertou. A literatura, na sua vida, vem, afinal, a
preencher o vazio religioso que nela se instalara. A aliviar, por instantes, esse nó na garganta que a ausência de Deus -
nunca tão presente - lhe gera. Eis Javier Cercas em carne viva, profundo momento confessional: "Não tinha dito que, durante a minha
infância católica, eu não tinha conhecido a angústia, e que a tinha descoberto
no momento em que perdi Deus. Não tinha dito que, desde então, a angústia
acompanha-me sempre, que tem a forma de uma bola alojada na garganta, uma
esfera como a esfera infinita ou espantosa de Pascal, aquela cujo centro está
em todas as partes e cuja circunferência é nenhuma. Não tinha dito que esse
objecto indecifrável, que às vezes ocupa tanto espaço que mal permite respirar,
é o engendro que me impele a escrever e a libertar-me dele, para dissolvê-lo ou
pulverizá-lo com palavras e regressar à véspera venturosa da angústia, coisa
que só consigo em certos momentos mágicos, antes que o engendro regresse,
íntimo e pontual. Não tinha dito que essa esfera ocupa dentro de mim um espaço
tangível e que esse espaço tangível é uma ausência tangível e que essa ausência
tangível é a ausência de Deus" (p.37).
Identifica-se,
neste contexto, e numa obra onde não falta o diálogo com os lugares clássicos de objecção a Deus (Feuerbach, Russell, Nietzsche), de
motivações “ocultas” de “crença” (numa dada configuração do divino), ou
consequências da “descrença” com o louco
(ou tolo) de “A Gaia Ciência”, de Nietzsche
(1844-1900). Se em Francisco de Assis, encontrávamos o arquétipo do “louco de
Deus”, em Nietzsche se ancora, assim, o “louco sem Deus”. Com Cercas como que a dizer-nos que loucura é viver do escândalo de acreditar num Deus que promete a ressurreição da carne e a vida eterna, e que loucura é viver uma vida privada de sentido e repleta de angústia e
desespero (loucuras, portanto, e em todo o caso, diversas, desde a que derrama excessivamente na sintonia e dádiva pelos outros, em particular os últimos da Terra, e a que resulta, não raro, na deliquescência pessoal).
Não
é preciso achar-se o homem de letras
detido em uma muito relevante personalidade argentina, nem, quase como por
consequência, dir-se-ia sob a forma de chiste, recorrer à psicanálise, para se perceber que a sua peregrinação em torno da ressurreição
da carne e da vida eterna, pese a ternura para com a mãe, mais de 90 anos e
com Alzheimer, excede, em muito, um recuerdo
para com a ascendência.
Leitor
profícuo, Cercas aproxima-se de Nietzsche com indómita vontade de ser discípulo
dos homens fortes que aquele prega,
como sucedâneo do desfazer-se da fé cristã, super[supra]-homem em potência, débil e frágil, humano no fim de contas: "Nietzsche acrescenta em O anti-Cristo que, como o cristianismo
'se erigiu em defensor de todos os débeis, baixos e malogrados', essa religião
transforma em ideal o 'repúdio dos instintos de conservação da vida pletórica'
e considera «o Homem pletórico como o Homem tipicamente reprovável, como
'réprobo'». Dado que abandonei a fé cristã, eu sonhava transformar-me num
desses homens fortes de Nietzsche, réprobos e reprováveis, um desses
insubmissos que não se resignam à sua própria debilidade nem aceitam servidão
nem mentira alguma (...), um desses super-homens verazes e aspirantes à
autonomia individual que copiam o gesto soberbo do anjo caído e do seu grito
rebelde de guerra ('Não sirvam!'), um desses espíritos livres possuídos, como
se lê em A vontade de poder, «pela vontade incondicional de dizer não ali onde
o não é perigoso». Não consegui nada disso, claro. Tentei-o, mas não consegui."
(p.47)
3.Em
anos recentes, lendo uma entrevista do monge jesuíta Javier Melloni (Expresso,
22-07-22) dei comigo a fixar-me, uma e outra vez, na asserção nela feita:
enquanto andava na faculdade, afirmava o entrevistado, a teologia da “morte de
Deus” ocupava muito os espíritos (que frequentavam a academia); mas muitos anos
passados na Ásia haviam-lhe mostrado que essa era uma perspectiva muito situada
- geográfica e culturalmente: “Quando,
passados cinco anos, na Faculdade de Teologia, se falava da morte de Deus, eu
pensei: mas isso é na Europa, não é o que se passa na Índia, na África ou na
Ásia! Era uma questão da teologia ocidental e não é a única imagem de Deus.
(…). Enquanto estudava antropologia,
pude ter disciplinas de arte e interessava-me muito pela arte contemporânea,
sobretudo de Kandinsky e de Mondrian. São autores místicos, em que a forma
desaparecia para expressar a beleza através das cores e das linhas. A teologia
parecia-me demasiado palavrosa, demasiado antropomórfica, como a pintura
figurativa. Eu procurava uma teologia mística, sem palavras, porque não há
palavras para dizer o que não pode ser dito. Fui aprofundando o estudo dos
grandes místicos, como São João da Cruz, Mestre Eckhart, os místicos proibidos
medievais das beguinas [mulheres leigas católicas que praticavam uma vida
ascética em comum], a nuvem de saber de São Gregório de Nisa. (…). Entendo que a Igreja é uma mediação. Não é
a única. Mas é a minha família”. Agora, em El loco en el fin del mundo, de Javier Cercas, tal temática surge,
de novo, através do que o Cardeal Giorgio
Marengo, da Mongólia, deixa ao
ficcionista espanhol como testemunho. Na Ásia, observara o eclesiástico, não se pergunta a alguém se crê, mas em que
crê. Porquê, então, este cisma, Ocidente-Ásia, neste domínio? Eis as
respostas que entre o Cardeal Marengo, o padre jesuíta Antonio Spadaro e o escritor Javier Cercas resultam: i) a Ásia não conheceu a Ilustração (Iluminismo) e ali, desta sorte, não houve choque entre fé e razão (mais, não houve separação entre estas); ii) na Ásia,
diversamente da Europa ou EUA, o pensamento simbólico permanece muito
importante (razão e sentimento não se encontram cindidos);
iii) na Ásia, o cristianismo nunca passou por um período de Constantinismo (de confusão entre fé e
política).
Deve,
contudo, dizer-se, em abono da verdade, que o caso mongol, atenta a reportagem – um dos géneros do livro de Cercas – nesse país situado entre a Rússia e a
China, não ilustra perfeitamente a tese. Entre os testemunhos recolhidos – quer
de missionários católicos, quer de monges budistas -, na Mongólia boa parte da
sociedade leva pouco a sério a religião; os templos têm perdido fiéis nos
últimos anos; aqueles que se lhe dirigem, como um padre ocidental também
poderia dizer (do que se passa por estas bandas), são, em qualquer caso, mais
convictos, nutrem mais razões da sua fé, “são mais fundamentados na sua crença”
(do que os que o faziam por “mera tradição” ou “repetição social”). Quando aqui
se fala de crença (religiosa), a
propósito da Mongólia, está a falar-se, sobretudo, de budismo (3 milhões de crentes) e xamanismo (a religião, ou crença, mais antiga da humanidade). Os
católicos, na Mongólia, não chegam a 1500 (de um total de cerca de 70 mil
cristãos, mais de metade dos quais protestantes
– estes com TV e rádio, os missionários católicos, pelo menos até à visita
de Francisco, sem serem reconhecidos como representantes de uma Igreja, mas,
antes, com estatuto de ONG). Os mongóis, por outro lado, olharão para a
religião numa óptica iminentemente prática, para resolver questões do seu dia a
dia – em que dia da semana concretizar um
negócio, o que fazer com esta
relação?, etc – e consultarão, amiudadamente, os xamãs neste âmbito.
4.O mano a mano de Cercas sobre o estatuto
da razão, sobre o que é a razão, e
também a fé, é realizado com aquele que é, na observação de alguns, “o
intelectual de cabeceira” do Papa Francisco, o jesuíta, atual diretor de La
Civiltà cattolica, órgão oficioso
do Vaticano (oficial, o consabido L’Osservatore
Romano), revista prestigiada de ideias (a que Spadaro, mantendo a
densidade, terá emprestado um cuidado que lhe dará um lustro capaz de tocar
também o pop), Antonio Spadaro. Se,
em diálogo, em uma ocasião anterior, há alguns anos, em Espanha, Cercas havia
ficado “deslumbrado” com o discurso
do Cardeal Gianfranco Ravasi, sua
erudição e citações em línguas herméticas (que, de resto, compõem os cerca de
150 livros assinados pelo biblista),
agora, mesmo quando discorda, notará, também, uma elaboração sempre cristalina e muito estruturada em Spadaro. E o que diz Spadaro naquela interlocução? Que se não é pela razão que se crê, como
julga Javier Cercas, é através da razão
que se chega à possibilidade de Deus. O Iluminismo
exagerou as razões da razão e
esqueceu as razões do coração. No
Ocidente, hoje há muita cabeça, mas muito pouco coração. O ato de fé não pode separar-se da razão. Uma razão sem coração e sentimento
é uma razão computacional, fria e
meramente calculista.
Javier Cercas,
por seu turno, vê a fé como "uma intuição poética". Spadaro responde que a fé não é um puro ato sentimental e que
"a intuição poética não é irracional": "gera um produto que
também é o resultado da razão. A
poesia tem uma racionalidade a um
nível distinto, que se integra com o sentimento.
Mas sim: a fractura entre a fé e a razão ocorreu na Europa, e isso não é só
um problema para a fé. Também é um
problema para a vida" (p.103). Enquanto assisto, mediante palavras, a
este “vértigo metafísico” (Cercas),
recordo-me da primeira década deste século, da ida de Bento XVI ao Colégio dos Bernardinos,
da ideia de que a razão não é
meramente razão positivista, mas pode
e deve ser razão aberta à
possibilidade de Deus. E, no adquirido para mim, da absoluta pertinência da formulação,
por João Manuel Duque, da existência
de uma razão crente que não anule,
mas se aplique nas diferentes racionalidades,
estabelecendo pontes que não deixe jogos
de linguagem mudos – incomensuráveis
entre si (já não fé e razão como dois âmbitos separados, mesmo
que a corrigirem-se mutuamente em benefício mútuo, como em A Europa de Bento, ou em concepções presentes neste diálogo
particular de “El loco de Dios en el fin del mundo”, nomeadamente em Cercas). Creio
que foi Anselmo que disse que a intuição é o objectivo do pensamento.
5.Seguindo
a linha do historiador e filósofo ateu Benedetto
Croce (1866-1952), Javier Cercas considera que, a Ocidente, não
podemos não nos chamar cristãos. Mesmo os que não possuam fé. A cultura
cristã impregnou os valores e a cultura ocidentais; esta, entrelaçou-se com a
Igreja Católica e não é possível conhecermos a nossa história, e saber quem
somos, prescindindo de conhecer a Igreja. Ora, o contributo fundamental do cristianismo para a nossa cultura foi,
escreve o escritor espanhol, o
reconhecimento da dignidade da pessoa: "...o contributo essencial do Cristianismo ao
Ocidente: num momento em que a escravidão dominava o mundo, a insurreição
conceptual de Cristo consistiu em postular que todos os seres humanos mereciam
respeito e afecto e que, por muito que alguns sejam tratados como vermes,
nenhum deles o é" (p.47). Chamando à colação um ateu militante,
Bertrand Russell, Cercas reafirma: "Inclusivamente
um detractor tão acerbo do cristianismo como Russell reconhecia-lhe sem querer
uma virtude (ainda que a interpretasse como vício): o facto de a doutrina de
Cristo proclamar a dignidade fundamental dos seres humanos. ‘Se o cristianismo
é verdadeiro, a humanidade não é composta por lamentáveis vermes, como parece’ "
(p.46).
Jurgen Habermas, no
extenso prólogo a Um ensaio sobre a
Constituição da Europa (Edições 70, 2012), procede à genealogia do conceito
de dignidade humana – trave-mestra dos nossos ordenamentos
jurídicos e, portanto, da regulação da nossa vida em sociedade – e assume o
determinante acquis cristão: “As raízes diretas do conceito de dignidade humana na filosofia grega,
sobretudo no estoicismo e no humanismo romano – por exemplo, em Cícero – também
não constituem uma ponte semântica para o sentido igualitário do conceito
moderno. Nessa época, a dignitas humana baseava-se no facto de o
ser humano possuir uma posição ontológica distinta no Universo, posição
especial que este assume, devido às propriedades da espécie, como ser dotado de
razão e conseguir reflectir, ao
contrário dos seres vivos «inferiores». O valor superior da espécie talvez possa justificar a protecção da
mesma, mas não a inviolabilidade da dignidade
da pessoa individual enquanto fonte de direitos normativos. Faltam ainda dois passos decisivos na
genealogia do conceito. Primeiro, era necessário completar a generalização a
todos com a individualização. O que está em causa é o valor do indivíduo nas
relações horizontais entre seres humanos, não a posição «do» ser humano na sua
relação vertical com Deus ou com seres inferiores. Segundo, o valor
relativamente superior da humanidade e dos seus membros individuais tem de ser
substituído pelo valor absoluto da pessoa. O que está em causa é o valor incomparável de cada um. Estes dois
passos concretizaram-se na Europa, através da apropriação filosófica de motivos
e conceitos da tradição judaico-cristã, a qual gostaria de evocar brevemente.
A Antiguidade já havia
estabelecido uma estreita relação entre dignitas
e persona, porém, a pessoal
individual, na sua estrutura de papéis, só emerge nos debates medievais sobre a
semelhança do ser humano com Deus. Cada um aparece como pessoa insubstituível e
inconfundível no Juízo Final (…) Este nexo interno entre dignidade humana e direitos humanos é o único que permite estabelecer aquela ligação
explosiva da moral ao direito, na qual é necessário proceder à construção de
ordens políticas mais justas.” (pp.27-57).
Acerca
deste liame entre moral e direito, da importância decisiva que tem
para o nosso tempo, escreveu, para os 80 anos da libertação do campo de concentração de Buchenwald o
filósofo alemão-israelita Omri Boehm,
descendente de judeus mortos na Shoa,
num discurso que não chegou a ser pronunciado (por suposta pressão da embaixada
de Israel na Alemanha, face a este crítico das políticas de Netanyahu), mas que
foi integralmente publicado pelo suplemento Ideas,
do periódico no qual Javier Cercas escreve quinzenalmente, o ElPaís, no passado Domingo: “O anti-semitismo fanático que tinha levado
a Alemanha nazi a tentar exterminar sistematicamente os judeus era, também, um
ataque ao próprio conceito de dignidade humana.
Esse conceito não era novo, nem
sequer então, mas, por fim, através dessas imagens [dos campos de concentração e extermínio nazis e dos seus sobreviventes
e o estado em que se encontravam] foi
reconhecido como a base central da nossa vida em comum sobre a Terra e, algo
pelo qual muitas vezes se passa por cima, foi incluído pela primeira vez nas
constituições dos Estados e nos convénios internacionais. O mérito de
documentos como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos ou da Lei
Fundamental alemã reside em deixarem claro que o Estado de Direito e o Direito
Internacional não são convenções
arbitrárias, mas que se baseiam numa obrigação moral (…) Quer dizer, ao
incorporar a dignidade das pessoas no
Direito a humanidade negou-se a reconhecer a guerra, a máxima contradição de
qualquer ideal, como a origem de todas
as coisas (…) [Ao verter o conceito de dignidade
humana no Direito estávamos] a considerar aquela a máxima expressão do
nosso compromisso com o futuro em função do nosso compromisso com o passado” (ElPaís, 13-05-2025, Ideas, pp.2-3). Ora, num momento em que a desumanização de
sociedades, como aconteceu no massacre do 7 de Outubro em Israel, na terraplanagem
sucessiva de Gaza e seus habitantes, ou na brutal agressão da Rússia à Ucrânia,
bem como na ascensão dos populismos de direita por todo o lado – os quais
pretendem falar, eles, pelo passado, recusando o Estado de Direito e o Direito Internacional -, o compromisso
democrático – do centro, da direita e da esquerda democráticas – têm que ser com esse mesmo “Estado de
Direito e direito internacional”, “uma
alternativa que entenda por que devemos resistir à tentação que emana das
doutrinas de um realismo (neo), de
qualificar a dignidade humana e a paz como nobres falácias ingénuas e que se
amplie o poder da Europa à custa do Estado de Direito” (Omri Boehm).
6.A
quando da sua eleição papal - 95 votos por 115 cardeais, segundo apurou Cercas
-, Bergoglio é questionado, como impõem as regras, pelo responsável pelo
protocolo se aceita a nomeação. Em latim, responde: "sim, apesar de (eu) ser um grande pecador". Cercas, em interpretação
da escolha de Pedro - "sobre ti
erguerei a minha Igreja" - por parte de Cristo, assinala e interroga-se,
com o seu quê de retórico, a acompanhar: porque
escolhe Cristo aquele que foi talvez o mais pusilânime dos apóstolos, o
discípulo que negou, por três vezes, (conhecer) Cristo (depois de Este ter sido
preso), que, desta forma, como que o traiu e foi cobarde? Porque fez esta
escolha quando, por exemplo, "o discípulo muito amado" permaneceu, junto
á cruz, com sua mãe? Não é o exemplo máximo de que a Igreja é, especialmente,
para os débeis? Então, Bergoglio, acrescenta Cercas, “devia ter dito” aceito não "apesar de", mas "porque sou um grande pecador"
(ao ver o filme “Os dois Papas”, de Fernando
Meirelles, em 2020, (eu) tinha tomado o seguinte registo: “Talvez do que
mais tenha gostado no filme "Os dois Papas", de Fernando Meirelles,
como aliás no livro O Papa, de Anthony McCarten, foi do reconhecimento
(aqui ficcionado, sob a forma de confissão),
em cada um dos personagens, de uma ferida,
de uma incompletude, de uma necessidade de Graça.
Da relação do líder dos jesuítas, Bergoglio, com a ditadura argentina de Videla, até ao problema de um padre
pedófilo quando Ratzinger era Bispo
em Munique. Como que a desinstalar-nos da ideia do Papado entregue a homens
"sem pecado", "quimicamente puros", o Papado como que um
"prémio" (de "bom comportamento"); mas (verdadeiramente)
crentes, estes (homens), justamente no reconhecimento de uma falta, de uma
falha que os persegue e os remete à transcendência. Essa encenação fílmica
faz-nos pensar na ideia de Francisco do tesouro da igreja serem os pecadores,
porque na necessidade de pedirem perdão lançam pontes (sendo que, coincidência,
Pontífice é o supremo construtor de
pontes)”.
7.
Javier
Cercas, depois de meses confinado a biografias
do Papa Francisco e escritos/documentos vários do seu pontificado, traça o seguinte perfil do líder da Igreja Católica: é
o primeiro Papa Jesuíta - apesar de durante 20 anos, Francisco ter estado como
que afastado, votado ao ostracismo, em Córdoba, a 700 quilómetros de Buenos
Aires pelos jesuítas (a cuidar de seniores,
cozinhando e lavando a roupa destes; Bergoglio passa, aí, por uma depressão,
mas também escreve dois livros pela mesma ocasião. Todos os dias tem as
persianas do seu quarto fechadas). Companhia
na qual era conhecido por "A Gioconda", dado o seu rosto impenetrável
e na qual é percepcionado com certo traço autoritário (sobre o qual, de resto,
em “A minha vida”, fará mea culpa).
Ele que se torna sacerdote a poucos dias de completar 33 anos. Homem culto, que
gosta das Escrituras, da leitura, da contemplação. Muito espartano, levanta-se
todos os dias pelas quatro da manhã, dedica-se á oração até dizer missa pelas
7h e só depois toma o pequeno almoço. Desde há muito que deixou de ver
televisão, jornais apenas o que os serviços da Santa Sé lhe fazem chegar. Nunca tirou férias, dois dias sequer.
Quando um bispo mexicano foi a Buenos Aires ter com ele, ainda a largos anos de
se tornar Papa, e quis ir jantar a um restaurante, Bergoglio recusou
terminantemente. Nunca faz refeição fora de casa.
Adepto
da Teologia do Povo, corrente
antimarxista ou não marxista, bebe do teólogo uruguaio Alberto Methol Ferré e da filósofa argentina Amelia Lezcano Podetti.
Cercas
observa o Papa como muito afim da social-democracia clássica, em particular no seu depoimento para uma das
auto-biografias (escritas por terceiros, mas com o seu depoimento e colaboração
e, portanto, com esse cariz auto-biográfico) dele publicadas ("A minha
vida", Harper Collins, 2024).
Sendo certo que, em dado momento da sua vida, esteve próximo do peronismo,
regime que, de algum modo, adoptou conceitos e doutrina da Igreja. Nunca foi um
político, recusa a abordagem ideológica das coisas. Dizer que é comunista não
passa de “um disparate” (p.54). Do que não há dúvida é da sua constância na
opção
preferencial pelos pobres, praticada nas suas permanentes idas às villa miseria
de Buenos Aires. É muito mais conhecido aí, enquanto Bispo e cardeal, do
que nas zonas mais confortáveis da cidade. Dialoga com os locais, confessa,
abençoa. Faz-se pobre para os pobres
(não vai ter com os pobres desde uma posição
vertical, como um outro que lhes vai fazer um favor; como um igual,
acentuando a sua dignidade; quer ser um homem comum - ainda que em cargos de
grande responsabilidade desde cedo na sua vida). Em 2010, três anos antes de
ser eleito Papa, Bergoglio afirma: “A
opção pelos pobres vem desde os primeiros séculos do cristianismo. É o próprio
Evangelho. Se eu hoje em dia lesse como sermão os sermões dos primeiros padres
da Igreja - séculos II, III - sobre como há que tratar os pobres, diriam que
era maoísmo ou trotskismo" (p.54). Quando a Argentina passa por uma crise
económico-social duríssima no início
deste século, Bergoglio instala uma verdadeira Igreja-hospital de campanha. O relato é de Austen Ivereigh, citado por Javier Cercas em “El loco de Dios en el
fin del mundo” (p.80): “Em Buenos Aires,
o cardeal Bergoglio mobilizou as cento e oitenta e seis paróquias da cidade,
oitocentos sacerdotes e mil e quinhentos membros de ordens religiosas, assim
como cerca de um milhão de católicos praticantes. A todos instou a ir às ruas,
ao encontro das pessoas necessitadas. Começou a ser normal que as pessoas que
iam assistir à missa levassem alguma comida para a distribuir ali mesmo. As
Igrejas estavam abertas à noite, para dar abrigo ao crescente número de pessoas
sem abrigo. Debaixo das pontes instalaram-se fornos com bombas de gás butano
para que as pessoas pudessem preparar o seu próprio pão, e apareceram
enfermarias ambulantes que ofereciam medicamentos. A Caritas também ampliava os
seus projectos a nível local, à medida que chegavam doações do estrangeiro,
sobretudo com a construção de albergues para pessoas sem abrigo e a criação de
programas de formação profissional para milhares de trabalhadores que
procuravam emprego (…). Entre
aqueles que aguardavam o seu turno para receber um prato de sopa, nas paróquias
havia pessoas qualificadas que tinham perdido as suas casas depois da quebra
dos seus negócios e, muitas vezes, dos seus matrimónios. A crise era, em certos
aspectos, mais devastadora para aquela que tinha sido, noutros tempos, a maior
classe média da América Latina. Para uma geração de pessoas de uma certa idade,
foi uma auto-estrada para a depressão e o desespero. Sem segurança social da
qual depender, e sem a resistência adquirida dos pobres de longa duração, para
centenas de milhares de argentinos despossuídos a rede de beneficência das
dioceses era, literalmente, um salva-vidas (…). Para Bergoglio foi um tempo de velar pelo seu povo, de ajudar a
alimentá-lo e de dar-lhe tecto até que a crise passasse” (p.80). Isto fez, então, com que naqueles “anos
tremendos”, a Igreja fosse “a instituição mais valorizada pelos argentinos”.
A
mulher de Javier Cercas advertira-o à partida para a Mongólia: ainda vens de lá
como “um soldado de Francisco”, “pensas que vais apanhar Francisco, mas ele é que te apanha a ti”; amigos do escritor dizem-lhe que a Igreja convida um
ateu para esta empreitada precisamente para a sua imagem ser depurada…
O
certo é o autor sentir a necessidade de ser contundente com o seu biografado, o
Papa Francisco, em alguns períodos do livro: sobre o passado de Bergoglio, considerando que não soube defender, ou não
defendeu dois jesuítas da ditadura argentina, não erguendo a voz quando esta se
instalou, ainda que contextualizando a guerrilha, os sequestros e as mortes que
precederam essa instauração militar e como, em plena ditadura, salvou outras
pessoas (face a esse tenebroso regime); em relação à Ucrânia, escrevendo que quem não critica os algozes, pode confundir
vítimas e carrascos, considerando que o Papa devia, desde o momento
inicial, ter sido muito mais crítico da posição russa; no que vê como exagero
diplomático da recepção e troca de palavras com os dirigentes mongóis (por
exemplo, o elogio da pax Mongólia,
obliterando como esta se instalou após muito sangue derramado por Gengis Khan, hoje reverenciado naquelas
paragens e dando nome, por exemplo, a um aeroporto na capital, ou o elogio à
relação mongol com a criação, quando
o tipo de políticas do governo coloca a capital num ambiente altamente
poluído). Quando chega a considerar que lhe interessa mais o missionário do que o Papa – embora adiante
não deixe de reconhecer o Papa como missionário. Na critica às referências aos
chineses no final da alocução na missa que celebra na Mongólia e o modo como
tal fará esquecer os (anti) heróis missionários naquele país (que muito
impressionaram Cercas; se há, porventura, um herói neste livro de Cercas, talvez seja - a bondade, a paciência,
a mansidão, a alegria, a sabedoria de - o padre Ernesto, o mais velho dos missionários católicos na Mongólia). Na
reacção, que vê como intolerante e quase justificativa, a quando do ataque ao Charlie Hebdo. Ou, ainda, observando
como que uma duplicidade entre Bergoglio e Francisco, a qual, bem sopesada, não
mais é do que a própria de pessoas poliédricas e complexas como os humanos
tendem a ser (há tanta distância entre nós e os outros, como entre nós e nós mesmos,
tomará de Montaigne, a este
propósito), com diferentes fases (e faces) na vida, em que a evolução na
personalidade também ocorre, sendo que, e todavia, nenhum melhor e maior
elogio, desde sempre Bergoglio seria um
intenso admirador e seguidor de Cristo, no início da sua maturidade ainda
permeado ou tomado por lógicas de autoridade
ou poder, como Papa Francisco podendo
ser mais Bergoglio que Bergoglio, o Bergoglio que Bergoglio gostaria de ser, a quinta essência de Bergoglio, o
Bergoglio ideal, o Bergoglio finalmente cumprido.
8.Não
é a política o que realmente interessa Javier Cercas no Papa Francisco
(evidentemente, “o neoliberalismo não
podia ser o eixo do nosso pensamento sem abdicar de uma série de convicções”
(p.451), regista o Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, Pe.
Victor Manuel Fernandez). No Sumo Pontífice da Igreja Católica o que lhe importa deveras é a religião.
Di-lo, repete-o, como se não fosse, e devesse ser, uma obviedade. E esta, a
religião, in limine, subsumida a uma
pergunta: é verdade a ressurreição da carne e a vida eterna?
Conta a vários dos seus interlocutores destacados do Vaticano – “a ideia de que na Igreja todos somos bons e
santos é falsa (…) Aqui, todos somos
homens e mulheres, todos somos imperfeitos…Mas a ideia contrária também é
falsa. Não somos nem anjos nem demónios” (p.165), afiança Paolo Ruffini, Prefeito do Dicastério para a
Comunicação - na preparação da aventura da viagem à Mongólia, partilha
com vaticanistas, revela a conhecidos
e amigos a pergunta que quer fazer ao Papa. Invariavelmente, a resposta que
obtém é: “genial!”, “boa!”, “essa
pergunta ninguém lha faz”. A ironia, o sarcasmo com que Cercas nos conta
tais reacções concretiza uma das obsessões que lhe vemos no livro: como é possível que em documentários com o
Papa, em sucessivas peças
jornalísticas acerca deste, pronunciamentos do próprio só se fale de temas
políticos e pouco, quando não nada, de questões religiosas, sendo estas aquelas
que dão legitimidade e autoridade específicas aquela fala? Spadaro, no primeiro
diálogo com Javier Cercas, antes da partida para a Mongólia propõe certa
explicação para tal suceder: repare
na encíclica Laudato Si. Todos os
pressupostos, quanto ao cuidado com a criação,
que ocupam muitas páginas do documento, são teológicos. No entanto, como os media não sabem como hão-de pegar nestes
pressupostos, acabam por relatar apenas as suas consequências, isto é, o
discurso ecologista ali presente. E
se relativamente a Deus apenas a linguagem simbólica, poética pode fazer tangente, como pode o jornalismo, que
não faz poesia, aproximar-se das questões
últimas? E, ainda que o fizesse, num Ocidente tão secularizado, o interesse
pela política parece sempre superar aquele que existe pela religião? Ou, em realidade,
não exatamente assim: o humano, confrontado com a sua mortalidade, mas mais
ainda sobre como viver, não prossegue, no seu íntimo, uma procura que não
cessou e não pretende uma palavra sobre o assunto, muito mais do que acerca do
tema da tarde, velho dali a umas horas? Em realidade, a demanda espiritual está
muito longe de ter cessado e cabe á Igreja, pelo seu testemunho e pela capacidade de dizer através de outra linguagem (uma questão recorrente ao
lado da qual “El loco en el fin del mundo” não passa), conectar-se com o seu
tempo e as pessoas que o habitam. Depois da queda de todos os impérios, a promessa ressurreição da carne e vida eterna
mantém a Igreja de pé: “essa
promessa demonstrou ser indestrutível, mais poderosa do que todos os exércitos
juntos” (p.464).
Na
conversa em Roma, já após a chegada de ambos da Mongólia, Spadaro dirá a Cercas
que “é importante que diga isso” (é
importante, inclusive, a crítica ao Papa de, no final da visita à Mongólia, ter
colocado a ênfase no sinal à China e aos chineses, ajudando a que as manchetes
não tivessem que dedicar-se à Igreja missionária, e seus (anti)heróis, da
Mongólia).
Como pode a Igreja fechar o
seu tesouro escatológico?, inquire-se de há muito. Mesmo no
interior da Igreja – sobre a questão da necessidade da preeminência, no discurso
eclesiástico, de Deus sobre o demais, nomeadamente o político, por exemplo,
recentemente, o padre George Augustin,
em “Deus no centro da vida” (Paulinas,
2025). Todavia, ainda aqui, as questões envolvem, sempre, complexidade
adicional: é que Francisco não se refugia em respostas abstractas, pretende
falar dos problemas comuns da Humanidade e das concretas comunidades a quem se
dirige – tirar o Cristo das sacristias e
levá-lo ao mundo – e dada a sua
profunda espiritualidade cristã, e a partir dela, não pode deixar de falar de
pobreza, imigração, ecologia. No que Francisco cumpre com o pedido de
Augustin – que, sem embargo, coloca em causa a opção preferencial pelos pobres – é no modo rotundo como responde
à questão da ressurreição da carne e da
vida eterna – “com toda a segurança”.
Diferentes discursos teológico-pastorais acentuarão a
preferência pela dimensão da “nuvem do não saber”, do “desejo de Deus”, de
transitar na “sede como única luz na noite” ou, em um foco outro, na dimensão
da “segurança” e da “certeza” (sendo que se compreende que, eventualmente, o "lugar de fala" pode, aqui, não ser indiferente à opção, ainda que não necessariamente - vide, Pe. Vítor Fernandez falando sobre a aposta de Pascal, que lhe serve quando tem momentos de vacilação).
9.O
atual Prefeito para a Congregação da
Doutrina da Fé, Pe. Victor Manuel Fernandez foi reitor da Universidade
Católica da Argentina entre 2009 e 2018 e Arcebispo de La Plata, entre 2018
e 2023. Tal como os grandes místicos, João
da Cruz, Santa Teresa ou, ainda,
quem escreveu o Cântico dos Cânticos,
Vitor Fernandez atreveu-se a elogiar o erotismo, a falar do amor humano para
falar do amor de Deus. Há pouco mais de 10 anos teve, pois, de se haver com
denúncias de colegas seus ao antigo “Santo Ofício” e, durante mais de um ano,
responder, sucessivamente, sobre os seus escritos aquele órgão da Igreja. “Foi uma humilhação”, refere. Pediu a
Bergoglio, então Arcebispo de Buenos Aires, que o reconduzisse à posição de
padre da sua terra, não tinha ambições outras.
Eleito
Papa, Francisco não apenas o torna bispo,
como o escolhe para o Prefeito para a Congregação
da Doutrina da Fé: só quem tinha sido, ou sentira humilhado por tal organismo
estaria, então, em condições de o reformar,
no sentido de uma “não caça aos hereges e às heresias”, a um diálogo mais respeitador da dignidade de cada
um quando questões doutrinais se colocarem relativamente a escritos ou posições
de algum autor na Igreja.
Sim,
afiança o Pe. Fernandez: o Papa Francisco
gostaria que padres casados tivessem lugar na Igreja (de rito latino, também); acontece que o nível de confrontação foi tal,
na Igreja, a este propósito que entendeu não avançar. É que não se pode defender um caminho de
sinodalidade – para muitos, o programa de Bergoglio, não apenas para a América
Latina, mas extensível à Igreja toda fica estabelecido no Declaração de Aparecida,
em 2007 - e, ao mesmo tempo, comportar-se
como um monarca absoluto. Os processos são o mais importante – o desencadear,
à luz do discernimento, discussão e debate para que mudanças eventuais possam
ocorrer, no tempo certo. Lentidão pode ser sabedoria.
Por
outro lado, o Papa Francisco e os seus mais próximos fazem radicar no clericalismo,
na ideia de um clero como separado e em plano superior ao demais povo, no abuso
de poder (e, em especial, no abuso de poder espiritual) a origem (o radical) que levou à consumação do ato de pederastia ou abuso outro. Javier Cercas, o escritor espanhol ateu,
pergunta ao jesuíta Antonio Spadaro: não será o celibato uma expressão do clericalismo? Quer dizer, a ideia de que
um homem está acima ou além dos desejos e necessidades - nomeadamente, os de
ordem sexual - dos demais, não resulta da ideia de uma superioridade ínsita ao
sacerdote? E "como não se pode ser
sublime ininterruptamente" (Baudelaire),
quando advém esses desejos e necessidades, dado não haver uma relação saudável
permanente/estável com outra pessoa (amada) o impulso para satisfazê-la com
menores - mais susceptíveis ao ascendente, até espiritual - ou, mesmo, com
maiores, de forma abusadora? E a questão da solidão dos sacerdotes, aqui
envolvida? Spadaro responde: a) grande
parte dos abusos sexuais, nomeadamente a menores, dão-se no interior das
famílias; b) portanto, são
perpetradas por pessoas casadas (e não celibatárias); c) as Igrejas protestantes, anglicana e
ortodoxa não impõem o celibato, mas
nelas ocorreram igualmente abusos sexuais e pederastia, mau grado os pastores,
ali, serem casados.
Não existindo uma causa-efeito que factores de risco nos perpetradores podem fazer desaguar uma “sexualidade
reprimida” em eventual abuso?, procuram, hoje, detetar profissionais na área da
saúde (mental, psicológica).
Por
outro prisma, ainda, e tantas vezes negligenciado ou ignorado, o celibato pode também ser visto como
doação total. Padres protestantes há que dizem ter dificuldades em compatibilizar a sua vida matrimonial - cuidar da
mulher e dos filhos - e a sua disponibilidade para atender a comunidade.
Portanto, o celibato (católico) como potencial – e seguramente várias vezes
concretizada - oferta total de si e da
sua disponibilidade.
10. A
Mongólia só em 1911 se torna independente (da China, com a ajuda dos russos).
Entre 1924 e 1990 é governado pelo partido comunista. Dos mais de cem mil
monges budistas em pelo início da década de 1930, restam umas centenas na
década de 90. Mais de 17 mil monges budistas foram assassinados. Templos destruídos.
Religião proibida. Mas a fé permaneceu em muitos, uns quantos religiosos formaram-se
mesmo nas décadas de 70 ou 80.
João
Paulo II visitou 29 países em 25 anos; Bento XVI visitou 23 países em 8 anos.
Alguns dos países visitados por Francisco: Uganda, Quénia, Equador, Sri Lanka,
Filipinas, Myanmar, Bangladesh, Arménia, Cazaquistão, Sudão do Sul, Panamá,
Bahrein, Madagáscar, Bolívia, Geórgia, Azerbaijão, Moçambique, Congo, Iraque,
Eslováquia, Marrocos, Macedónia do Norte…Ir às periferias, ir a Igrejas
minoritárias, mas repletas de espírito missionário, alegres, vivas. Como que
revisitar o cristianismo primitivo, as primeiras comunidades cheias de ardor e
compromisso. O critério não pode ser o do êxito, o padre Ernesto, o mais antigo
missionário da Mongólia, se baptizou 12 pessoas em dez anos, para pormos um
exemplo, vê isso como uma grande vitória. Há 30 anos não havia ninguém católico
na Mongólia. Ainda é estranho para a família, para os colegas de trabalho que
alguém seja católico, na Mongólia. Ir para os confins do mundo, parar a uma
cultura e uma língua completamente desconhecidos, passar invernos a 40 graus
negativos como sucede na capital mongol – Ulan
Bator, nome que só os assinantes mais fanáticos da National Geographic
conhecerão e no qual se concentra metade
da população da Mongólia; esta é a parte ocidentalizada do país, com o Teatro Ópera e acolhimento à maioria dos
300/400 mil turistas anuais -, ingressar em terras nas quais, historicamente, o
cristianismo (quase) nunca conseguiu penetrar, inculturar(-se), aceitar a
solidão, não esperar multidões de fiéis, celebrar os ritos, por vezes, num
apartamento…Encontrei a solução para todos os problemas do catolicismo, diz
Javier Cercas: serem (todos) missionários.
Sendo certo que, por vezes, se pode ser missionário…perto de casa - "Juan Carlos Velásquez Rúa é um sacerdote
colombiano que, em 2002, dois anos depois de ter sido ordenado, foi destinado à
paróquia de São Fernando Rei, um dos bairros mais violentos de Medellín, uma
cidade que, por aquela altura, quase dez anos depois da morte do
narcotraficante Pablo Escobar, ainda não tinha conseguido desprender-se da
reputação de cidade mais violenta do mundo. Um dia, pouco depois do padre
Velásquez ter chegado à sua paróquia, desencadeou-se um tiroteio de rua entre
bandas de narcos rivais e, em vez de se fechar na sacristia esperando que
amainasse a chuva de balas, aquele louco colocou-se no meio da rua, barbudo,
com o cabelo largo e armado de um cartaz que rezava assim: "Dão-se aulas
de escultura". O padre Velásquez atalhou a refrega com aquele gesto
kamikaze, e durante o resto da sua vida dedicou-se a arrancar da indigência,
das drogas e da criminalidade os rapazes da periferia de Medellín"
(p.79)
Na Ásia, as Filipinas são um
tradicional bastião católico – o Papa ali rezou missa
para mais de 6 milhões de pessoas – e a
Igreja Católica no Vietname está com um grande dinamismo. Já na China, onde
o Partido Comunista não admite nada
menos do que um controlo total, nem uma árvore de Natal os restaurantes estão autorizados
a colocar nos seus escaparates. Não era assim até à chegada de Mao – até aí, milhares de bispos e dioceses,
muitos milhões de fiéis. A tensão então emergente com o Vaticano – João Paulo
II não podia sobrevoar céu chinês; Francisco já o pôde fazer e enviou telegrama
habitual ao Governo cujo estado foi por si sobrevoado – continua por
restabelecer totalmente. O Vaticano não
tem relações diplomáticas com a China, não obstante os relativamente
recentes ajustes quanto à nomeação de bispos, da a existência de uma Igreja de obediência a Roma e outra de
obediência ao regime. De modo que quando Javier Cercas – que vira
exclusivamente a ida à Mongólia como resultado da centralidade das periferias
no pensamento/sentimento, no discernimento (Inaciano) de
Francisco – se indigna ou desilude com a simultânea dimensão geopolítica da
viagem, de imediato é chamado à atenção que o Papa não pode desistir de um quarto da humanidade, ainda assim há 7
milhões de chineses católicos (em 1400 milhões de pessoas), e a questão é, até,
a da própria liberdade religiosa daqueles – a qual se pretende garantir.
Javier
Cercas que nos diz, qual declaração de
princípios, que “a Literatura é um
instrumento de conhecimento: serve para compreender”. Não justificar. “A literatura é útil sempre e quando não o
procura ser - quando assim o é passa a ser pedagogia e didatismo” – dá-nos
a ver uma certa frivolidade do mundo mediático mesmo entre vaticanistas, e guarda para si a pergunta que faltou fazer: se, como diz
Francisco, é preciso ir ao fim do mundo, às margens, à periferia para ver o
mundo, o que viu e aprendeu ele do mundo, nas margens, na periferia, na
Mongólia?
Por
vezes, Cercas parece querer fazer jus à ancoragem no “mais piedoso dos ateus” e
situar a sua personagem como o purificador
– na sua procura, nesta peregrinação -, com o Vaticano a agradecer, inclusive,
o bom crítico (“é importante que diga isso”, recordemos Spadaro).
11.Em
Dezembro de 2024, a mãe de Javier Cercas, aos 92 anos morre. Ainda
impressionado com a rotunda resposta do Papa à questão da verdade da ressurreição da carne e da vida eterna e
do encontro pós-mortem da sua mãe com o seu pai – “com toda a segurança”, diz
Francisco; e recordo como uma missionária na Mongólia, perguntada por Cercas
sobre se acreditava em tal conteúdo fundamental da sua fé respondeu “completamente.
Completamente” -, o escritor dirige o seu automóvel, com a sua esposa, depois
de realizado o funeral. Um número desconhecido faz o seu telemóvel tocar e,
ainda que contrariado, Javier Cercas atende. É o Papa Francisco a dar-lhe um abraço
de conforto e a dizer-lhe que rezará pela sua mãe.
Cercas,
emocionado, despede-se como de um amigo, nunca havia acreditado que o Papa
telefonava, com frequência, a anónimos (ou mais ou menos anónimos, pensando
tratar-se de propaganda fidei). Ele
que se lembrara de que no metro, em Espanha, tocara uma música de Bach que
esteve à beira de o levar a um arrebatamento místico e que, justamente, essa
foi a música que foi tocada na missa do Papa Francisco na Mongólia não é de
coincidências, mas nota que se tem tido um grupo de amigos como aquele com quem
privou durante os dias que deram azo a “El loco de Dios…” talvez nunca tivesse
deixado o catolicismo.
Quando
regressa da Mongólia, a mulher provoca divertidamente Cercas: então, vieste convertido, já és mais um
soldado do Papa Francisco? Tranquila, responde, ateu e anti-clerical, como o
Papa Francisco. Bem, o Papa Francisco é só anti-clerical. Humor, que nas
nossas línguas significa graça, dom gratuito de Deus, talvez por isso tão do
agrado do Papa – a melhor manchete de jornal de sempre, a colombiana no dia
seguinte à eleição de Francisco, assegura Cercas: “Argentino, mas modesto”.
Francisco dá uma gargalhada - que convidou Ricardo
Araújo Pereira, Valter Hugo Mãe –
“o cardeal Tolentino é o melhor poeta português, merecia o Nobel”, dirá a
Cercas, José Luis Peixoto, Gonçalo M. Tavares ou Javier Cercas para o encontro com os
artistas na Capela Sisitina. Quando
se encontra sós com José Tolentino de
Mendonça, este pergunta-lhe se conhece Mário
Cesariny e aquele começa a dizer um poema, recitado, de imediato, a duas
vozes. Empatia e identificação imediatas, na proximidade hospitaleira do
cardeal madeirense. Para o qual há dois tipos de pessoas: as quem têm medo das
outras, e as que possuem curiosidade por aquelas. “A Igreja deve inculturar-se tanto na Mongólia como, digamos, em Espanha.
(…) Talvez agora já estejamos num tempo
de pós-secularização. Refiro-me ao facto de na Europa as pessoas já não irem às
igrejas, mas sentirem uma necessidade de busca espiritual. Talvez, sobretudo,
os jovens. Muitos deles têm essa necessidade, mas não podem satisfazê-la na
Igreja, porque não querem uma Igreja institucional, mas relacional. E este Papa
entendeu-o, e daí que tenha colocado no seu centro da sua forma de fazer e de
ser a relação pessoal, a cultura do encontro” (p.418), observa sor
Nathalie, uma das mulheres que o Papa Francisco colocou em cargos de relevo no
Vaticano.
Pedro
Miranda
“«Santidade»,
falei então. «Já lho disse antes: a minha mãe acredita na ressurreição da carne
e na vida eterna; acredita que, depois de morta, voltará a ver o meu pai. A
Igreja prometeu-lho». «E a mim também», acrescentou Bergoglio. «Prometeu-nos a
todos». (…) É a promessa do Senhor: que eu estarei convosco todos os dias, até
ao fim do mundo…(…) A História passa momentos obscuros, passa momentos felizes,
mas o Senhor sempre está (…) «Santidade – volto a falar - essa promessa, a de
que Deus sempre estará presente junto aos homens, é extraordinária…(…) «Sim,
essa promessa é extraordinária. E, ao mesmo tempo, é ordinária, porque se
cumpre a cada minuto de cada dia. É quotidiana» (…) «A prova da nossa
ressurreição é que Cristo ressuscitou» (…)
«Santidade,
se esse é o núcleo da mensagem da Igreja, porque é que a Igreja fala tão pouco
dele?» «Tão pouco? Não sei, eu creio que não falamos de outra coisa» (…)
«Então,
posso dizer à minha mãe que quando morrer, vai ver o meu pai». A reacção do
Papa é fulminante: não duvida nem um segundo, nem uma décima de segundo, nem um
milésimo de milésimo de segundo; fecha os olhos enquanto a sua cara se contrai
numa expressão que parece de dor e não o é e, quando os volta a abrir, diz: -
«Com toda a segurança». Ouço-me repetir: «Com toda a segurança?». - «Com toda a
segurança» - O sorriso de Bergoglio transforma a sua falsa expressão de dor
numa expressão autêntica de alegria. «Com toda a segurança». (…)
Observando-nos
alternativamente ao Papa e a mim, a minha mãe repete: «Com toda a segurança».
«Isso o disse: com toda a segurança». «Com toda a segurança…Que coisa, não é
verdade?» (…) O pasmo autêntico senti-o no voo para a Mongólia. Não esperava a
resposta do Papa. Melhor dito: não esperava essa resposta. Não esperava que
Bergoglio respondesse de semelhante maneira a uma semelhante pergunta formulada
por um maldito intelectual ateu. Não sei o que esperava, honestamente; ou sim,
sei-o: talvez uma evasiva, uma metáfora, um circunlóquio, uma passagem
evangélica, a glosa de uma passagem bíblica; tudo, menos uma resposta tão
ingénua e tão contundente; tão cristalina: essas três palavras elementares, sem
volta atrás: «Com toda a segurança». Nem um resquício para a menor incerteza,
ou vacilação, ou reserva; nem para as angústias eruditas do cardeal Ravasi, nem
para o pragmatismo humano, demasiado humano do Grande Inquisidor, de Bergoglio,
nem, muito menos, para as noites escuras da alma de São Manuel Bom, mártir.
«Com toda a segurança»: a fé campesina dos paroquianos de Valverde de Lucena, a
fé missionária do padre Ernesto e seus companheiros da Mongólia, a fé imemorial
da minha mãe e do meu pai, a fé herdada dos meus 9 ou 10 anos, a fé proverbial
do carvoeiro. Essa é a fé irrevogável de Bergoglio (…) essa é a fé sem claros-escuros
de Bergoglio (…) a fé que o converte num cristão sentado na cadeira de São
Pedro. (…)
[Digo
a Bergoglio] «É extraordinário. É um escândalo». «É um escândalo – admite ele.
De imediato, com o fatalismo de um velho cura de aldeia, acrescenta: Mas é assim:
a promessa do Senhor é essa. Vai levar-nos a todos ali. Com Ele. A todos. A sua
mãe, o seu pai…A você também, ainda que não acredite. Isso a Ele dá-lhe
igual…[Encolhe os ombros] O que é que vamos fazer? São as coisas de Deus. (…)
E
se é verdade?, pergunto-me. Terá razão Hannah Arendt quando diz que os ateus
são néscios que pretendem saber o que nenhum ser humano pode saber? E se for
Francisco quem tem razão? E se têm razão minha mãe, meu pai e don Florian e o
padre Ernesto e os demais soldados de Bergoglio? (…) E se Nietzsche se
equivocava e o cristianismo não é uma negação da vida, mas uma rebelião contra
a morte e, por isso, a ressurreição da carne e a vida eterna estão no seu
centro (…), porque representa a afirmação da vida além da vida, além da morte?
E se o cristão de verdade não é aquele que crê na ressurreição da carne e na
vida eterna para consolar-se da [emergência] da morte ou por medo à
aniquilação, mas porque rejeita a morte e se rebela contra a aniquilação e
rotundamente se nega a morrer e exige viver mais, mais tempo e mais a fundo, ao
fundo do fundo do tempo? (…) E se o impossível é certo?"
Javier
Cercas, “El loco de Dios en el fin del mundo”, Random House, 2025, pp.473-479.

Comentários
Enviar um comentário