O «FOSSO» E A «MAQUINIDADE DO MUNDO»

 

O «fosso» e a «maquinidade do mundo» – para além de causas políticas e históricas a emergência do «monstruoso» (que pode repetir-se)

1.Se a Antígona estava acometido o imperativo categórico de não deixar insepulto o corpo/cadáver do irmão em respeito das leis eternas (que a isso obrigam), a Klaus Eichmann, em nome dos mesmos valores, outra face de idêntica moeda, está vedado o luto do pai, Adolf Eichmann. Klaus não tem legitimidade de realizar o luto do pai, de chorar por aquele, encontra-se sujeito a esse interdito, porque só podemos fazer o luto daqueles que também pudemos respeitar. Ora, Adolf Eichmann, pelas suas acções determinantes na maquinação e na maquinaria da solução final, revelando, aí, naquele “respeito escrupuloso [que teve na e pela burocracia que redundou no transporte e eliminação de milhões de pessoas, muito especialmente judeus] e por isso desprovido de escrúpulos” relevante papel na Shoa, evento para o/na descrição do qual “faltam palavras não só a mim, mas à própria linguagem”, mais não demonstrou do que a explícita destruição do respeito; o que exibiu, profusamente, foi, em realidade, o “não respeito explícito pelo ser humano e o desprezo explícito pelas vidas humanas”. Ora, a pertença familiar não confere (ao sujeito) direito (legitimidade) a solidarizar-se com quem assim agiu. O único luto que Klaus Eichmann pode reclamar para si é o luto do luto por fazer, o qual lhe foi retirado pelo próprio pai, em virtude do absoluto desrespeito pelo humano. Quem assim argumenta é Gunther Anders (1902-1992), filósofo judeu, em carta aberta a Klaus Eichmann (tinha, Anders, 62 anos, e Klaus, 28), escrita em 1964.

2.A carta aberta que Gunther Anders, pseudónimo de Gunther Stern, escreve a Klaus Eichmann é motivada pela ocorrência do “monstruoso”, a saber, a existência do extermínio institucional e industrial de milhões de seres humanos, com múltiplos Eichmanns como mediadores da morte e, outrossim, milhões de pessoas levadas e mantidas numa situação sem que nada pudessem saber.
O “monstruoso” ocorreu e pode voltar a suceder; “as repetições do monstruoso não só são possíveis, como são prováveis”. E são-no em função do que largamente supera as raízes históricas e políticas nas quais se deu a Shoa, a saber, i)o fosso” e ii) a “maquinidade do mundo”, isto é, o facto de sermos, também hoje e cada vez mais, criaturas de um intrincado mundo tecnocientífico que edificámos (“por a técnica ser nossa filha, seria tão cobarde quanto tolo falar da maldição que lhe é inata (…) Esta maldição é a nossa maldição”), mas que se revela “demasiadopara nós – o que, como se verificará adiante, na teorização de Anders, de modo algum justifica ou absolve quem, colocado perante tal universo, e, de resto, não ignorando a configuração daquele, se projecta no desrespeito do humano.
O próprio, o específico de abissal (o “fosso”) com que somos confrontados neste intrincado mundo tecnocientífico que frequentamos é o facto de que “o que conseguimos fazer é maior do que aquilo de que conseguimos fazer uma imagem”; dito de outra forma, “entre a capacidade de produção [que possuímos] e [a capacidade] de representação [das consequências da capacidade de produção que temos] cavou-se um abismo”; a nossa capacidade de produção é desmedida e a nossa capacidade de representação (dos efeitos dessa produção, enquanto “nossos”) é intrinsecamente limitada. Há uma mediação ilimitada dos nossos processos de trabalho, o agravamento da divisão do trabalho impõe-nos a concentração em partes ínfimas do processo total/global, os objectos que, com a ajuda da técnica, conseguimos engendrar e os efeitos que estamos em condições de desencadear (enquanto nossos) são tão grandes e explosivos que já não conseguimos compreendê-los; a magnitude do processo industrial, comercial, administrativo não nos permite ver o todo; o mundo torna-se cada vez mais obscuro, “a ilustração não acompanha o crescimento da técnica”; o mundo tende a apresentar-se como “máquina”, destinado ao princípio desta – o rendimento máximo – e, com a sua capacidade de império (colonizando mundos circundantes de que necessita e impondo a estes o ser co-máquina; “o mundo como máquina é verdadeiramente a condição técnico-totalitária para a qual somos impelidos”; “caso nos abandonemos a este desenvolvimento, teremos de perder a nossa natureza humana” e, com efeito, somos cada vez mais impelidos para tal “noite”, a do “totalitarismo da máquina” e “a nossa conversão em peças de máquinas progride imparável com este processo”).
Aquilo a que é necessário reagir torna-se excessivo e, então, o nosso sentir falha; no limite (do desumano), 6 milhões, em processos de impessoalidade (a que estão adstritos muitos dos que neles trabalham e colaboram), transformam-se num número, enquanto, por sua vez, um único homicídio suscita-nos horror. Mas eis que o choque do nosso fracasso detém um intrínseco poder de alerta, revelando uma nova normatividade:
 
Não consigo representar o efeito da acção.
Logo, trata-se de um efeito monstruoso da acção.
Logo, não posso responder por esse efeito.
Logo, tenho de rever ou recusar ou combater a acção planeada.
 
3.No caso de Adolf Eichmann, esta (alegada) incapacidade de representar os efeitos (enquanto “seus”) resultantes da magnitude dos processos (de trabalho, administrativos, industriais) em que se envolveu não pode, sequer, ser invocada. Em primeiro lugar, porque ao estar no planeamento da própria solução final, Adolf Eichmann foi dos primeiros a “ver” (representar) os resultados que aquela acarretaria (“visão” sem a qual não se poderia, aliás, falar de “planos”, e mesmo que a “visão” não pudesse ser completa e total no momento do planeamento); em segundo lugar, porque não é aceitável arguir-se que, nas suas tarefas rotineiras e burocráticas diárias, Eichmann não lidava, não observava os milhões de rostos, os milhões de seres humanos abatidos, incinerados como resultado final das acções em que também participava, dado que o autor, voluntariamente, assim se colocou, utilizando, aliás, esse deliberado não olhar as pessoas conduzidas à morte - mortes, sucessivas, de humanos - como ecrã desresponsabilizante. Face à regra a observar tal como definida no ponto precedente, em Eichmann houve como que a perversão e a degradação da norma, de tal modo que esta pudesse ser, como evidentemente não poderia, formulada do seguinte modo:
 
Não reconheço o monstruoso.
Sou incapaz de o reconhecer, graças ao «fosso».
Logo, nada me pode ser imputado.
Logo, posso fazer o monstruoso.
 
Ou
 
Não vejo de todo diante de mim esses milhões de pessoas que
Envio para as câmaras de gás.
Não as vejo, de todo, diante de mim.
Logo, posso enviá-las tranquilamente para as câmaras de gás.
 
4.Obsoleto é o humano – obsoletos somos os concretos humanos – incapaz(es) de representar tudo aquilo que provoca(mos) (e pecado é colocarmo-nos em situação de utilizar o não vermos como desculpa para integrarmos o processo do “monstruoso”). Todavia, e ainda assim, dado virmos ao mundo como humanos e arrastando, por consequência, connosco, “derradeiros rudimentos de tabu”, figuramos, no limite, como sujeitos de uma condição inoportuna – os “rudimentos de tabu” “são superlativamente inoportunos” (para os que pretendem conformar e conformar-se aos projectos mais inumanos conhecidos no humano caminhar). É por isso que “muitos dos que foram designados para a função de lacaios nos campos de extermínio tiveram inclusive de frequentar cursos nos quais, mediante a execução de tarefas de tortura e assassínio, deveriam aprender a «assassinar» também os seus tabus”. E é o próprio Eichmann, ademais, que refere, em certa ocasião, “como por vezes se sentia mal, como se lhe dava a volta ao estômago quando sucedia olhar para o chão de onde jorrava o sangue da massa assassinada”. Nesta espécie de “irrupção fisiológica da moral”, “o estômago tornado o último bastião da civilidade”, podemos como que antecipar, de resto, não apenas a refutação de qualquer lágrima justificada ao passamento daquele, mas, além disso, nota Tiago Mesquita Carvalho, no Prefácio a “Nós, os filhos de Eichmann” (Antígona, 2025; título da obra, o qual, significa que somos todos, “pelo menos, filhos do mundo de Eichmann”, filhos de um mundo em que o aparelho técnico-científico é extremamente denso com potenciais consequências como as que ocorreram por e em Eichmann também; “não há nenhum motivo para sermos altivos face ao [a este, em particular] passado [no qual, Adolf Eichmann interveio]; o passado não aconteceu por ainda ser ontem, mas por ser já o mundo que viemos e vimos a habitar, incrementando, de sobremaneira, a preponderância da maquinidade do mundo), uma (possível) objecção à perspectiva de “banalidade do mal” que Hannah Arendt considerara – como incapacidade de representar o mal e de a ele não se conformar; o não assomar deste à consciência (não sendo radical, não chegando à raíz do pensamento).
 
5.Em 1988, Gunther Anders – primeiro marido de Arendt - escreve uma segunda carta aberta a Klaus Eichmann. Embora sem que o ensaísta o soubesse, Klaus, como outros três dos quatro filhos de Adolf Eichmann – a excepção foi Ricardo Eichmann – permaneceu fiel ao pai e, mais ainda, criou células nazis na Argentina, preparando ataques a judeus.
Nesta segunda epístola ficava, porventura, ainda mais claro o ponto com que principiara o seu primeiro manuscrito dirigido a Klaus: também a Anders “nenhuma morte humana me deixa indiferente” – considerando que pode interpretar-se como contendo um implícito reconhecimento da centralidade do humano (de cada humano concreto), da dignidade intrínseca neste presente (antes e depois dos seus actos). O que não pode suceder é homenagear-se o que aquela pessoa fez, reivindicando-se, bem ao invés, assim, nesse deslegitimar da solidariedade com aquele agir, uma dimensão ou ordem (ética) que supera vínculos familiares (ou sanguíneos; de resto, minha mãe, meu pai e meus irmãos são os que fazem a vontade do meu Pai). É que com a aludida solidariedade negar-se-ia o sofrimento e a morte de milhões de vítimas – o princípio filial, justamente, não há-de superar o respeito pelo carácter sagrado presente no humano, imagem e semelhança cuja desfiguração não pode ser consentida por qualquer outro laço. A negação, em homenagem a quem perpetrou actos de total desprezo pela pessoa no que reivindique e vindique os mesmos e anule as vítimas inocentes e anónimas da história, como que possui uma solidariedade com o verdugo – e a negação do não matarás - pela preponderância do princípio familiar. Tal solidariedade, no limite, no caso vertente, na leitura de Anders significaria a “profanação dos cadáveres através da negação dos cadáveres”.
De resto, os que se conceberam como uma espécie de herdeiros do nacional-socialismo Heil é uma palavra que remete, em simultâneo, para saúde, cura, salvação e Gunther Anders regista como ela foi deturpada no uso com Hitler, Salve, Hitler - tenderam a representar os seus críticos como atribuidores, de modo unânime, de uma culpa colectiva aos alemães [pelo sucedido durante o período em que os nazis estiveram no poder] ideia a, qual, de culpa colectiva alemã (entre 1933-45), de resto, os nazis sempre manipularam e perverteram criando a seguinte tradução desta, como que a reivindicando, afinal: se todos os alemães eram culpados, então nenhum o era.
Do mesmo modo (manipulador e perversor), os nazis, ao tomarem os judeus como “bolcheviques”, procuravam posicionar-se como mais do que tendo tido iniciativa (de perpetrarem crimes hediondos), responderem a revolucionários e malfeitores, curiosamente a, em simultâneo, e “bajulando o proletariado”, descreverem os judeus como “usurários”, fazerem o mal e a caramunha, serem Marx e Rothschild num só: “Hitler e o seu pai [Adolf Eichmann] viam assim, em todo e qualquer judeu, além de um «bolchevique sangrento», também um praticante da usura, e um «banqueiro internacional que esbulhava o povo alemão», ou seja, uma união entre Marx e Rothschild” (Gunther Anders).
 
Pedro Miranda




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